A RESPONSABILIDADE DOS DIRIGENTES DESPORTIVOS E A NORMATIZAÇÃO DE SUAS CONDUTAS SOB O OLHAR DA LEI 14.073 DE 14 DE OUTUBRO DE 2020

Flávio de Albuquerque Moura¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD

I – Associação e sua Natureza Jurídica

A responsabilidade dos dirigentes de entidades desportivas (diretivas ou de prática do desporto) já foi objeto de normatização por vários diplomas legais, mas parece que até então não foi suficiente para acalentar os anseios dos legítimos representantes do povo, os autores formais da construção do ordenamento jurídico.

Diz-se isso, pois as associações, espécies que permeiam a quase totalidade do formato jurídico adotado pelas entidades desportivas, tem um passado longínquo de origem, independentemente da vocação do seu objetivo social. Nas magistrais lições da civilista Maria Helena Diniz², a associação:

 (Poderá ter finalidade: a) altruística (associação beneficente); b) egoística (associação literária, esportiva ou recreativa); e c) econômica não lucrativa (associação de socorro mútuo).

A renomada civilista conceitua associação com a proficiência que lhe é peculiar:

(Tem-se a associação quando não há fim lucrativo ou intenção de dividir o resultado, embora tenha patrimônio, formado por contribuição de seus membros para a obtenção de fins culturais, educacionais, esportivos, religiosos, beneficentes, recreativos, morais e etc. Não perde a categoria de associação mesmo que realize negócios para manter ou aumentar o seu patrimônio, sem, contudo, proporcionar ganhos aos associados, p. ex., associação esportiva que vende aos seus membros uniformes, alimentos, bolas, raquetes etc., embora isso traga como consequência, lucro para a entidade.

A associação (verein) é um contrato pelo qual certo número de pessoas, ao se congregar, coloca, em comum, serviços, atividades, conhecimentos, em prol de um mesmo ideal, objetivando a consecução de determinado fim não econômico (idealverein) ou econômico (wirtschaftlice verein), com ou sem capital, e sem intuitos lucrativos (CC, at. 53)).

O Código Civil de 1916 em seu art. 20 já desenhava de forma ampla, mas com pintura de cores brandas, a distinção entre as pessoas jurídicas e seus membros: (Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.).  O CC atual já tratou de forma mais pormenorizada, a partir do art. 44, as nuances das espécies e o formato de suas constituições, dentre elas as associações (Art. 44, inc. I), fixando desde logo a obrigatoriedade de algumas regras no ato do seu registro de criação(Art. 46, inc. V), ao mencionar a previsão de responsabilidade dos seus membros, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais.

E mais, estabeleceu em seu Art. 50 o fenômeno jurídico da desconsideração ou despersonalização jurídica, como batizado por um ou outro doutrinador (Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.)

É de conhecimento básico dos operadores do direito a configuração da “Teoria Menor” e “Teoria Maior” da responsabilidade civil, sendo a primeira calcada no pressuposto único da ocorrência do fato, independente da análise do elemento subjetivo  “culpa”, e a segunda, que além do fato, torna-se imprescindível a configuração da “culpa”, e é exatamente nessa segunda teoria que se insere o art. 50 do CC.

A denominada Lei da Liberdade Econômica, inaugurada no ordenamento jurídico pela norma 13.874 de 20 de setembro de 2019, deu nova redação ao art. 50 do CC, além de introduzir na referida lei substantiva civil o Art. 49-A, que abaixo se transcreve para melhor desenvolvimento do raciocínio:

(“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”)

(“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.” (NR)”

II – A Caracterização da Responsabilidade dos Dirigentes Associativos Lato Sensu

Apesar da natureza associativa não carregar para seus associados a responsabilidade pelas dívidas de qualquer origem contraídas pela associação, inexistindo assim a hipótese da sua desconsideração e personalização das obrigações ao patrimônio pessoal dos seus associados, o STJ, no REsp 797.999-SP,³ de relatoria do Min. Luiz Fux,admitiu a desconsideração da personalidade jurídica de associação, para determinar a responsabilidade solidária aos associados administradores(presidente, secretário e tesoureiro), em exemplo citado pelo Prof. Paulo Lobo[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], no caso envolvendo ressarcimento de danos ambientais e respectivas obrigações de fazer (recuperação do complexo ecológico atingido pela implantação de loteamento, com a demolição das edificações lá realizadas, recomposição da superfície do terreno, recobrimento do solo com vegetação e demais providências a serem indicados em laudo técnico de reparação dos danos).

