A regularização das apostas no Brasil: a urgente e necessária regulamentação do mercado brasileiro de apostas esportivas

Mariana Chamelette¹

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD

As apostas esportivas estão proibidas no Brasil desde 1946². No entanto, a despeito da legislação proibitiva, as apostas nunca deixaram de ocorrer, inicialmente, em bancas ilegais e, mais recentemente, por meio da internet, em websites especializados, sediados em territórios nos quais não há vedação.

Com efeito, milhões de brasileiros realizam apostas esportivas virtuais todos os dias, há muitos anos, movimentando cifras bilionárias³. O Brasil, ciente das mudanças mundiais e do prejuízo decorrente da não regulamentação de tal mercado, em dezembro de 2018, promulgou a Lei nº 13.756/2018, por meio da qual instituiu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de serem operadas em território nacional apostas esportivas de quota fixa.

Apostas de “quota fixa”, que têm o nome em inglês “fixed-odds”, são aquelas em que o apostador, ao apontar o desfecho do evento esportivo, já toma ciência do prêmio que poderá receber pelo resultado. Conforme estabelecido legalmente, a loteria de aposta de quota fixa deverá se referir a eventos reais de temática esportiva e será um serviço público de titularidade exclusiva da União, do qual a exploração será “autorizada ou concedida” pelo Ministério da Economia em ambiente concorrencial.

Contudo, embora vigente, o diploma legal ainda carece de regulamentação. Isso porque, justamente em decorrência da natureza de “serviço público” conferida às apostas esportivas de quota fixa pela Lei nº 13.756/2018, delegou-se ao Ministério da Economia a função de regulamentar a norma no prazo de até dois anos desde a sua publicação, podendo tal prazo ser prorrogado por mais dois anos.

Na presente coluna, pretende-se salientar a relevância e urgência da regulamentação do referido diploma legal, destacando-se o fato de que os principais riscos atrelados às apostas esportivas se potencializam em um cenário no qual as apostas operam numa área cinzenta, como a vivenciada hoje no Brasil.

Para tanto, face à brevidade da coluna, não serão enfrentados os problemas referentes aos apostadores (dentre outros, as questões relacionadas ao jogo patológico e à realização de apostas por menores de idade) e serão destacados três problemas inerentes ao mercado de apostas e ao desporto em si considerados, quais sejam: (i) a evasão fiscal; (ii) a lavagem de dinheiro e (iii) a manipulação de resultados de eventos esportivos.

Pois bem.

Inicialmente, há de se fazer uma sucinta explanação acerca de como funciona o mercado de apostas hoje no Brasil.

Consoante já se relatou, a realização de apostas esportivas é contravenção penal tipificada no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, casas de apostas online sediadas em países nos quais a prática é permitida(tais como, Gibraltar, Costa Rica, Curaçao e Malta) operam livremente no Brasil. Como, na prática, a aposta só é feita quando os dados são recebidos no servidor sediado em solo internacional, as apostas feitas em território estrangeiro não estão sujeitas à aplicação da legislação proibitiva nacional.

E, assim, ingressa-se no primeiro problema a ser minimizado com a regulamentação da Lei nº 13.756/2018: a evasão fiscal. Isso porque, por meio dessa brecha legal que torna as apostas esportivas uma realidade dissociada de regulamentação, anualmente, aproximadamente, R$ 2,7 bilhões 4 em possíveis impostos não são recolhidos.

Por meio da regulamentação da Lei nº 13.756/2018, a receita tributária oriunda do mercado de apostas advirá (i) dos operadores, que, ao atuarem de forma lícita e regulamentada, gerarão empregos e receita suscetível à tributação; (ii) do produto de arrecadação da loteria de apostas de quota fixa, que será destinado à seguridade social, à segurança pública, à educação e ao desporto 5; e (iii) dos próprios prêmios das apostas, que, conforme já previsto no texto legal, estarão sujeitos à incidência de IRPF.

Desde a publicação do diploma legal em referência, diversas entidades especializadas vêm realizando estudos e projeções quanto ao futuro mercado de apostas esportivas brasileiro. Nesse contexto, projeta-se que o mercado brasileiro de apostas esportivas pode chegar a movimentar anualmente USD 1,56 bilhão[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][6]. Portanto, face aos números já conhecidos e aqueles tendenciados, verifica-se que a arrecadação fiscal decorrente da regulamentação do mercado de apostas brasileiro representará relevante fonte de receita para o Estado, afastando-se (ou minorando-se) a evasão fiscal hoje existente no setor.

