A SOCIEDADE ANÔNIMA DE FUTEBOL E SUAS NUANCES. REFLEXÕES INICIAIS ACERCA DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI N° 14.193/2021

João Marcos Guimarães Siqueira

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

No mês de agosto do corrente ano foi sancionada com vetos a Lei n° 14.193/2021, que cria o Clube-Empresa através da regulação expressa da Sociedade Anônima do Futebol (SAF). De iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco, a lei trouxe em sua origem inovações no leque societário dos clubes de futebol, no regime específico de tributação, além de delimitar expressamente a sucessão trabalhista e no âmbito das relações com as entidades de administração do desporto (artigo 2º e incisos da referida lei).

Para além dos pontos destacados no parágrafo acima, o legislador dedicou uma seção inteira para tratar especificamente “Do Modo de Quitação das Obrigações” (Capítulo I, seção V), em especial da estruturação do passivo trabalhista dos clubes ou pessoas jurídicas, seja na forma do Regime Centralizado de Execuções, seja através da Recuperação Judicial e Extrajudicial do Clube ou Pessoa Jurídica Original.

A rigor, a constituição de clubes de futebol fora do eixo associativo não é exatamente uma novidade no mercado brasileiro, na medida em que o próprio artigo 27 da Lei Pelé (Lei n° 9.615/98), ao tratar da responsabilidade direta dos bens particulares dos dirigentes das entidades de prática desportiva, não faz qualquer limitação quanto à “forma jurídica adotada” pelas agremiações em relação ao modelo societário. O mesmo artigo 27, em seu §13º não faz também qualquer distinção acerca da modalidade de constituição das entidades esportivas.

Some a isso a própria permissão conferida pela Lei da Liberdade Econômica (Lei n° 13.874/2019), sendo que, no Brasil, mesmo antes da entrada em vigor da Lei do Clube-Empresa, já havia clubes constituídos na forma de sociedades empresariais, por exemplo, os clubes Atlético Tubarão SPE Ltda e o São Caetano Futebol Ltda.

Não se pode negar em absoluto que ainda persiste no futebol a figura do dirigente amador, sem vínculo empregatício e sem remuneração.

Neste diapasão, foram as constatações da Exma. Desembargadora Ana Paula Pelegrina Lockmann, em seu artigo “Ato das Execuções Concentradas – Bom para o Atleta, Bom para o Clube e bom para a Justiça”, publicado na obra “Direito Desportivo Aspectos Penais e Trabalhistas Atuais”:

Como é sabido, o fenômeno do esporte movimenta a paixão de multidões, une os povos, está presente na vida cotidiana, jornais, revistas, televisão, internet, nas conversas entre amigos etc. É um cenário atrativo à ação da lógica capitalista no mundo do esporte.

Por isso, à medida em que o desporto foi se desenvolvendo, ao mesmo tempo foi se mercantilizando, exsurgindo a indústria capitalista do desporto, tornando-se uma atividade econômica de grande relevo.

Ocorre que a gestão dos clubes não acompanhou esta evolução. Ainda permanece uma forte presença do amadorismo nas administrações de inúmeras agremiações.[2]

A Constituição Federal, em seu artigo 217, conferiu expressa autonomia às entidades esportivas, mas no plano prático essa mesma autonomia em muitos casos tem servido como ponte intransponível à responsabilização pessoal dos dirigentes de agremiações, a despeito da previsão do próprio artigo 27 da Lei Pelé, como também do artigo 24 da Lei do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut), criado com a aprovação da Lei n° 13.155/2015.

O Código Civil de 2002 regulamenta as associações em exatos nove artigos, do artigo 53 ao 61, sem que se possa extrair do texto legal conceitos claros de governança, compliance[3] e transparência. É exatamente na lacuna de disposições do próprio Código Civil que se buscou com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol estabelecer, através de uma nova fotografia societária, um vínculo direto com as disposições inerentes a Lei n° 6.404/76 (Lei da S/A), observados os princípios de transparência, boas práticas corporativas e um rígido compliance.