Antes de mergulhar no tema específico da responsabilidade dos dirigentes desportivos, válido tangenciar o instituto da despersonalização da pessoa jurídica, a partir de sua normatização do ordenamento pátrio, inaugurada pelo CDC em 1990, no seu art. 28[5], pois via de regra, não caberia sua aplicação ao tipo de pessoa jurídica intitulada associação, diante da própria natureza jurídica constitutiva, que pressupõe uma atividade sem fins econômicos ou fins lucrativos, que são adjetivos diversos, por vezes confundidos.

O Prof. Paulo Lôbo, na obra já anteriormente citada, destaca a essência da natureza jurídica das associações civis como sendo a ausência de responsabilidade pelas dívidas contraídas pela associação, ainda que corresponda a quota ou fração ideal do patrimônio da entidade que pertença ao associado. E assim ele obtempera[6]: (Nenhum associado pode responder pessoalmente por qualquer obrigação negocial ou extranegocial (danos) da associação. A natureza da associação é incompatível com a responsabilidade solidária ou subsidiária do associado, por suas finalidades altruísticas e não econômicas. Esse é o direito à incolumidade dos efeitos das obrigações associativas).

No âmbito das associações desportivas verificar-se-á que o ordenamento jurídico é muito mais rígido e expressivo quanto a vinculação da responsabilidade  dos dirigentes, quando configurada as hipóteses de despersonalização da pessoa jurídica, mesmo se tratando de associações, já que para as hipóteses de sociedades empresárias, o próprio sistema normativo disciplina qual tipo de sócio é responsável pessoalmente pelas obrigações da sociedade, e em que condições e limites.

III – A Normatização sobre a Responsabilidade dos Dirigentes Associativos Desportivos

O Eminente Jurista de Direito Desportivo Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga[7] traz preciosos ensinamentos quanto ao tema, destacando a relevância das atividades desenvolvidas pelas entidades desportivas, e sobremaneira a responsabilidade dos seus dirigentes, como se vê, expressis verbis:

(A Lei 9.615/1998 é categórica ao afirmar que a exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica sujeitando-se, especificamente, à observância de determinados princípios, dentre os quais, o da responsabilidade social de seus dirigentes.

Tal princípio deveria ser obrigatório para todo e qualquer gestor de empresa, independentemente do ramo de atuação. Contudo, não há norma contendo explicitamente essa obrigação para o empresário, ao contrário do que ocorre com o gestor esportivo, conforme visto acima.

Portanto, a gestão do desporto profissional é envolvida de um múnus que compreende a adoção de ações e práticas relevantes para a sociedade. Não se trata de um exercício voluntário na medida em que decorre de imperativo legal.)

Observe de logo, que diferentemente da natureza jurídica da associação lato sensu, tem-se nas associações desportivas uma atividade eminentemente econômica, apesar de não ter cunho lucrativo, pois todo superávit é revertido ao objeto social da entidade de prática desportiva, sob pena de descaracterizar sua natureza de associação civil.

Como já classificado por Maria Helena Diniz, as associações desportivas se inserem no tipo (econômico (wirtschaftlice verein), com ou sem capital, e sem intuitos lucrativos (CC, at. 53)), razão pela qual sua magnitude exige a observância imperativa dos princípios regedores do exercício do desporto profissional entabulados no Art. 2º, parágrafo único da Lei Geral do Desporto(Lei 9.615/98)[8]

A norma taxativa quanto a responsabilidade dos dirigentes desportivos, sejam eles de entidades de direção, de ligas ou de práticas desportivas, independente da sua modalidade jurídica adotada(associação ou sociedade empresária) se visualiza no art. 27 da Lei Pelé (Lei 9615/98)[9], sendo ainda mais específica em seu §11º.[10]

Entretanto, o assunto não se encerra aqui, pois a exigência de uma gestão transparente e a fixação de responsabilidade pessoal dos dirigentes pelos atos ilícitos praticados de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, encontrará regência ainda na Lei Pelé em seu art. 46-A[11] e seus incisos e parágrafos, ratificando quais atores, condutas e consequências dos atos antijurídicos praticados.

A Lei 13.155 de 04 de agosto de 2015, apelidada de Lei do PROFUT (Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro),  disciplinou não só um parcelamento especial de natureza fiscal e fundiária, mas tratou de forma exaustiva sobre a gestão transparente e democrática das entidades desportivas profissionais, nelas inclusas as ligas, as entidades de prática desportiva e as entidades de administração.

