A preservação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) diante da Reforma Tributária

Bruno Coaracy Duarte
Advogado Tributarista, Mestrando em Direito Desportivo Internacional pela universidade de Lleida na Espanha;Pós Graduado em Direito Tributário e Desportivo pela Universidade Cândido Mendes;Membro da ANDD-lab da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD;Membro e Coordenador Acadêmico da Comissão de Direito Desportivo da OAB – RJ;Coordenador Acadêmico de Direito Desportivo da ESA-Barra da Tijuca;Presidente da Comissão de Esporte e Entretenimento da OAB Barra da Tijuca – RJ;Colunista do Portal de Notícias Lei em Campo;Docente em Direito Tributário e Desportivo em várias universidades.
Fernando Munhoz Machado Prigol
LL.M in Sports Management and Legal Skills, pelo Instituto Superior de Derecho y Economía – ISDE, (ESP). Professor convidado da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Professor convidado da pós-graduação em Direito Desportivo da Universidade Positivo. Professor de Direito Tributário de diversos cursos preparatórios. Membro da ANDD-lab da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/PR. Vencedor do prêmio Valed Perry de 2019, conferido pelo Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Sócio do escritório Prigol Advogados Associados.

INTRODUÇÃO

 

Como responsável pela formação de grandes estrelas do futebol mundial, há décadas existe uma cobrança onipresente por uma maior profissionalização no futebol brasileiro.

Ao passo que nossos astros brilhavam nas posições mais desejadas mundialmente, nossos clubes se afundavam em endividamento.

Não raramente, autoridades do assunto atribuíam essa letargia à ausência de investimento externo nesse mercado.

Rapidamente, esse inimigo encontrado começou a ganhar corpo, na medida em que a crítica convergia com interesses estatais. Não apenas porque o Governo desejava uma injeção de capital externo, mas, principalmente, porque enxergava, ali, uma possibilidade de tributar os clubes de futebol que, organizados da forma usual como Associação Civil sem fins lucrativos – detinham isenção do Imposto de Renda da pessoa jurídica (IRPJ), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e o Programa de Integração Social (PIS) era reduzido a 1% sobre o valor da folha salarial.

As fontes normativas desse tratamento favorecido partem do art. 15 da Lei nº 9.532/1997 (IRPJ e CSLL)[1] e dos arts. 13, IV e 14, X da M.P. nº 2.158/2001 (PIS e COFINS)[2].

Portanto, há décadas houve um interesse comum em estimular, impor ou induzir, como queira chamar, os clubes a se tornarem empresas, passando a ser tributados como tal.

Conectando os pontos olhando para o passado, percebemos diversas investidas legislativas para forçar essa transformação dos clubes em empresas, ainda que sem muito sucesso em trazer segurança jurídica ou estímulo para convencer que valeria a pena, por exemplo, passar a pagar mais tributos.

Em 1993, no texto positivo da Lei Zico (nº 8.672/1993)[3], previa-se no art. 11 a faculdade dos clubes para se tonarem empresas. Já na redação originária da Lei Pelé (nº 9.615/1998)[4], tornava-se obrigatória a transformação da associação em empresa, com dois (depois três) anos para adaptação. Em 2000, com a Lei Manguito Vilela (nº 9.981/2000)[5], voltava a ser livre o formato de organização. Na Medida Provisória nº 39/2002[6], constava a obrigatoriedade do formato empresarial. E na Medida Provisória nº 79/2002[7], o formato empresarial aparecia como facultativo.

Conforme se vê, o objetivo era claro, ainda que de forma precipitada, fazendo com que essa novela à brasileira tivesse inúmeros capítulos, entre idas e vindas, até chegarmos aqui, no capítulo histórico da Sociedade Anônima do Futebol – SAF.

