A PERMISSIBILIDADE DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DO ESPORTE EM UM CONTEXTO BRASILEIRO

Maria Gabriela Junqueira¹

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

De fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019 cerca de 1,6 milhões de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil²; e outras 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. Foi no ambiente doméstico que ocorreram 42% dessas violências. São 536 casos de violência contra a mulher por hora no Brasil e após sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda. São esses dados chocantes e reais do contexto de violência no Brasil que reforçam a necessidade de falar sobre o assunto.

Ponto importante e que é indispensável a essa discussão é o que chamamos de responsabilidade social, que segundo a estudiosa Patrícia Almeida³, pode ser definida como “o compromisso que uma organização deve ter para com a sociedade, expresso por meio de atos e atitudes que a afetem positivamente, de modo amplo, ou a alguma comunidade, de modo especifico, agindo proativamente e coerentemente no que tange a seu papel especifico na sociedade e a sua prestação de contas para com ela.[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][…] Assim, numa visão expandida, responsabilidade social é toda e qualquer ação que possa contribuir para a melhoria da qualidade de vida da sociedade”.

Pois bem, cabe, então, uma análise sobre impacto do esporte na vida de milhares de brasileiros. Vide situações diversas em que o esporte atua no combate à exclusão e desigualdade social, violência, entre outros, por meio, muitas vezes, de projetos sociais[4], reforçando a ideia de que a cultura e o esporte são grandes instrumentos redutores das marginalidades sociais. Torna-se indiscutível, desta forma, a função e consequente responsabilidade social do esporte, resultando, inclusive, na dificuldade de dissociação de ambos.

Importante ressaltar que não são apenas cases de sucesso, mas sim uma maioria esmagadora dos praticantes que tiveram sua vida de alguma forma modificada, seja pela disciplina, pelo amor ao esporte, pelo fim do sedentarismo, por uma oportunidade profissional etc. Portanto, essa função é intrínseca à existência do esporte, não podendo ser negada.

A Lei Pelé[5], em seu artigo 2º, inciso VII, traz como um dos princípios basilares do desporto o da educação, voltado para o desenvolvimento integral do homem, reforçando a ideia dessa responsabilidade social na formação do ser humano.

O grande palco para a discussão aqui será, sem dúvidas, o futebol, devido à relevância da modalidade no Brasil e por ser considerado o maior expoente do esporte brasileiro, mas longe de ser o único esporte cuja atuação precisa ser revista.

O caso Robinho tomou proporções avassaladoras depois da contratação do atleta pelo Santos Futebol Clube, mesmo com uma condenação em primeira instância, na Itália, por violência sexual. Mas Robinho não é o primeiro nessa situação.

Lembremos então do caso do goleiro Bruno[6] que foi condenado por homicídio, ocultação de cadáver, sequestro e cárcere privado contra a mãe de seu filho em 2013. O mesmo homem que hoje joga pelo Rio Branco Football Club, na série D do futebol brasileiro.

Ou então do caso de Jean[7], então atleta do São Paulo Futebol Clube, que agrediu a esposa com oito socos, de acordo com o que foi registrado em sua prisão pelo Xerife do Condado de Orange, na Flórida. Hoje, Jean joga pelo Atlético Goianiense que disputa a série A do campeonato brasileiro.

E ainda assim poderíamos citar inúmeros outros na mesma situação, ou que sequer sofreram as consequências de seus supostos atos. As acusações são tantas e vão de Dudu[8], Carlos Alberto[9], Wesley[10], Cuca[11] a Neymar[12].

O mais importante ao analisarmos essa situação é entender o contexto social que ela reflete. Indiscutível o fato de que o futebol é a modalidade mais relevante, do ponto de vista econômico, no Brasil, e que suas repercussões são replicadas e normalizadas em outros ambientes. Pois então, se um ato de violência acontece dentro de campo de forma recorrente, por exemplo, e a Justiça Desportiva não o pune, passa aquilo, de alguma forma, a ser entendido como algo compatível com o jogo e com valores do esporte.

Os atores pertencentes a esse cenário tem o mesmo poder. Dessa forma, quando um clube permite que alguém condenado à uma violência tão grave como a de gênero continue pertencendo ao esporte e influenciando pessoas, qual a mensagem passada? Claramente de que mais vale um jogo bem jogado, um gol feito, ou um título conquistado do que a vida de inúmeras mulheres.

Mulheres são, todos os dias, desacreditas e ainda mais violentadas ao denunciarem as violências vividas, não atoa temos um número alarmante de que 52% das vítimas não denunciam. Isso se torna ainda mais difícil com a visibilidade e idolatria dada aos violentadores do esporte de forma que dificulte ainda mais, ou torne praticamente impossível, que essas mulheres levem adiante suas denúncias e a busca pela justiça.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva[13] pune rigorosamente os atos hostis e de violência visando a manutenção da ética esportiva em diversos artigos, a exemplo do 250, 254, 254-A e seguintes. Mas o CBJD é ainda mais duro quando fala especificamente de violação à ética desportiva no 243-A ou quando traz ameaças, violências, incitação ao ódio, ofensa à honra nos artigos seguintes.