Entendida como um dos princípios que geram valor de longo prazo, “A governança corporativa é um sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselhos de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas”[4].

Visando a importação para o futebol de um mecanismo de controle mais rígido e seguro, que o legislador buscou dar às Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) o mesmo tratamento empregado às Sociedades Empresariais constituídas na forma da Lei 6.404/76.

É verdade, contudo, que a simples alteração societária desassistida de mecanismos paralelos de gestão efetivos não terá o condão de gerar a receita necessária para o equilíbrio financeiro de boa parte dos clubes brasileiros.

Existem alguns desafios na aplicação prática da nova lei, tal qual a própria jurisprudência trabalhista a ser firmada nas questões inerentes à sucessão no âmbito dos contratos de trabalho dos empregados que permanecerem vinculados ao clube associativo e não à Sociedade Anônima de Futebol (SAF). Não se pode perder de vista também a própria controvérsia acerca da aplicação dos benefícios do Regime Centralizado de Execuções e a Recuperação Judicial (Lei nº 14.193/2021) às agremiações que optarem pela permanência no modelo associativo, pontos esses que serão explorados no decorrer do presente estudo.

  1. A SUCESSÃO TRABALHISTA À LUZ DA LEI N° 14.193/21

A sucessão trabalhista é o fenômeno segundo o qual ocorre a transferência de titularidade de empresa ou estabelecimento, com transmissão e créditos pela sucessiva e assunção de dívidas pela sucessora.

Antes da entrada em vigor da propalada reforma trabalhista, a sucessão vinha disciplinada através de dois artigos distintos, quais sejam os artigos 10 e 448 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). De se notar que ambos prestigiam em suas essências o direito adquirido, independentemente de qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa.

A toda evidência, a regra contida na CLT sempre esteve diretamente ligada a preservação dos direitos conquistados no curso da relação de emprego, em nada interferindo para o empregado a alteração societária da pessoa jurídica empregadora.

Era justamente esse o entendimento constante da Orientação Jurisprudencial nº 261 do colendo Tribunal Superior do Trabalho (TST):

261. BANCOS. SUCESSÃO TRABALHISTA (inserida em 27.09.2002)

As obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para o banco sucedido, são de responsabilidade do sucessor, uma vez que a este foram transferidos os ativos, as agências, os direitos e deveres contratuais, caracterizando típica sucessão trabalhista[5].

Nessa linha de raciocínio, segundo a lição de Evaristo de Moraes Filho (1960), a responsabilidade integral do sucessor se opera em relação não só aos contratos de trabalho em curso, como também aos rescindidos:

[…] fica o sucessor inteiramente responsável por todos os direitos adquiridos durante a vigência anterior do contrato. Mesmo para os contratos já rescindidos pelo antigo empregador, inexistentes no momento do trepasse, fica privativamente responsável o adquirente do negócio. Em suma: é como se não ocorresse a sucessão de empresa, por isso que o novo titular subentra ou sub-roga-se em todos os direitos e obrigações de seu antecessor. As relações jurídicas passadas e presentes permanecem as mesmas, com todos os seus efeitos. Todos os débitos constituídos antes da cessão, ao tempo do primitivo titular. Dá-se uma sucessão em sentido absoluto. O novo empresário, escreve Mossa, subentra na posição do precedente, a ele passam todas as pretensões e todas as exceções, todos os fatos inerentes à conclusão e à execução[6].

A Lei n° 13.467/2017, por sua vez, trouxe duas inovações no texto original celetista, sendo a primeira com a inserção do artigo 10-A, que versa exclusivamente sobre a responsabilidade subsidiária do sócio retirante e a segunda no artigo 448-A da CLT, que trata da responsabilidade do sucessor pelas dívidas contraídas anteriormente à constituição da empresa sucessora.

Para o direito do trabalho há na sucessão trabalhista, por essência, um componente universal, estando, portanto, também caracterizada nas hipóteses de transferência, total ou parcial.