 

AS SOCIEDADES ANÔNIMAS DO FUTEBOL – SAF

A SAF é um marco no futebol brasileiro, porque representa o estudo mais detalhado entre as cirandas legislativas anteriormente citadas, com a importação de modelos já validados em outros países e, principalmente, para fins desse artigo, buscou equilibrar o encargo da tributação, o que torna mais palpável a migração de um formato praticamente isento.

A atividade principal da SAF consiste na prática de futebol, feminino e masculino, em competições profissionais, sendo regida primariamente por sua própria lei e, naquilo em que esta for omissa, pela Lei Federal nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações)[8].

Em termos gerais, a Lei da SAF não lida com assuntos amplos que já são regulamentados pela Lei das Sociedades por Ações. Ao invés disso, ela se concentra em estabelecer regras específicas de constituição, governança, controle, transparência, meios de financiamento da atividade futebolística e na tributação.

Esse arranjo revela que a SAF consiste em um subtipo societário, uma espécie de sociedade anônima organizada sob a estrutura legal da Lei das Sociedades por Ações, o que permite um convívio complementar entre os comandos da Lei da SAF e da Lei das Sociedades por Ações. E se há um convívio complementar, há que existir um convívio com outras entidades, em um ambiente competitivo do mercado de ações. Essa correlação será relevante para a conclusão desse artigo.

Agora, concentrar-se-á no tema tratado nos artigos 31 e seguintes da Lei da SAF, notadamente sobre o Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).

O TEF teve por inspiração a Lei nº 10.931/2004[9], que instituiu um regime especial de tributação às incorporadoras imobiliárias, por meio do qual as empresas deveriam recolher o valor correspondente a 4% da receita mensal recebida, para pagamento unificado do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS.

Fruto da inspiração, são praticamente essas espécies tributárias tratadas na Lei da SAF, com adição do INSS e do RAT (art. 31, §1º,V, Lei nº 14.193/2021). Aqui, nos cinco primeiros anos-calendário da constituição da SAF, ficará ela sujeita ao pagamento mensal e unificado desses tributos, à alíquota de 5% das receitas mensais recebidas.

Uma espécie de Simples Nacional para a atividade. Sendo que, considera-se receita mensal a totalidade das receitas recebidas, inclusive aquelas referentes aos prêmios e programas de sócio-torcedor, excetuadas as relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.

A partir do início do sexto ano-calendário, o TEF incidirá à alíquota de 4% da receita mensal recebida, inclusive as receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.

Portanto, no cômputo geral, enquanto na associação civil sem fins lucrativos os clubes teriam isenção de IRPJ, CSLL, COFINS e PIS reduzido a 1% sobre a folha, na SAF terá que recolher 5% sobre as receitas mensais nos primeiros cinco anos, e 4% a partir do sexto ano, incluindo, a partir deste, o valor de venda de atletas.

Essa simplificação no cumprimento das obrigações acessórias, somado a uma carga fiscal bem mais favorecida se comparado a uma empresa convencional, pavimenta com êxito esse caminho para o sucesso do modelo.

Para resumir e parafrasear o comando legal, esse o rol composto Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF)[10]:

 

Art. 31. A Sociedade Anônima do Futebol regularmente constituída nos termos desta Lei fica sujeita ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).   (Promulgação partes vetadas)
                  • 1º  O regime referido no caput deste artigo implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições, a serem apurados seguindo o regime de caixa:
I – Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);
II – Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep);
III – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL);
IV – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e
V – contribuições previstas nos incisos I, II e III do caput e no § 6º do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.

 

E daqui exsurge a preocupação com a Reforma Tributária.

 

REFORMA TRIBUTÁRIA[11]

O TEF substitui o recolhimento normal dos tributos, para que ocorra de uma forma simplificada, mensalmente.

Com o texto atual da Reforma Tributária, tributos que estão compreendidos no recolhimento simplificado deixarão de existir, dando espaço para uma nova contribuição.

