Mariana Araújo Evangelista[1]
A prática do esporte é um direito humano. Todo indivíduo deve ter acesso à prática esportiva, sem discriminação de qualquer espécie, em respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos. É o que preceitua a Carta Olímpica, um dos documentos mais importantes do esporte e que embasa legislações e regulamentos ao redor do mundo.
Apesar de toda conceituação e da capacidade do esporte de aproximar indivíduos, promovendo a inclusão e a participação, o esporte acaba sendo também um reflexo da sociedade e dos desafios enfrentados por esta, incluindo o racismo, que tem se manifestado, principalmente, nas experiências vividas por atletas negros. Sendo assim, diante do aumento dos casos de racismo no esporte, torna-se fundamental analisar as leis vigentes no Brasil, as regulamentações e o papel de alguns atletas que se tornaram símbolos dessa luta social, conforme veremos a seguir.
1. O racismo, a legislação brasileira e os regulamentos esportivos
No Brasil, a legislação pública e privada traz disposições específicas para combater o racismo. O racismo é crime inafiançável e imprescritível, conforme previsto no art. 5º, inciso XLII da CF. Além disso, a Lei do Racismo[2] define quais atitudes correspondem aos crimes de preconceito de raça ou cor, estabelecendo, ainda, severas punições para práticas discriminatórias.
Na esfera esportiva, a Lei Geral do Esporte[3] reforça a necessidade de combater o racismo em eventos esportivos. A legislação classifica esses atos como infrações graves, puníveis com reclusão de até 4 anos e multa. Em alguns casos, a reclusão pode ser convertida em pena impeditiva de comparecimento às arenas esportivas por até 6 anos. No mais, a lei reforça a responsabilidade das entidades esportivas em adotar medidas preventivas e educativas para combater a discriminação racial, com o objetivo de promover um ambiente de respeito e igualdade no meio esportivo.
Outro dispositivo relevante é o artigo 243-G do CBJD, que estabelece sanções para atos discriminatórios relacionados a preconceito racial. As penas incluem suspensão de 5 a 10 partidas para jogadores e treinadores, além de punições coletivas, caso o ato seja praticado por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, como a perda de pontos para o clube.
É evidente, portanto, que o Brasil possui vasta legislação com o objetivo de proteger atletas vítimas de racismo. Todavia, é importante que os regulamentos das competições também adotem tal cuidado.
Isso pois, especificamente no futebol – modalidade essa com mais visibilidade no Brasil –, os regulamentos reforçam o compromisso necessário com os direitos humanos, porém, não possuem previsão específica do que fazer em casos como racismo.
Em vista de tal lacuna e buscando melhoras no cenário brasileiro para incentivar políticas positivas contra o racismo, em 2022, a CBF propôs a inclusão da perda de pontos, ou punição esportiva, por atos discriminatórios no Regulamento Geral de Competições, mas a proposta não foi implementada. Ainda, em janeiro de 2025, a FPF adotou o Tratado pela Diversidade e Contra a Intolerância no Futebol Paulista, que busca esclarecer e criar protocolos de ação para casos de discriminação racial, LGBTQIAPN+, em razão de origem, capacitismo, discriminação em razão de deficiência e/ou qualquer outra forma de crime de intolerância.
É evidente, portanto, que, por mais que legislação proteja os atletas, é essencial que os regulamentos esportivos sejam mais rigorosos e efetivos na punição de infrações. O direito, por sua vez, além de punir, deve promover mudanças culturais significativas, com o fito de prevenir que atos de discriminação racial ocorram em qualquer âmbito.
2. A aplicação pelas entidades esportivas das legislações e regulamentos
Como mencionado anteriormente, embora a legislação brasileira ofereça proteção robusta contra o racismo, na prática, sua aplicação tem se mostrado ineficaz.
À título de exemplo recente, na partida da Libertadores Sub-20 entre Palmeiras e Cerro Porteño, o atleta Luighi, de apenas 18 anos, foi chamado de “macaco” por um torcedor adversário, que gesticulou e cuspiu no atleta. Luighi, no mesmo instante, relatou o ocorrido ao árbitro, que, seguindo as normas da FIFA, deveria ter paralisado a partida. No entanto, nenhuma ação foi tomada naquele momento.
O Cerro Porteño apenas fora punido posteriormente pela Conmebol, graças à coragem de Luighi, que, após a partida, quando o entrevistador perguntou tão somente questões técnicas do jogo, manifestou publicamente sua tristeza e indignação. A punição ao clube consistiu em multa e portões fechados, mas apenas na categoria Sub-20, o que foi considerada uma punição branda quando comparado ao ato discriminatório punível.