Houve evidente alteração no regramento da sucessão trabalhista na Sociedade Anônima do Futebol, estabelecendo o legislador critérios objetivos para esse efeito. O artigo 2º, a Lei n° 14.193/21, em verdade, estipulou três cenários distintos quanto às formas de constituição da SAF. São elas:

Art. 2º A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:      

I – pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol;

II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;

III – pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.[7]

Naturalmente, não haveria que se falar em qualquer espécie de sucessão de empregadores na hipótese prevista no inciso III, que trata especificamente de um novo negócio, sem que tenha havido, nesta hipótese, qualquer atividade econômica anterior à vigência da nova lei.

Os demais incisos I e II abarcam situações distintas, sendo que o primeiro regula a sucessão plena, com a consequente transformação do clube ou pessoa jurídica e o segundo a sucessão advinda da cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica.

Não se nega, contudo, a harmonização da regra prevista no inciso I do artigo 2º da Lei nº 14.193/2021 com os princípios constantes dos artigos 10 e 448 da CLT, mas houve de certo modo perceptível rompimento dessa tendência legislativa na análise das premissas fixadas no inciso II do artigo 2º da lei instituidora da Sociedade Anônima de Futebol.

A cisão de que trata o dispositivo acima, delimitou a sucessão nas seguintes hipóteses:

Art. 2º A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:

II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;

§ 2º Na hipótese do inciso II do caput deste artigo:

I – os direitos e deveres decorrentes de relações, de qualquer natureza, estabelecidos com o clube, pessoa jurídica original e entidades de administração, inclusive direitos de participação em competições profissionais, bem como contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol serão obrigatoriamente transferidos à Sociedade Anônima do Futebol; […][8].

Nesta hipótese (cisão do departamento de futebol) a própria lei, ao estabelecer critérios objetivos para a sucessão, retira dos credores no artigo 2º, § 2º, IV, qualquer obrigatoriedade de aquiescência na transferência do patrimônio da entidade associativa para a SAF, salvo se disposto em contrato ou negócio jurídico, ou seja, deixa expressamente ressalvadas as garantias reais.

A análise da sucessão trabalhista na Sociedade Anônima de Futebol não está restrita ao artigo 2º da Lei 14.193/2021, mas também ao que dispõem os artigos 9º e 10º, que contemplam a seguinte redação:

Art. 9º A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei.

Parágrafo único. Com relação à dívida trabalhista, integram o rol dos credores mencionados no caput deste artigo os atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol.

Art. 10.  O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:

I – por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;

II – por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista[9].

A lei trouxe em seu bojo verdadeira inovação no quesito sucessão trabalhista, relativizando de certo modo a proteção ao direito adquirido, mas com contrapartidas efetivas, conforme dispõem os incisos I e II do artigo 10 da lei.

É preciso dizer que a Justiça do Trabalho terá em mãos alguns desafios pela frente e que não se restringirão apenas ao quesito sucessão.

  • A CENTRALIZAÇÃO DAS EXECUÇÕES E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL À LUZ DA LEI 14.193/21: PRINCIPAIS CONTROVÉRSIAS

A centralização das execuções trabalhistas não é necessariamente um tema novo na doutrina e jurisprudência e remonta o início do século XXI. No Rio de Janeiro, o primeiro Ato do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região disciplinando essa modalidade de estruturação do crédito trabalhista foi instituído no ano de 2003, sob a numeração 2.772/2003. A premissa de sustentação da validade do referido Ato pautava-se justamente na redação à época do então vigente artigo 620 do Código de Processo Civil (execução processada de forma menos gravosa ao devedor).