Nesse sentido, no capítulo intitulado (DA GESTÃO TEMERÁRIA NAS ENTIDADES DESPORTIVAS PROFISSIONAIS DE FUTEBOL) tratou o legislador, a partir do art. 24, de categorizar explicitamente a incidência do art. 50 do CC para os dirigentes desportivos, conceituando-os como sendo todo aquela que exerça, de fato ou de direito, poder de decisão na gestão da entidade, e especificando que a responsabilidade é solidária e ilimitada para a hipótese de prática de atos ilícitos, pelos atos de gestão temerária(art. 25) ou contrários ao previsto em contrato social ou estatuto.

Não resta a menor dúvida que as entidades desportivas são amplamente normatizadas, e a preocupação do legislador é visível, ao ponto de prescrever normas em duplicidade sobre fatos jurídicos idênticos, como se fosse necessário repetir para a si mesmo(ao ordenamento jurídico), que há forte possibilidade de prática de conduta reprovável, logo, deve ser estigmatizada com veemência, e descrita com detalhes caprichosos os fatos típicos, autores e sanções a serem aplicadas, com o objetivo de evitar as práticas ilícitas, ou puni-las com sanção exemplar.

Mais importante do que qualificar a responsabilidade solidária do dirigente quanto as suas práticas ensejadoras de obrigações da associação, é promover um ambiente profícuo, marcado por uma gestão transparente e democrática, restando assim elementos objetivos que viabilizem uma análise equilibrada dos seus atos de administração, considerando a complexidade e peculiar atividade de risco que envolve o exercício do desporto profissional.

Diz-se isso, pois a Lei do Profut destaca a inaplicabilidade da responsabilidade do dirigente, quando descaracterizada a culpa grave ou dolo, ou ainda a ausência da prática de má-fé (Art. 25, §1º, incs. I e II).

Ora, não é possível avaliar esse critério subjetivo com excelência, se o ambiente de gestão não reproduz confiança aos associados, e tão pouco a terceiros, restando uma verdadeira insegurança jurídica aos gestores quanto aos seus atos praticados, mesmo que pressuponha que sua atitude visava evitar prejuízo maior à entidade (Art. 25, §1º, inc. II parte final).

O saudoso Prof. Álvaro Melo Filho, citado na obra já capitulada do também jusdesportistas Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga, destacou a grande relevância da transparência e gestão profissionalizada em seu livro Nova Lei Pelé – Avanços e Impactos[12], como premissa e consequência do instituto da responsabilidade dos dirigentes desportivos, senão observe, in verbis:

(À evidencia, a preocupação do legislador desportivo ´no es la forma sino el fondo´, vale dizer, mais  do que a forma jurídica adotada, o importante é a transparência e a gestão profissionalizada dos entes desportivos profissionais que são dotados de uma peculiar lógica empresarial. Aliás, em sede de responsabilidade no futebol note-se que os investimentos sempre se fizeram, perigosa e arriscadamente, acima da capacidade de gerar receitas e sem propiciar retorno, funcionando como em espécie de bomba de efeito retardado.)

Esse destaque de conteúdo é muito mais abrangente do que a primeira percepção, e se amplia quando visualizada a mais heterogênea e incerta hermenêutica dos tribunais pátrios quanto a aplicação da despersonalização da pessoa jurídica e configuração da responsabilidade solidária dos dirigentes desportivos, em especial na seara trabalhista, cujos  excertos são agora reproduzidos, verbum ad verbum:

(Responsabilidade trabalhista – clube de futebol – desconsideração da personalidade jurídica – alcance

Agravo de Petição. Desconsideração da personalidade jurídica. Clube de Futebol. Responsabilidade dos dirigentes. Possibilidade. A legislação especial que institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências (art. 27, da Lei no 9.615/1998) estabelece a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica às entidades de prática desportiva, autorizando a sujeição dos bens particulares de seus dirigentes, ante o inadimplemento da verba trabalhista pela pessoa jurídica. TRT 3ª R. – Ap 0092740-17,2003,5,03,0081 – 4ª T, – Rela Paula Oliveira Cantelli – Dje 02-10-2017)

(Execução – associação desportiva – desconsideração da personalidade – dirigente – penhora de conta bancária – alcance

Mandado de Segurança. Execução. Associação desportiva. Desconsideração da personalidade. Dirigente. Penhora de conta bancária. O art. 50 do Código Civil adotou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. ´Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. No caso vertente, a ausência de pagamento de salários e outros recolhimentos trabalhistas em favor do atleta profissional caracteriza mau gerenciamento das finanças pelos dirigentes dos clubes. Portanto, possível a assunção da responsabilidade dos dirigentes das associações esportivas nos termos do art. 1.017/CC e do art. 27 da Lei no 9.615/1998.