O caso é ainda mais grave considerando que o clube já havia sido denunciado por comportamentos semelhantes em outras ocasiões, e as punições limitaram-se a multas. Essas sanções, embora afetem financeiramente os clubes, não têm impacto direto sobre os torcedores, que permanecem impunes e seguem cometendo atos criminosos que afetam profundamente o psicológico dos atletas.
Portanto, é necessário que as punições por eventuais violações à legislação e regulamentos esportivos vão além das multas pecuniárias e atinja aquilo que realmente mobiliza o torcedor: sua ligação emocional com o clube. Medidas como perda de pontos, portões fechados em categorias de base e principais, ou até mesmo desclassificação de competições, são medidas mais eficazes para demonstrar a gravidade desses atos e desestimular comportamentos discriminatórios. Somente com sanções severas e exemplares será possível combater o racismo no esporte de forma mais efetiva.
3. A interseccionalidade entre o racismo e o machismo no esporte
Sendo o esporte um reflexo da realidade, embora as mulheres negras tenham obtido avanços significativos na luta por igualdade, a sociedade, por óbvio, ainda é marcada por uma forte carga de machismo e racismo. Esses preconceitos estruturais fazem com que comportamentos discriminatórios, como a disparidade salarial e a falta de investimento, se tornem comuns, resultando na menor visibilidade do esporte feminino.
Dessa maneira, as mulheres negras enfrentam uma dupla discriminação: a desvalorização por conta da cor de sua pele e seu gênero.
Especialmente no esporte, cuja atenção geralmente é voltada para a aparência e características físicas, as atletas negras são constantemente julgadas por padrões que não consideram em nada suas habilidades, tampouco seu esforço para chegar aonde chegaram. Todo esse conjunto reflete no desrespeito aos seus corpos, na falta de oportunidades igualitárias e na menor visibilidade em comparação aos seus colegas homens e brancos.
Do ponto de vista social, a representatividade continua sendo um dos principais aliados para tentativa de rompimento desses estigmas. Nos últimos Jogos Olímpicos, o Brasil levou uma delegação majoritariamente feminina, e atletas negras ocuparam o lugar mais alto do pódio diversas vezes. Contudo, é fundamental que tal representatividade seja associada a políticas públicas de acesso e incentivo ao esporte, tanto amador quanto profissional, com uma perspectiva que considere as especificidades de gênero e raça, e não somente um ou outro. Não podemos naturalizar trajetórias de precariedade das atletas negras, com narrativas que romantizam suas lutas sem oferecer uma estrutura de apoio real.
Em termos de representatividade nas lideranças, é imprescindível que a mídia, os patrocinadores e as organizações esportivas ampliem a presença de mulheres negras em cargos de poder, como treinadoras, árbitras e dirigentes. É crucial que essas atletas recebam o devido reconhecimento, e que suas conquistas sejam destacadas de forma equitativa nas plataformas de comunicação. Por óbvio, a visibilidade é um fator chave para garantir que as mulheres negras no esporte recebam o respeito e a oportunidade que merecem.
Do ponto de vista jurídico, ainda enfrentamos desafios na efetividade e na aplicação das normas contra o racismo. E, quando a discriminação é combinada com o machismo, a situação se torna ainda mais complexa, já que não possuímos legislação e/ou regulamentos que tratem especificamente sobre a discriminação interseccional. Portanto, é necessário o aprimoramento do setor com a criação de normas que abordem de forma clara como o racismo e o machismo se entrelaçam, proporcionando uma proteção mais efetiva para as atletas negras.
4. O impacto da atitude e posicionamento dos atletas frente aos casos de racismo
Em razão de todo contexto mencionado, é mais que evidente que os atletas precisam do apoio de todos os stakeholders do esporte para denunciarem casos de discriminação racial. Esse suporte é essencial para que possam se posicionar contra atos discriminatórios sem temer retaliações que prejudiquem suas carreiras. Exemplos como Beatriz Sousa, Serena Williams, Lewis Hamilton e Vinícius Júnior mostram a importância de enfrentar tais situações, mesmo em um ambiente que ainda não garante proteção necessária.
No entanto, é notável que a maioria dos atletas que se posicionam contra o racismo são aqueles que já possuem uma carreira consolidada e uma certa visibilidade internacional. Mesmo assim, esses atletas frequentemente enfrentam represálias que afetam sua saúde mental e continuidade no esporte.