Um dos “considerandos” do Ato n° 2.772/2003, já sinalizava uma possível inviabilidade das atividades dos clubes, conforme se extrai da seguinte transcrição:

CONSIDERANDOo número expressivo de execuções em curso nets Justiça, com comprometimento e perda de patrimônio dos requerentes, chegando, segundo alegam, à “inviabilidade de prosseguimento das atividades, o que será motivo decomoção social, seja em razão de implicar o fechamento de centenas de postos de trabalho, aumentando o nível de desemprego, seja em decorrência da frustração de milhões de torcedores, que o futebol ainda é alegria do povo[10].

Não se nega sob a ótica conceitual a efetividade da centralização das execuções trabalhistas, mas no plano prático o que se viu foram sucessivos descumprimentos das condições pactuadas junto aos credores, conforme destacou a Exma. Desembargadora Raquel de Oliveira Maciel no julgamento do Agravo Regimental de número 0103072-19.2021.5.01.0000, interposto pelo Clube de Regatas Vasco da Gama contra a decisão que determinou o processamento do Regime Especial de Execução (REEF) em face da garantia ofertada pelo Clube nos autos do Plano Especial de Pagamento Trabalhista (PEPT):

Vale relembrar que o Club de Regatas Vasco da Gama já se valeu de vários planos especiais de execução no âmbito deste 1º Regional, constituindo, assim, um dos pilares iniciais deste modelo de tentativa de eficiência jurisdicional, coma satisfação dos créditos laborais sem a sujeição do devedor a trabalho de óbito. Por outro lado, ninguém desconhece a importância do desporto para a sociabilidade, menos ainda à movimentação da energia econômica e da geração de emprego, sobretudo quando se está a falar de clube de tradição mais que centenária, com dezenas de milhões de adeptos/torcedores, numerosas vezes campeão em várias modalidades desportivas, e com formação de atletas profissionais e amadores, não só no âmbito do futebol. Ninguém desconhece, enfim, o imenso potencial econômico de clubes desportivos, sobretudo daqueles que têm o desporto mais popular do Brasil, o futebol, como modalidade principal, e que arregimentaram ao longo de sucessivas décadas e em torno de emblemáticos atletas como Barbosa e Bellini, Garrinha e Nilton Santos, Telê e Assis etc., uma imensidão de seguidores. Poder, no entanto, que deve ser aferido no plano da materialidade. A estrutura histórica e o potencial creditício do devedor devem ser amoldados ao cumprimento das obrigações reais assumidas, especialmente quando obrigações trabalhistas, de sabida natureza alimentar, estabelecidas já em sede especial para quitação, sujeitando trabalhadores credores, que nada têm a ver com os percalços gerenciais e econômicos pelos quais passam seus empregadores, à satisfação de seus créditos de modo mais favorável àquele que ‘deve[11]

O Procedimento de Reunião de Ações foi regulamentado pela Corregedoria do colendo TST através do Provimento nº 1, de 09 de fevereiro de 2018, estando dividido em quatro capítulos que fixam diretrizes não só para a apreciação inicial do Plano perante os Regionais, como a obrigatoriedade de oferta de garantia patrimonial suficiente ao atendimento das condições estabelecidas Plano Especial de Pagamento Trabalhista, passível de execução forçada.

Não menos relevante, a Lei n° 14.193/21, previu a quitação das obrigações financeiras através de duas modalidades distintas, seja pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções, seja por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, na forma da Lei nº 11.101/2005.

O requerimento de processamento do Regime Centralizado de Execuções se processa mediante manifestação da parte interessada ao Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, cabendo ao Poder Judiciário disciplinar o Regime Centralizado por meio de Ato dos Tribunais Regionais, com prazo de vigência de seis anos para pagamento dos credores, prorrogáveis por mais quatro anos na hipótese de adimplência de ao menos 60% do seu passivo original.

O grande debate que ganha relevo na atualidade é a possibilidade de se estender às agremiações associativas os benefícios tanto do Regime de Centralização das Execuções quanto da Recuperação Judicial, ainda que não haja por parte delas interesse na migração para a formatação societária de Sociedade Anônima do Futebol.