Em termos práticos, enfrentaremos a saída do PIS e da COFINS, que serão substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), cuja transição terá início em 2026 – com uma cobrança de 0,9% a ser compensado com PIS e COFINS – e atingirá sua vigência plena em 2033.

Em uma análise sumária e por exercício de analogia à sistemática do Simples Nacional, podemos extrair do texto atual da Reforma Tributária, no art. 146, §3º, que aos Clubes será oportunizado o recolhimento em separado da nova contribuição (CBS), como se estivesse no regime normal. Ou seja, recolheria normalmente seus tributos dentro do TEF e, adicionalmente, recolheria a nova contribuição em separado. É algo que está apresentado, mas que não faz tanto sentido.

Se a empresa opta por um regime notadamente por ser mais simples, por qual razão se submeteria a mais uma obrigação principal e acessória em separado?

Podemos imaginar também que o PIS e a COFINS poderão simplesmente serem substituídos pela nova contribuição dentro do próprio regime simplificado do TEF. Mas, nesse caso, as alíquotas serão mantidas,sendo 5% nos primeiros cinco anos e, após, 4%?

Fato é que, tanto no caso do RET (Regime de Tributação Imobiliária), que inspirou a Lei da SAF no que diz respeito à tributação, quanto no caso da SAF, a PEC da reforma não apresentou qualquer ressalva – deixando um campo infinito de possibilidades para ser disciplinado por meio de Lei Complementar posteriormente.

Essa omissão deixa as Sociedades Anônimas do Futebol em condição de vulnerabilidade, ante a possibilidade de ser afetada pela Reforma Tributária que se omitiu sobre a sua situação – e outras situações análogas.

Outros questionamentos, já publicado pela Dra. Cristiane Pires Mcnaughton[12], são somados nessa lista:

  • Haverá um limite no que se refere às alíquotas dos referidos impostos quando aplicado à regime especial existente anteriormente à reforma?
  • A Lei Complementar, que nos moldes do artigo 9, §1°, inciso VIII, confere a possibilidade de redução de 60% de alíquota do IBS e CBS para atividades desportivas, irá de fato conceder tal benefício, também para as SAFs?
  • Os benefícios serão cumulativos ou excludentes?

Enfim, não se sabe, ao certo, qual será o último capítulo dessa sina, mas indícios históricos nos apresentam um cenário desfavorável aos clubes, urgindo a necessidade de provocação do Senado Federal para que esclareça como será preservada a entidade que se estruturou como SAF, deixando um campo menor de ação à Lei Complementar que virá.

 

RETROSPECTO HISTÓRICO DESFAVORÁVEL

Esse receio é mais que legítimo. E não só em razão da imprevisibilidade, mas pelos fatos pretéritos propriamente ditos.

Você já deve ter se questionado como os clubes de futebol devem mais de um bilhão de reais aos cofres públicos, sendo que detém isenção de IRPJ, CSLL e COFINS.

Pois bem, existem alguns motivos que justificam o alto endividamento fiscal dos clubes, mesmo diante da posição privilegiada em termos fiscais.

Destaca-se, aqui, que nos 25 anos que nos separam da edição da Lei n.º 9.532/1997– que passou a prever a isenção de IRPJ, CSLL e COFINS para as associações sem fins lucrativos –, as entidades profissionais de futebol foram privadas dos benefícios, de acordo com a SRFB (COSIT nº 231/2018)[13], por 12 anos (14 se desconsiderado o prazo de adaptação revogado no início da Lei Pelé), criando passivos tributários significativos para os clubes brasileiros decorrentes da complexidade sistemática ou de longas disputas judiciais sobre o assunto.

Visualmente, teríamos algo assim como retrospecto:

 

A Receita Federal Brasileira sempre manifestou entendimento de que a isenção das Associações deveria ser revista, sob um fundamento de que elas competem no mesmo ambiente econômico que entidades tributadas e que, por isso, não poderiam se valer do benefício por ferir a competitividade.

Mas, agora, podemos ir além.