O caso de Vinícius Júnior é emblemático: ao se tornar uma das vozes mais proeminentes na luta contra o racismo na La Liga, enfrentou severas críticas e controvérsias que não deveriam estar relacionadas ao seu desempenho esportivo. Veja-se, que, a Bola de Ouro é um prêmio que deveria reconhecer exclusivamente o desempenho individual e coletivo, contudo, durante a premiação, a atenção foi desviada do mérito esportivo do atleta, para sua atuação como símbolo de combate ao racismo. Segundo algumas opiniões, a derrota de Vinícius na premiação estaria diretamente relacionada à sua postura ativa nessa luta, o que demonstra como questões sociais ainda impactam negativamente a valorização de um atleta, o que é manifestamente inadmissível.
Apesar de serem o elo mais vulnerável na pirâmide do esporte, por muitas vezes, ainda cabe aos atletas exporem situações vexatórias e criminosas. Dito isso, é essencial que as entidades esportivas, os patrocinadores[4], os torcedores e a imprensa assumam a responsabilidade de apoiá-los ativamente. Isso inclui não apenas denunciar casos de discriminação racial, mas também implementar medidas efetivas para garantir um ambiente seguro, respeitoso e igualitário para todos os atletas.
5. Conclusão
A luta contra a discriminação racial no esporte reflete um desafio que transcende as competições e adentra o cerne das desigualdades sociais. Apesar dos avanços legislativos no Brasil, como a Lei Geral do Esporte, e iniciativas internacionais, ainda há um longo caminho a percorrer para que o ambiente esportivo seja verdadeiramente inclusivo e igualitário.
A aplicação mais rigorosa das sanções, como perda de pontos ou desclassificação, associada a programas educativos e campanhas de conscientização, é fundamental para promover mudanças culturais significativas. Além disso, reconhecer a interseccionalidade entre racismo e machismo no esporte, com políticas específicas voltadas para as mulheres negras, é essencial para garantir a equidade e a visibilidade dessas atletas.
O esporte tem o poder único de unir pessoas e culturas, mas também carrega o potencial de amplificar desigualdades se medidas efetivas não forem implementadas. A responsabilidade é compartilhada por todas as partes: atletas, clubes, federações, patrocinadores e a sociedade como um todo. Somente com um compromisso coletivo será possível construir um cenário esportivo que celebre a diversidade, respeite os direitos humanos e inspire gerações futuras.
6. Bibliografia
BRASIL. Lei nº 14.597, de 24 de junho de 2023. Dispõe sobre o Sistema Nacional do Esporte e institui a Lei Geral do Esporte. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14597.htm. Acesso em: 12 mar. 2025.
BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm. Acesso em: 12 mar. 2025.
MÍDIA NINJA. Atletas negros nas Olimpíadas: força, resiliência e mudança social. Disponível em: https://midianinja.org/atletas-negros-nas-olimpiadas-forca-resiliencia-e-mudanca-social/. Acesso em: 12 mar. 2025.
LEI EM CAMPO. A base das regras contra o racismo no esporte. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-base-das-regras-contra-o-racismo-no-esporte/. Acesso em: 12 mar. 2025.
MÁQUINA DO ESPORTE. Mercado Livre é único parceiro a acionar Conmebol após racismo contra Luighi. Máquina do Esporte, 12 mar. 2025. Disponível em: https://maquinadoesporte.com.br/futebol/mercado-livre-e-unico-parceiro-a-acionar-conmebol-apos-racismo-contra-luighi/?utm_campaign=maquina_expressa__12_mar_2025&utm_medium=email&utm_source=RD+Station. Acesso em: 13 mar. 2025.
[1] Mariana Araújo Evangelista é advogada graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduanda em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo (ESAOAB-SP). Atua como advogada no escritório Ambiel, Belfiore e Hanna Advogados, é auditora do Tribunal da Justiça Desportiva de São Paulo (TJD-SP) de Handebol e no Tribunal de Justiça Paralímpico Brasileiro e é ex-atleta profissional de handebol. Membro do IBDD.
[2] Lei nº 7.716/1989
[3] Lei nº 14.597/2023
[4] Especificamente no caso do atleta do Palmeiras Luighi, mencionado acima, o Mercado Livre foi o único patrocinador a acionar a Conmebol após o racismo sofrido pelo jogador. Os outros patrocinadores (Coca Cola, Crypto.com, Mastercard e TCL) foram questionados, todavia, preferiram não se pronunciar.