A Justiça Desportiva já entende a discriminação em virtude de sexo, conforme o artigo 243-G, do CBJD, como ato grave, independentemente de estar ou não vinculado à prática do desporto, vez que não há restrição no tipo, punindo o jurisdicionado pela realização da conduta.

Deste modo, uma outra reflexão vem no sentido de que se já há uma preocupação da JD em lidar com uma violência de menor potencial ofensivo, por que não, então, lidar também com a violência física e psicológica consubstanciada no estupro, por exemplo?

Diante de todos esses valores resguardados pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva não faz sentido a manutenção de um ambiente de tamanha permissibilidade para/com a violência contra a mulher.

Ainda que não caiba diretamente à Justiça Desportiva punir situações como essa, é possível implementarmos métodos e caminhos, talvez até mesmo por meio de alterações no CBJD que estimulem mudanças em outros importantes documentos como regulamentos, atos normativos, códigos de ética etc, para coibir de uma vez por todas a possibilidade de que pessoas praticantes de violências em geral, mas principalmente violência contra a mulher, tenham no esporte um palco para dar voz a essa atitude não mais tolerada em pleno século XXI e resgatar a imensa responsabilidade social que o esporte carrega.

Não se trata, de forma alguma, de uma relativização do estado jurídico de inocência, garantido constitucionalmente. Mas sim de uma reflexão acerca da valorização do produto futebol sob o prisma do consumidor que possui princípios e valores e que espera a coerência entre o espetáculo e sua função social. Entendendo, principalmente, que nesse cenário não são necessários os rígidos requisitos que são imprescindíveis à esfera criminal, tratando-se apenas de um aspecto econômico.

Nos remetendo mais uma vez a importância do exemplo e da responsabilidade social que o esporte carrega de forma intrínseca, vale o destaque de que também não se trata de obstaculizar a possível ressocialização de um infrator, mas ponderar que um indivíduo condenado em primeira instância à prática de estupro, talvez (por mero eufemismo), não se preste a ser ídolo de uma nação.

Ou seja, é importante entender que nesse contexto há uma grande preocupação com a imagem negativa gerada no âmbito social, devendo ser ponderado pelos atores do esporte, vez que há uma grande responsabilidade social pelas mensagens vinculadas e disseminadas dada a imensa relevância da sua atividade.

Alguns clubes brasileiros já iniciaram o caminho apoiando projetos como fizeram Corinthians, São Paulo e Palmeiras em conjunto com a prefeitura de São Paulo[14]. Ou então Bahia e Vitória que promoveram ações contra o machismo, a violência contra a mulher e contra o assédio[15]. Outro clube que chamou atenção no tema foi o Vasco da Gama[16] ao criar uma ouvidoria para encaminhamento de denúncias e discussão sobre violação de Direitos Humanos no ambiente esportivo. Essa iniciativa surgiu, inclusive, em virtude dos inúmeros casos de assédio e violência contra mulheres em arquibancadas e diversos outros setores do esporte.

Ocorre que essas ações primeiro precisam ser condizentes com a postura do clube e principalmente motivadas pelo que de fato interessa. Questão essa levantada diante da postura do Santos Futebol Clube, por exemplo, que em um primeiro momento emitiu nota em defesa da manutenção do contrato feito com o atleta Robson e alegando que não cabia a eles fazerem juízo de valor do ocorrido. Mas em um segundo momento, diante de pressão dos torcedores e da possível desistência de diversos patrocinadores, voltaram atrás e optaram pela suspensão do contrato firmado[17].

Exemplo a ser seguido é o do futebol argentino que tem trabalhado ativamente para coibir a violência contra a mulher de várias formas[18]. O clube Vélez Sarsfield foi o primeiro da Argentina a ter um departamento exclusivo de combate à violência contra a mulher, contando com um protocolo específico para tratar o assunto desde 2018.

O ponto mais alto do projeto, além da educação e conscientização sobre o assunto, está no fato de que todos os novos contratos passaram a contar com uma cláusula de rescisão unilateral pelo clube, sem qualquer custo, nos casos de violência de gênero.

No ímpeto da boa ideia, outros clubes argentinos também já estão implantando o método em sua administração, como Boca Juniors e o River Plate, visando, cada vez mais, a cessação dessas violências, para que o esporte não permita este reflexo social, evitando assim, ser conivente com essas atitudes.

Incontroverso o fato de que a sociedade está em constante evolução e consequentemente espera-se que a legislação que a rege assim também esteja, para que o direito consiga cumprir o seu papel social.