O mercado de capitais é um importante canal de captação e aplicação de recursos financeiros. A função econômica essencial do mercado de capitais é a de conectar poupadores de recursos, permitindo que entidades do mercado, mediante emissão pública de seus valores mobiliários, captem recursos disponíveis junto ao público em geral[14].

O aporte de recursos por ocasião da abertura de capital permite às companhias expandirem seus negócios, reduzirem os custos de capital e reestruturarem passivos e perfil de endividamento. Em contrapartida, para as companhias abertas amplia-se o rigor das exigências de transparência, de divulgação de informações e de existência de controles internos e adequada governança corporativa.

O curso natural e esperado é que as SAF’s estudem o levantamento de capital por emissão pública de suas ações e, com isso, a reverberação da Receita Federal Brasileira, que já era eloquente, tende a ser ainda maior – sob véu da competitividade.

Outro ponto que merece destaque face a incidência da CBS, seja recolhida de forma direta ou apartada é a repartição da receita tributária das alíquotas que as SAFs estão submetidas, seja esta de 5% nos 5 primeiros anos, seja a de 4% após o 5º ano de sua existência, visto que nas citadas alíquotas, não se tem notícia sobre qualquer regulamentação por parte da Receita Federal neste sentido.

Cumpre lembrar que a Receita Federal editou somente em 17 de maio de 2022 o Ato Executivo Codar nº 6 com publicação em 20 de maio de 2022[15], ou seja, quase 1 ano após a sanção da Lei Federal nº 14.193/2021 que se deu em 06 de agosto de 2021, o que acabou por gerar enorme insegurança jurídica face a necessidade de cumprimento das obrigações tributárias principais e acessórias.

Em verdade, o supracitado Ato Executivo Codar nº 6 de 2022 foi revogado pelo Ato Declaratório Executivo Codar nº 17 com publicação em 15 de agosto de 2023[16], estabelecendo novo código para pagamento unificado das cifras tributárias que as SAFs estão submentidas.

De modo que quanto será descontado do percentual de alíquotas unificada das SAFs quando do pagamento da CBS.

Todas essas razões ascendem a necessidade de uma mobilização, por parte das SAF’s e clubes em projetos estruturantes para constituir a sua SAF, a fim de provocar o Congresso Nacional para uma formal manifestação e orientação a respeito desse modelo diante da Reforma Tributária, sem deixar o futuro das entidades à mercê, excepcionalmente, do legislador infraconstitucional.

 

[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9532.htm

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2158-35.htm

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8672.htm

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9981.htm

[6]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2002/39.htm#:~:text=MEDIDA%20PROVIS%C3%93RIA%20No%2039%2C%20DE%2014%20DE%20JUNHO%202002.&text=Altera%20a%20Lei%20no,Art.

[7] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2002/79.htm

[8]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm#:~:text=LEI%20No%206.404%2C%20DE%2015%20DE%20DEZEMBRO%20DE%201976.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20Sociedades%20por%20A%C3%A7%C3%B5es.&text=Art.%201%C2%BA%20A%20companhia%20ou,das%20a%C3%A7%C3%B5es%20subscritas%20ou%20adquiridas.

 

[9] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14193.htm

[11]https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9418079&ts=1695418220048&disposition=inline&_gl=1*fqt1yb*_ga*MTU0NTk3MTM2MC4xNjk1NDkwNjYw*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NTQ5MDY2MC4xLjEuMTY5NTQ5MDY5NC4wLjAuMA..

[12] https://www.migalhas.com.br/depeso/390273/as-sociedades-anonimas-de-futebol-diante-reforma-tributaria

[13] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=97255

[14] Parecer de Orientação CVM Nº 41, de 21 deagosto de 2023.

[15] Ato Executivo Codar nº 6 com publicação em 20 de maio de 2022

[16] Ato Declaratório Executivo Codar nº 17 com publicação em 15 de agosto de 2023