ANO 2020: UM REBOOT NO MUNDO DO FUTEBOL?

Milton Jordão¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

O ano é 2020 se revela como um singular período da história humana, apesar de toda a tecnologia e avanços em diversos setores do conhecimento, um vírus conseguiu paralisar as atividades (das mais complexas às mais simplórias) em sociedade e por todo o globo.

Trata-se da pandemia do novo coronavírus – a Covid-19 – que, por meio do seu acelerado contágio, em pouco mais de 5 meses, após literalmente parar a gigante China, faz estragos dolorosos no Velho Mundo (especialmente, na Itália e na Espanha) e agora avança nas Américas.

A velocidade como a realidade se transforma ante os efeitos da Covid-19 é absurda, seja da sua forma de contágio às alterações legais que se fizeram necessárias. A tônica é de que se vive numa “guerra” e o momento é de excepcionalidade.

A economia mundial estagnou e já se prevê uma contração de 3,00%, embora esta projeção considere que, no segundo semestre deste ano, a atividade econômica nos países se regularize².

O mundo desportivo não logrou êxito de se ver imune à pandemia. As grandes ligas e torneios foram paralisando na medida em que atletas testaram positivo para a Covid-19 ou os países começaram a apresentar um descontrole no sistema de saúde. Algo até então impensável. Quem imaginaria que a NBA parasse suas atividades sem qualquer previsão de retorno? E a portentosa UEFA Champions League?

Fomos vencidos pelo “inimigo” invisível.

Da noite para o dia, nos vimos em películas que antes nos serviam de distração e entretenimento.

Pouco a pouco a “realidade”³ se aproxima, a medida que o susto e a surpresa do isolamento que muitas sociedades se auto impuseram como forma mais efetiva de combater a propagação da Covid-19.

Com isso, inúmeras questões surgem e começam a nos incomodar com a busca de respostas e NOVAS alternativas!

Primeiro aspecto que destaco é que não podemos pensar o mundo do futebol como aquele que deixamos para trás antes da competições pararem e toda a máquina funcionar. Isso é imperioso. E mais, não podemos pensar apenas na excepcionalidade do momento, até porque ela perdurará, segundo apontam estudos e reflexões menos esperançosas que possamos conceber.

Enquanto não se produzir uma vacina confiável ou terapia médica mais definitiva (e aqui se afastam as tentativas – até desesperadas – de se encontrar uma cura para a Covid-19), não existirá a normalidade de antes. Isso é um fato inconteste. Ou seja, a vida normal do atleta ou mesmo do torcedor não mais se repetirá. Será preciso desenvolver uma nova realidade. Com isso, muitas relações sofrerão mudanças, vide a relação entre clube de futebol com atletas (empregados), patrocinadores, sócios-torcedores, etc.

O momento vivido me faz questionar se apenas enfrentamos uma fase transitória ou será um instante de reboot das relações jurídicas e econômicas que atam o mundo do futebol!

A verdade é que não temos um presente e ansiamos por viver um futuro, que é deveras incerto.

Então, o que fazer?

É preciso pensar, hoje, o amanhã, dentro da realidade vivida e projetada.

Logicamente, nenhuma sociedade suportará viver isolada, com funcionamento precário da sua economia. O mesmo pensamento se aplicará ao mundo do futebol: as partidas deverão ser realizadas, as transmissões de jogos ao vivo retomadas e a alegria e prazer devolvida aos fãs. Contudo, tanto a retomada econômica quanto a esportiva dependerão de muita segurança reflexão profunda sobre os seus riscos e sucesso.

Uma primeira questão a se enfrentar será a dos contratos. Como entendo que estamos num ponto que divide realidades, mister refletir sobre os contratos em vigor. Será que a primazia da realidade afetará o direito garantido nos contratos firmados entre as partes?

A FIFA, não sem razão, publicou o documento COVID-19 FOOTBALL REGULATORY ISSUES[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4] de onde extraem linhas mestras que sugerem ações para proteger e conservar a estrutura do futebol, antevendo a necessidade de se discutir contratos em vigor.

No Brasil, o Governo Federal editou Medidas Provisórias[5] visando estimular a preservação de empregos e que se estendem ao futebol, sem prejuízo de movimentações de bastidores para construir modificações legislativas específicas temporárias que supram as necessidades dos atores (clubes, atletas e federações) e se evite, assim, um mal maior.