Desta forma, cabe ao Brasil, aos Conselhos de Ética e aos grandes atores do esporte buscar novas soluções, inclusive analisando os modelos estrangeiros já propostos, e implementando-as para que esse deixe de ser, de uma vez por todas, mais um espaço permissivo à violência e volte a ser o que de fato está ligado aos seus valores, respeitando, acima de tudo, a vida do ser humano e provando que a responsabilidade social e a instrumentalização da mudança dessa sociedade pode estar nas mãos e no caminho certo.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.


¹ Advogada, Pós-graduanda em Direito Desportivo pela ESA/SP, Membro filiada ao IBDD, Procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva Universitária da FUPE e Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Santana.

² BBC NEWS. Violência contra a mulher: novos dados mostram que “não há lugar seguro no Brasil”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503. Acesso em: 19 out. 2020.

³ ASHLEY, PATRÍCIA ALMEIDA. (Coord.). Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, p.6., 2002.

[4] ESTADÃO. Projeto Virando o Jogo ajuda a combater violência e exclusão social. Disponível em: http://patrocinados.estadao.com.br/esporteparatodos/projeto-virando-o-jogo-ajuda-a-combater-violencia-e-exclusao-social/. Acesso em: 19 out. 2020.

[5] BRASIL, LEI Nº 9.615, DE 24 DE MARÇO DE 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm. Acesso em: 19 out. 2020.

[6] G1. Goleiro Bruno é condenado a 22 anos e 03 meses; ex-mulher é absolvida. Disponível em: http://g1.globo.com/minas-gerais/julgamento-do-caso-eliza-samudio/noticia/2013/03/bruno-e-condenado-prisao-por-morte-de-eliza-ex-mulher-e-absolvida.html. Acesso em: 19 out. 2020.

[7] G1. São Paulo decide suspender o contrato do goleiro Jean até dezembro de 2020. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/sao-paulo-decide-suspender-contrato-do-goleiro-jean.ghtml. Acesso em: 19 out. 2020.

[8]GLOBOESPORTE. Por briga com a esposa em 2013, Dudu vai prestar serviços comunitários. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/times/palmeiras/noticia/2015/05/por-agressao-esposa-em-2013-dudu-vai-prestar-servicos-comunitarios.html. Acesso em: 19 out. 2020

[9] GLOBOESPORTE. Carlos Alberto é acusado de agredir a esposa no Rio de Janeiro. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/2015/03/carlos-alberto-e-acusado-de-agredir-esposa-no-rio-de-janeiro.html. Acesso em: 19 out. 2020.

[10]GLOBOESPORTE. Patrocinadores do Bragantino se isentam sobre jogador condenado por agressão a mulher. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/blogs/blog-do-rodrigo-capelo/post/2020/10/15/patrocinadores-do-bragantino-se-isentam-sobre-jogador-condenado-por-agressao-a-mulher.ghtml. Acesso em: 19 out. 2020

[11] FOLHA DE SÃO PAULO. Esporte convive com acusações de assédio. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/5/18/esporte/12.html. Acesso em: 19 out. 2020

[12] UOL. Justiça arquiva inquérito de estupro envolvendo Neymar e Najila Trindade. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2019/08/08/justica-arquiva-inquerito-de-estupro-envolvendo-neymar-e-najila-trindade.htm. Acesso em: 19 out. 2020.

[13] BRASIL, CÓDIGO BRASILEIRO DE JUSTIÇA DESPORTIVA. Disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201507/20150709151309_0.pdf. Acesso em: 19 out. 2020.

[14] AGÊNCIA BRASIL. Clubes paulistas vão atuar no combate à violência contra a mulher. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/clubes-paulistas-vao-atuar-no-combate-violencia-contra-mulher. Acesso em: 19 out. 2020.

[15] ELAS NO ATAQUE. Como o esporte pode ajudar no combate à violência contra a mulher na pandemia?. Disponível em: https://blogs.correiobraziliense.com.br/elasnoataque/futebol-violencia-mulher-pandemia/. Acesso em: 19 out. 2020.

[16] CÂMARA DOS DEPUTADOS. É gol! Time de futebol se mobiliza contra o assédio a mulheres nos estádios. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/e-gol-time-de-futebol-se-mobiliza-contra-assedio-a-mulheres-nos-estadios. Acesso em: 19 out. 2020.

[17] GLOBOESPORTE. Santos e Robinho anunciam suspensão de contrato. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/noticias-santos-robinho-suspensao-contrato.ghtml. Acesso em: 19 out. 2020.

[18] GLOBOESPORTE. Clubes se mobilizam para combater a violência de gênero no futebol argentino. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/noticia/clubes-se-mobilizam-para-combater-a-violencia-de-genero-no-futebol-argentino.ghtml. Acesso em: 19 out. 2020.

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