O parcelamento puro e simples de dívidas desacompanhado das contrapartidas dos incisos I e II do artigo 10 da Lei 14.193/2021, esvazia de certa forma o verdadeiro propósito e finalidade da lei. Seria então, dentro dessa ótica, razoável interpretar os artigos 13 e 14 à luz dos incisos I e II do artigo 2º, da mesma lei, ou seja, quando o legislador se referiu à “pessoa jurídica original”, nada mais fez que reproduzir a expressão já referida no citado artigo 2º que trata especificamente da Constituição da SAF.

Deve ser destacado que a Lei da Sociedade Anônima do Futebol inseriu o parágrafo único ao artigo 971 do Código Civil Brasileiro, que fixa diretrizes para o reconhecimento como empresária da associação que desenvolve atividade futebolística. O texto legal estabelece como condição para a configuração da Sociedade Anônima de Futebol a inscrição no Registro Público de Empresas, o que não aconteceria nas hipóteses de permanência no regime associativo.

Não se nega, da mesma forma, vigência ao artigo 10 da Lei 14.193/2021, que estabelece a seguinte condição:

Art. 10.  O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:

I – por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;

II – por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista[12].

Pela leitura do dispositivo supra, há aparente vinculação dos incisos I e II acima com a constituição da Sociedade Anônima de Futebol, justamente em função das destinações financeiras ali previstas. Sem a conversão da associação para sociedade empresária, estariam ausentes as contrapartidas que justificariam o espírito da lei em si.

Este mesmo entendimento foi ratificado pela Exma. Desembargadora Raquel Maciel, em sede de deferimento do efeito suspensivo requerido pelos credores nos autos do Agravo Regimental interposto no PetCivic n° 0103142-36.2021.5.01.0000, em que figura como agravado o Clube de Regatas Vasco da Gama:

Voltando ainda aos requisitos previstos na nova legislação, ressalto que no próprio preâmbulo a Lei 14.193/21 “institui a sociedade anônima do futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico”, destinando-se, portanto, e em especial o regime requerido pelo Club de Regatas Vasco da Gama, às sociedades anônimas de futebol, à associação civil e à sociedade empresarial dedicada ao fomento e à prática do futebol.

Consoante artigo 14 da Lei 14.193/21, o REC – regime centralizado de execuções postulado pelo clube consiste “em concentrar no juízo centralizador as execuções, as suas receitas e os valores arrecadados na forma do artigo 10 [da mesma] lei, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada”. Eventual deferimento desse especial regime de execução tem impacto direto nos processos de execução em face do clube requerente ao impedir a constrição de seu patrimônio ou receitas (artigo 23). Devendo salientar, ainda, e em sede de análise sumária, que a própria lei deve ser aplicada apenas ao clube que optar pela transformação em sociedade anônima. Tanto assim que essa, a sociedade empresarial, que será, enfim, garantidora do plano requerido. É o que fica claro no caput dos artigos 14 e 18 e ainda no § 2º do artigo 15, § 2º, do que se conclui que tenha que existir uma sociedade anônima para verter esses valores para o plano[13].

Não se pode perder de vista que o artigo 20 da Lei nº 14.193/2021, prevê métodos alternativos ao recebimento de dívidas, como por exemplo, a conversão do crédito em ações da Sociedade Anônima de Futebol, o que não encontraria ressonância nas hipóteses de manutenção do regime associativo.