Consoante já se apontou, valores de cifras bilionárias circulam mundialmente em bancas de apostas. Tais quantias são transacionadas de maneira absolutamente célere e, muitas vezes, sem adequada fiscalização. Por essa razão, o mercado de apostas esportivas atraiu organizações criminosas que o utilizam como engrenagem na lavagem de capitais 7, o segundo problema próprio do mercado de apostas esportivas, que, a seguir, será explorado.

A “lavagem de dinheiro” é delito previsto no art. 1º, da Lei nº 9.613/98, que tipifica a conduta daquele que oculta ou dissimula “a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Assim sendo, o crime de lavagem de capitais é um delito complexo, que tem como premissa a prática de infração penal antecedente, da qual decorre o capital de origem ilícita a ser ocultado ou dissimulado, e pode ser dividido em três fases: ocultação (afastamento do valor de sua origem ilícita), dissimulação (realização de transações para camuflar as fontes criminosas) e integração (incorporação no sistema formal com aparência de licitude ).

Evidentemente, o risco da utilização do mercado de apostas esportivas para lavagem de dinheiro é incrementado em um cenário no qual as apostas ocorrem de maneira desregulamentada. Por essa razão, é relevante que o decreto de regulamentação da Lei nº 13.756/2018 preveja mecanismos de prevenção à lavagem de capitais.

Nessa toada, destacam-se dois pontos previstos na minuta de decreto mais recentemente disponibilizada pelo Ministério da Economia 8. O primeiro diz respeito à necessidade de identificação do apostador e do recebedor do prêmio, como parte de estratégia denominada know your client (conheça o seu cliente), por meio da qual, a fim de se combater a lavagem de capitais, o Estado impõe a determinadas instituições a obrigação de coleta e manutenção de dados de seus consumidores. O segundo refere-se à obrigação conferida às pessoas jurídicas operadoras das apostas de quota fixa de comunicação de informações sobre apostadores à Unidade de Inteligência Financeira – UIF (antigamente nomeada Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF) órgão voltado à prevenção da lavagem de capitais.

Entretanto, embora trate-se de assunto de especial relevância, na minuta de decreto de regulamentação disponibilizada pelo Ministério da Economia, o tema não foi aprofundado, optando o órgão estatal por genericamente asseverar que poderão ser impostas outras normas por órgãos voltados ao combate à lavagem de dinheiro (art. 22, § 2º).

Ainda que se aguarde que, no decreto de regulamentação definitivo, o tema seja penetrado de maneira menos superficial, a rigor, o quanto proposto já é suficiente a aprimorar o atual vácuo regulamentador do sistema. Afinal, alguma cautela preventiva no tocante a lavagem de capitais é melhor do que a completa ausência vivenciada atualmente no mercado de apostas esportivas brasileiro.

Finalmente, destaca-se o terceiro problema próprio do mercado de apostas esportivas, qual seja, a manipulação de resultados de eventos esportivos e a necessidade de preservação da integridade do desporto.

Conforme registrado em coluna Jus Desportiva anteriormente publicada, a força que o desporto tem de mover paixões está umbilicalmente relacionada à sua imprevisibilidade. Portanto, a integridade desportiva é um dos elementos inerentes ao desporto e está diretamente vinculada ao fair play. Uma das maneiras por meio das quais a integridade desportiva é violada é a manipulação de resultados (ou, em inglês, match-fixing).

A expressão “manipulação de resultados” refere-se a qualquer alteração na incerteza do jogo, que prejudique a imprevisibilidade do desporto. Ela pode se manifestar de diversas formas, tais como pelo ajuste entre adversários (que, por exemplo, combinam o resultado da partida a fim de selecionarem seus próximos concorrentes num campeonato), a coerção criminosa (como ocorreu num notório caso de um atleta asiático de quem os familiares foram ameaçados pela máfia local) e ao suborno, que muitas vezes está relacionado ao mercado de apostas esportivas.

Os escândalos que interligam a manipulação de resultados e as apostas esportivas não são novidade 9. Contudo, o match-fixing nessa seara tem evoluído conforme as modificações do mercado de apostas. Isso porque a manipulação de resultados é um problema relacionado a apostas esportivas que transcende fronteiras nacionais, modalidades e níveis competitivos, envolvendo uma série de stakeholders de diversos níveis (dirigentes, treinadores, atletas e árbitros).

Tal circunstância ganha especial aspecto de transnacionalidade ao se ter em vista o mercado online de apostas e a sua característica globalizada, que tornou as fronteiras praticamente irrelevantes. Nesse contexto, um apostador brasileiro pode formular o seu palpite, por meio de um website sediado em Gibraltar, com relação a um jogo de tênis que está ocorrendo na Croácia, cujo resultado foi manipulado por uma organização criminosa sediada na Ásia.