TRT 10a R. – MS 0000135-18.2017.5.10.0000 – Rel. Dorival Borges de Souza Neto – Dje 18.09.2017 – p. 79)

Em sentido oposto, interpretando as especificidades da legislação desportiva, a mesma justiça especializada do trabalho, através de outro tribunal regional e do próprio TST, assim se posicionou, in verbis:

(Responsabilidade trabalhista solidaria – dirigentes – clube de futebol – alcance

Clube de Futebol. Responsabilidade solidária dos dirigentes. Nos termos do §11º do art. 27 da Lei no 9.615/98 (Lei Pelé), só haverá responsabilidade solidária dos dirigentes das entidades desportivas se comprovada a prática de atos ilícitos, gestão temerária ou atos contrários ao previsto no estatuto social, conforme disposição constantes art. 1.017 do Código Civil. Uma vez não comprovado que o 2º réu aplicou créditos ou bens sociais em favor próprio ou de terceiros, agiu com desvio de finalidade, cometeu ato ilícito ou praticou gestão temerária, de rigor a rigor a exclusão da responsabilidade solidária que lhe foi imputada por ser dirigente do clube esportivo.

TRT 15ª R. – RO 0001399-92.2013.5.15.0090 – (10955/2017) – Rela Tereza Aparecida Asta Gemignani – Dje 02.06.2017 – p. 3566)

(CLUBE DE FUTEBOL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS SÓCIOS E DIRIGENTES PELOS DÉBITOS TRABALHISTAS DOS CLUBES DE FUTEBOL QUE NÃO SE CONSTITUÍRAM EM SOCIEDADE EMPRESÁRIA. Discute-se no caso, a responsabilidade solidária do primeiro e do segundo reclamado, sócios e dirigentes do clube de futebol reclamado, pelos créditos trabalhistas devidos ao reclamante pelo mesmo, com espeque no disposto no art. 27 da Lei n. 9.615/1998, denominada ´Lei Pelé´. (omissis)

Por outro lado, a responsabilidade solidária prevista no art. 27, §11º, da Lei, somente se aplica em decorrência da prática de atos ilícitos, de gestão temerária ou atos contrários ao contrato social ou estatuto da entidade, não havendo disposição a respeito de débitos de natureza trabalhista.

AIRR e RR n. 42500-53.2006.5.01.0023, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 25.3.2015, 2ª Turma, Data de Publicação DEJT 31.3.2015)

Ratificando posicionamento de julgamento do TRT da 15ª. Região, que entendeu pela inaplicabilidade da responsabilidade dos dirigentes, quando não configurado no caso analisado a hipótese de aplicação de créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, entendeu a 6ª. Turma, sob a relatoria do Min. Aloysio Corrêa da Veiga (Data de Julgamento 5.10.2016, publicado em 7.10.2016, pelo desprovimento do AIRR n. 755-86.2014.5.15.0132.

O tema não se restringe apenas ao âmbito da justiça do trabalho, contudo, diante da multiplicidade de relações trabalhistas desenvolvidas entre atletas e clubes de futebol, além da natural tendência do julgamento com olhar mais atento ao direito do trabalho, sem observância as especificidades da legislação desportiva, há, sem dúvidas, uma maior divergência de posicionamento quanto a interpretação sobre as hipóteses e condições de incidência do instituto da despersonalização das entidades desportivas e responsabilização patrimonial com os bens particulares de seus dirigentes.

Mesmo que de forma periférica, importante destacar a normatização de cunho processual do instituto da despersonalização da pessoa jurídica, mais especificamente o ´Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica´ introduzido no CPC/15, que em seu art. 133 veda a aplicação ex officio pelo magistrado, cabendo a parte interessada, ou o Ministério Público, quando aplicável, sua utilização.

IV – A Lei 14.073 de 14 de Outubro de 2020 e a Responsabilidade dos Dirigentes Associativos Desportivos

A referida norma trouxe ao mundo jurídico vários preceitos de disciplinamento das relações do direito desportivo, desde ações emergenciais destinadas ao setor esportivo, em decorrência da pandemia do COVID-19,  como também tratativas sobre a inclusão das entidades desportivas no regime da transação tributária regulada pela Lei 13.988/2020, além de inserções na Lei Geral do Desporto.

Naquilo que interessa a esse breve escrito, o art. 11 da Lei 14.073 acresceu a Lei Pelé os Arts. 18-B, 18-C, 18-D e 18-E, cujo teor é exatamente a normatização das condutas dos dirigentes desportivos, especialmente naquilo que conceitua as hipóteses e condições de responsabilização individual de seus patrimônios quanto as obrigações das entidades desportivas, seja a modalidade jurídica que tenha adotado a entidade.

