A ROLETA-RUSSA DA SAF

João Felipe Artioli

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD

Roleta-russa é um jogo de azar em que os participantes colocam um cartucho em uma das câmaras de um revólver, giram o tambor e fecham, de modo que a localização da bala seja desconhecida. A chance de que a arma dispare aumenta a cada disparo perdido, já que há um número fixo de espaços vazios no tambor e o cilindro não é girado após cada disparo.

E o que isso tem a ver com a Sociedade Anônima do Futebol (SAF)? O jogo, nada. A expressão, tudo! Roleta-russa remete a assumir riscos, e isso tem tudo a ver com a decisão dos clubes em constituir uma SAF.

A Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021[2], é um dos maiores avanços do futebol brasileiro das últimas décadas, igual ou até mesmo maior do que a Lei Pelé, ouso dizer. Mas, como nas palavras de José Francisco Mansur, que dispensa apresentação, a SAF “não deve ser recebida com euforia, mas com muita esperança”[3].

É palpável a crença de torcedores e dirigentes de que a solução para todos os problemas do clube será se tornar SAF, que o clube passará a ter transparência e profissionalismo, que será bem administrado e, principalmente, rico. A SAF não vem, necessariamente, para montar supertimes, ao menos não para a realidade da grande maioria dos clubes de futebol brasileiros. Falamos de SAF, mesmo que ainda não seja bem compreendida qual é a diferença entre um investidor e um financiador (o famoso mecenas) no futebol.

A real avaliação dos clubes de futebol brasileiros fica prejudicada pelas suas dívidas. Sem conhecer os termos das negociações, não seria prudente afirmar que Cruzeiro, Botafogo (RJ) e, possivelmente, Vasco da Gama tenham sido avaliados nos valores das ofertas divulgadas. Aporte financeiro é diferente de valor de compra e, ao que parece, os valores serão aportados para sanar problemas financeiros a curto prazo.

A grande questão é que o atual cenário dos clubes brasileiros só faz aumentar o “oba-oba” pela busca ou em torno de propostas salvadoras. É natural que os torcedores e dirigentes (estes menos natural) pensem assim. Afinal, a SAF é o melhor caminho.

Mas alguns exemplos de clubes que adotam o modelo empresarial podem quebrar alguns paradigmas estabelecidos sobre esse formato jurídico.

Tradicional clube inglês, o Sunderland adota modelo empresarial, mas isso não garantiu sucesso esportivo e anda penando dentro das quatro linhas ultimamente. Mesmo com cerca de uma década de estabilidade na gestão, o clube inglês foi vendido duas vezes em três anos. O segundo proprietário vendeu por causa da pressão da torcida que não o queria mais.

Outro exemplo é o clube londrino Charlton Athletic, que teve uma relação conturbada de seis longos anos com o seu proprietário, o belga Roland Duchâtelet, até que fosse adquirido pelo consórcio East Street Investments. Pouco tempo depois, o clube foi adquirido por Thomas Sandgaard, atual proprietário.

Além disso, diversos clubes britânicos tradicionais foram à falência nos últimos anos, como o Bury, Bolton, Derby, Portsmouth e Wigan.

O Parma, tradicional clube da região Emilia-Romagna, teve no gol nomes como Taffarel e Buffon, e viveu seu grande período nos anos 90, principalmente na segunda metade, mas declarou falência após a Parmalat. Mudou de nome e escudo, recomeçando na Série D. Atualmente disputa a Série B.

A Parmalat é bem conhecida dos brasileiros, principalmente dos palmeirenses. Apesar de ser um contexto jurídico diferente, a partir do momento que ela saiu o clube passou por sérios problemas, sendo rebaixado para a Série B do Brasileirão em 2002.

Outros tantos exemplos de clubes com modelo empresa que não deram muito certo são, o Málaga, da Espanha, e o Belenenses, de Portugal. No Brasil, o União São João, Guaratinguetá e Figueirense são outros exemplos.

O União São João de Araras, como é conhecido, foi fundado como uma associação sem fins lucrativos e se tornou clube-empresa em 1994, ainda sob a vigência da Lei Zico (Lei nº 8.672, de 6 de julho de 1993), sendo considerado o primeiro a adotar esse modelo no Brasil. Em 2015, em meio a grave crise financeira, pediu licenciamento e encerrou as atividades, mas recentemente iniciou o processo para se tornar SAF.

Também há clubes que deram certo nessa modalidade. Na Alemanha, o Bayer Leverkusen, de propriedade da farmacêutica de mesmo nome, e o Wolfsburg, de propriedade da Volkswagen. Na Holanda, o PSV Eindhoven, com sua parceria história com a Philips, tanto o clube quanto o estádio levam o seu nome.

Talvez um dos casos de maior sucesso é o da Juventus. A Velha Senhora é administrada pela família Agnelli (Fiat e Ferrari), sócia majoritária desde 1967 quando o clube de Turim se converteu em Sociedade Anônima.

Diversos são os perfis dos investidores, como, por exemplo, os torcedores que se unem como acionistas minoritários (Sevilla); os fundos de investimentos ou pessoas físicas (Juventus e Milan); as empresas que buscam fortalecer e expandir suas marcas (Red Bull); os que buscam desenvolver relações políticas e de negócios pelo futebol (PSG); o cross-ownership (City Football Group), método pelo qual ocorre a aquisição de mais de um clube em mercados com diferentes características; e o sportswahshing (Newcastle), método utilizado para melhorar a imagem ou esconder ações que não querem que sejam conhecidas ao investir em um esporte de importância internacional.

Por isso que a constituição de uma SAF deve ser precedida de uma mudança na cultura de visão do futebol pelo clube, com gestão responsável e operando de acordo com as suas condições, ainda enquanto entidade de prática desportiva formal de natureza associativa e sem fins lucrativos.

E, assim como aquele que irá investir no clube, também caberá ao clube avaliar o risco do negócio como um todo, se distanciando do “oba-oba” e lançando mão da Due Diligence para conhecer com quem estará prestes a criar uma relação. Um clube bem estruturado e organizado terá condições de adotar métodos preventivos para dar maior confiabilidade ao negócio que pretende realizar, aplicando as diligências prévias para prevenir e mapear possíveis riscos de gestões desastrosas.

Só virar SAF não será a solução e ainda poderá se tornar um problema. Quando se abre ao mercado é uma roleta-russa! Não sabe se será como o exemplo da Juventus ou da União São João de Araras.

* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.


[1] Graduado em Direito pela FACAMP, Pós-graduado em “Direito Tributário” pelo IBET e em “Aprimoramento em Compliance” pela FACAMP, membro filiado ao IBDD e colunista, sócio do escritório Ezarchi & Artioli Advogados Associados, que atua no Direito Desportivo desde 1996.

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm

[3] Em entrevista para a Jovem Pan: https://www.youtube.com/watch?v=Y66QimF1M98

 

Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/0itOO6MC29PJlvTPmfu6P2