Será preciso, com alguma expectativa, aguardar o entendimento jurisprudencial a ser firmado, a fim de que sejam expressamente delineadas as condições e requisitos necessários para que o clube ou pessoa jurídica natural possam se valer não só da Recuperação Judicial, como também do Regime de Centralização de Execuções de que tratam os artigos 13 e 14 da Lei nº 14.193/2021.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob a ótica trabalhista, é aguardar com alguma expectativa a definição da jurisprudência quanto aos verdadeiros destinatários da nova lei, ou seja, se a sua aplicação no plano prático está necessariamente atrelada aos clubes que desejarem migrar para o regime empresarial, ou não.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:4675.1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 11 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 13.155, de 4 de agosto de 2015. Estabelece princípios e práticas de responsabilidade fiscal e financeira e de gestão transparente e democrática para entidades desportivas profissionais de futebol; institui parcelamentos especiais para recuperação de dívidas pela União, cria a Autoridade Pública de Governança do Futebol – APFUT; dispõe sobre a gestão temerária no âmbito das entidades desportivas profissionais; cria a Loteria Exclusiva – LOTEX; altera as Leis n º 9.615, de 24 de março de 1998, 8.212, de 24 de julho de 1991, 10.671, de 15 de maio de 2003, 10.891, de 9 de julho de 2004, 11.345, de 14 de setembro de 2006, e 11.438, de 29 de dezembro de 2006, e os Decretos-Leis n º 3.688, de 3 de outubro de 1941, e 204, de 27 de fevereiro de 1967; revoga a Medida Provisória nº 669, de 26 de fevereiro de 2015; cria programa de iniciação esportiva escolar; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13155.htm. Acesso em: 11 set. 2021.

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Requerido: Club de Regatas Vasco da Gama. Relatora: Theocrito Borges dos Santos Filho, 03 agosto de 2021. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 11 de setembro de 2021. Disponível em: https://pje.trt1.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0102738-82.2021.5.01.0000/2. Acesso em: 11 set. 2021.

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BRASIL. CORREGEDORIA-GERAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Provimento n. 1/CGJT, de 9 de fevereiro de 2018. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho: caderno judiciário do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, DF, n. 2415, p. 41-44, 15 fev. 2018. Disponível em https://hdl.handle.net/20.500.12178/124870. Acesso em: 11 set. 2021.

CASTRO, C. A. et al. Manual de Compliance. 3. Ed. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. 11 set. 13.

FILHO, Evaristo de Moraes. Sucessão nas obrigações e a teoria da empresa. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1960.

GIORDANI, Francisco Alberto Da Motta Peixoto; GIORDANI, Manoel Francisco de Barros da Motta Peixoto. Direito Desportivo Aspectos Penais E Trabalhistas Atuais. São Paulo: LTr, 2017.

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[1]João Marcos Guimarães Siqueira – Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Basquete; Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Vôlei; membro da International Sports Lawyers Association e Especialista em Direito Desportivo e do Trabalho, Sócio do Escritório Bosisio Advogados. E-mail: [email protected].

[2] GIORDANI, Francisco Alberto Da Motta Peixoto; GIORDANI, Manoel Francisco de Barros da Motta Peixoto. Direito Desportivo Aspectos Penais E Trabalhistas Atuais, 2017, p. 12.

[3] Castro (2021, p. 49) informa que compliance integra um sistema complexo e organizado de procedimentos de controle de riscos e preservação de valores intangíveis que deve ser coerente com a estrutura societária, o compromisso efetivo da sua liderança e a estratégia da empresa, como elemento, cuja adoção resulta na criação de um ambiente de segurança jurídica e confiança indispensável para a boa tomada de decisão.

[4] Instituto de Brasileiro de Governana Corporativa. Disponível em: https://www.ibgc.org.br/conhecimento/governanca-corporativa. Acesso em: 11 set. 2021.

[5] BRASIL, Orientação Jurisprudencial  n° 261/SDI1/TST, 2002.

[6] FILHO, 1960, p. 254.

[7] Op. cit., Lei n° 14.193, 2021, art. 2°, I, II e III.

[8] Ibidem. art. 2°, II, § 2°, I.

[9] Ibidem, arts. 9 e 10, I, II.

[10] Op. cit., Ato nº 2.772, 2003, grifos nossos.

[11] Op. cit., AgRT 0103072-19.2021.5.01.0000, 2021.

[12] Idem, Agravo Regimental interposto no PetCivic n° 0103142-36.2021.5.01.0000, 2021.

[13] Idem, AgRT n° 0103142-36.2021.5.01.0000, 2021, grifos nossos.