O cenário perfunctoriamente apresentado levanta preocupações e questões jurisdicionais complexas, que estão relacionadas à necessidade de implementação de esforços preventivos à manipulação de resultados, que minimizem ao máximo a possibilidade de intervenções externas no desporto, e repressivos no que se refere a políticas sérias de investigação.

Neste ponto, as palavras-chave para a regulamentação da Lei nº 13.756/2018 são: prevenção, monitoramento e cooperação.

A “prevenção” está relacionada ao estabelecimento de regras claras, objetivas e de fácil implementação e divulgação, a fim de que sejam conhecidas por todos os atores envolvidos na prática desportiva[10]. O “monitoramento” diz respeito a implantação de mecanismos de detecção e análise de dados que permitam aferir a ocorrência de atividades suspeitas. E, finalmente, a “cooperação” refere-se a necessidade de todos os agentes (entidades desportivas, operadores de apostas e Estado) terem ciência de que a relação entre si deve ser simbiótica de modo a mutuamente cooperarem a fim de que seja preservada a integridade do desporto.

Ao se considerar essa perspectiva, percebe-se que a credibilidade do sistema de apostas é inerente à possibilidade de sua própria existência, que não se sustenta na quebra na integridade do esporte por meio da manipulação de resultados.

Em vista disso e à luz do fato de que o mercado de apostas esportivas online está em pleno funcionamento no Brasil, verifica-se a urgência na regulamentação da Lei nº 13.756/2018 a fim de possibilitar a implementação de mecanismos centralizados de monitoramento e cooperação a prevenirem a manipulação de resultados.

Ora, é de conhecimento de todos que as apostas esportivas já são uma realidade no Brasil, independentemente de eventuais anseios de governantes. Nesse esteio, a regulação das apostas servirá para minorar os riscos de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e manipulação de resultados, ademais de, para além do quanto exposto, permitir a consolidação de um mercado mais transparente, no qual os direitos dos consumidores poderão ser resguardados e em que o jogo patológico e por menores de idade será desestimulado

Consequentemente, a regulamentação da Lei nº 13.756/2018 servirá ao melhor interesse da sociedade brasileira e se mostra urgente e necessária a minimizar os riscos atrelados a um mercado que já existe e opera a pleno vapor.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.


¹ Advogada especializada em Direito Penal Econômico. Coordenadora Regional – São Paulo e Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Membro do Conselho Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, da Comissão de Prerrogativas e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Coordenadora do projeto Educação para Cidadania no Cárcere do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD.

² Art. 50, § 3º, alínea “c”, das Leis das Contravenções Penais.

³ UOL. Montanhas de dinheiro: Regulamentação das apostas levará fortuna a times do país, fará palpiteiros ganharem um extra, mas vê dilemas.. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/apostas-esportivas-no-brasil/>.

4 ÉPOCA. Esporte desperdiça R$ 2,7 por não regulamentar apostas, conclui professor da FGV.. Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/esporte/noticia/2016/03/esporte-desperdica-r-27-bi-por-nao-regulamentar-apostas-conclui-professor-da-fgv.html>.

5 No art. 30, incisos I e II, da Lei nº 13.756/2018, restou estabelecida a diferente destinação do produto de arrecadação da loteria de apostas de quota fixa em meio físico e em meio virtual, estabelecendo-se a tributação individualmente incidente sobre cada um deles.

6 GAMBLING COMPLIANCE. Special Report: Latin America Online Gambling. Disponível em: <https://gamblingcompliance.com/premium-content/research_report/special-report-latin-america-online-gambling-outlook-2019>. Acesso em: 6 dez. 2019.

7 REUTERS. Crime gangs launder $140 billion through sports betting – report. Disponível em: https://www.reuters.com/article/sport-gambling/crime-gangs-launder-140-billion-through-sports-betting-report-idUSL6N0O05DY20140515.

8 MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Disponível em <http://www.economia.gov.br/acesso-a-informacao/participacao-social/consultas-publicas/arquivos/2020/200218_economia_secap_apostas_quota_fixa_minuta_decreto_11fevereiro2020.pdf>.

9 Há, aliás, dois casos antigos e midiáticos ocorridos no Brasil e conhecidos como “Máfia da Loteria Esportiva” e “Máfia do Apito”.

[10] Tendo em vista o limite de espaço da presente coluna, o tema não poderá ser melhor aprofundado. Entretanto, destaca-se que, hoje, a manipulação de resultados no desporto nacional está sujeita a sanções em âmbito penal (por meio de condutas tipificadas no Estatuto do Torcedor) e desportivo (por meio dos regramentos confederativos, por exemplo, o Regulamento Geral de Competições da CBF).

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