Não se imagina que uma norma seja criada sem função ou pretensão social-disciplinadora/pacificadora, contudo, volvendo ao início desse artigo, o que se visualiza no inteiro conteúdo das inserções feitas a Lei Pelé pelos arts. 18-B a 18-E é pura e simplesmente a necessidade de verbalizar e marmorizar o estigma da presunção de que a solução da gestão desportiva “passa” pela produção normativa de regras legais inibitórias e sancionadoras das condutas antijurídicas dos dirigentes desportivos.

Diz-se isso sem temor das críticas, pois as aglutinações legislativas decorreram tão somente da reprodução literal do que já estava posto no ordenamento jurídico, notadamente do teor dos arts. 24 a 27 da Lei do PROFUT, com pequeníssimas diferenças.

A justificativa certamente será de que as regras ali postas na Lei do PROFUT se aplicaria tão somente aos clubes que aderiram ao Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, contudo, esse argumento é falho, ao passo que a Lei 13.155/2015 disciplinou vários dispositivos da Lei Geral do Desporto e tratou de temas gerais que não se vinculavam diretamente a adesão ao PROFUT, ao revés, no capítulo autônomo que tratou da gestão temerária das entidades desportivas profissionais de futebol, em nenhum dos seus artigos fez referência ou condicionou a aplicação daquelas diretrizes normativas as entidades que tivessem ou não aderido ao referido programa.

A aplicação do art. 50 do CC aos dirigentes já existia e continua disposta no art. 27 da Lei 9.615/98, e a responsabilidade solidária e ilimitada dos dirigentes já está prevista no §11º do referido art. 27, sem considerar que a nova redação do art. 50 do CC, trazida pela Lei da Liberdade Econômica, já traz os signos necessários para que o intérprete da norma possa dissecar as hipótese de cabimento da responsabilidade patrimonial individual do dirigente, ao passo que a definição prescrita no §1º do art. 50 do CC é suficiente para desenhar qualquer desvio de conduta e gestão temerária.

Não menos é o suporte legal do art. 46-A da Lei 9.615/98, que descarrega várias obrigações e consequências por sua inobservância, restando claro, que a solução para a eficiência na gestão desportiva parte de uma cultura de comportamento profissional, com transparência e cooperação democrática, sendo suficiente os regramentos atuais para embasar sanções e desestímulos a prática de atos ilícitos por parte dos dirigentes das entidades desportivas.

Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.


¹ Flávio de Albuquerque Moura. Advogado. Sócio-Fundador da FMSA – FLAVIO MOURA SOCIEDADE DE ADVOGADOS. Presidente da Comissão de Direito Desportivo da Secção OAB/AL(Triênio 2019/2021). Conselheiro no Triênio 2019/2021 da OAB/AL. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Desportivo da Universidade Cândido Mendes(Ipanema). Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Desportivo da Unyleya. Árbitro no Segmento Desportivo do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Membro Associado do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro Efetivo, titular da Cadeira no 38 da ANDD – Academia Nacional de Direito Desportivo.

2Curso de direito civil brasileiro, volume I: teoria geral do direito civil / Maria Helena Diniz. – 28. Ed. – São Paulo : Saraiva, 2011.

³ (2005/0184963-0)1a. Turma, unänime, j. 24-04-2007

[4] DireitoCivil – volume 1 : parte geral / Paulo Lôbo – 7. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação 2018. p 205

[5]Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[6]op.cit. p.205

[7]Manual de direito do trabalho desportivo / 2. Ed. – São Paulo : Ltr, 2017 – p. 207

[8](Art. 2º. O desporto, como direito individual, tem como base os princípios:

Parágrafo único. A exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica sujeitando-se, especificamente, à observância dos princípios:

I – da transparência financeira e administrativa;

II – da moralidade na gestão desportiva;

III – da responsabilidade social de seus dirigentes;

IV – do tratamento diferenciado em relação ao desporto não profissional; e

V – da participação na organização desportiva do País.)

[9]Art. 27. As entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes ao disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, além das sanções e responsabilidades previstas no caput do art. 1.017 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros. (Redação dada ao caput pela Lei nº 10.672, de 15.05.2003, DOU 16.05.2003)

[10]§ 11. Os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, nos termos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 12.395, de 16.03.2011, DOU 17.03.2011)

[11]Art. 46-A. As ligas desportivas, as entidades de administração de desporto e as de prática desportiva envolvidas em qualquer competição de atletas profissionais, independentemente da forma jurídica adotada, ficam obrigadas a: (Redação dada pela Lei nº 10.672, de 15.05.2003, DOU 16.05.2003)

[12] Nova lei Pelé : avanços e impactos / Rio de Janeiro : Maquinária, 2011, p. 89

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