Mister se fará a redução de salários de atletas e comissões técnicas, sobretudo em favor dos funcionários mais vulneráveis dos clubes de futebol. É inconteste que clube algum em qualquer quadrante do globo conseguirá se manter, sem grandes riscos futuros, arcando com os valores praticados antes da pandemia.

Ademais, esta redução IMPOSITIVA pela REALIDADE colocará os atletas em xeque, ou seja, testará a capacidade orgânica deles dentro do sistema. Quero dizer, o grau de compreensão que têm sobre o funcionamento e existência do sistema em que estão insertos. É preciso dar passos para trás agora visando a manutenção de todo o modelo em vigor, sob pena de ver ruir a estrutura e sua retomada se retardar por muitos anos.

Nessa toada, surgem também outros contratos como os de direito de transmissão dos jogos que foram atingidos frontalmente! E sendo esta – especialmente no Brasil, para a esmagadora maioria dos clubes – a mais importante renda, o sinal vermelho se acende! As redes de Televisão suspenderam pagamentos[6] ou iniciaram tratativas para rescisão de contratos em vigor, óbvio que por valor deveras inferior ao assinalado em contrato[7].

Eis, pois, um quadro que reclamará dos gestores esportivos frieza, cautela e estudo do cenário para que não o futebol entre em espiral e sucumba.

A bem da verdade, o mundo de ontem nos assombra com aqueles números elevados, com perspectivas de mais e mais dólares, lançando a todos quase que em grau de paridade e diante de cenário caóticos, sobretudo em relação às finanças.

Com isso, força convir que, em linguagem popular, “a roda tem que girar”, pois Federações de Futebol, Clubes, Atletas e Patrocinadores – sem contra uma quase infindável cadeia de negócios que defluem de uma partida de futebol- dela dependem.

E ai reside o grande perigo: a ansiedade. Esta pode gerar uma cegueira deliberada em prol de resultados financeiros imediatos para aliviar o padecimento de mais de 40 dias sem jogos e o acúmulos de prejuízos.

A retomada dos jogos, em escala global, não se dará de maneira imediata. Deverá ser precedida da criação de protocolos de segurança sanitária, criação de nova cultura em torno das práxis higiênicas e de relacionamento humano habituais, novas formas de realização de treinamentos, etc. Cada país ou cidade dependerá umbilicalmente das diretrizes advindas dos órgãos/agências de sanitárias, posto que existem desdobramentos jurídicos fruto de mazelas na execução do planejamento. Até porque, saliento, que realizar uma partida implica em ter Centros de Treinamento funcionando, portanto, funcionários de diversos setores (cozinha, segurança, comissão técnica, massagistas, motoristas, pessoal do setor administrativo, etc) em circulação e potencial aglomeração, isso sem contar o match day, que envolve, minimamente, de 200 a 300 pessoas em todo o evento, mesmo sem presença de torcedores.

Um retorno das atividades precipitado e sem a devida preparação ou em local onde haja acentuada curva pandêmica, criando potencial risco de contágio às pessoas, poderá causar danos a terceiros, visto que o organizador do evento esportivo (em relação a fãs, prestadores de serviços, conjunto da arbitragem, atletas e outros) e clubes (em relação a seus empregados) têm responsabilidade civil e trabalhista, respectivamente, de zelar pela segurança e saúde das pessoas envolvidas nessas atos por eles patrocinados[8].

Assim, portanto, estamos diante de um dos mais complexos cenários que demandará preparação, organização, estudo e produção de conteúdo para servir de lastro à boa execução do regresso às atividades esportivas e, enfim, de fazer “a roda girar”.

Eis nosso desafio para o hoje: pensar e fazer acontecer o nosso amanhã, com responsabilidade e certeza de que venceremos mais este desafio que nos impõe a vida.

Se teremos a nossa “antiga normalidade” é algo que não deve ocupar a nossa preocupação, quiçá construir a nossa nova realidade que é mais urgente e útil.

Se cuidem!

Venceremos a pandemia!


¹ Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Ex-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-Procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

² Disponível em: <https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-14/fmi-preve-contracao-de-3-na-economia-mundial-em-2020-a-maior-desde-1930.html> Acessado em 15 de 2020.

³ Esta é uma palavra cuja definição sofrerá nova conceituação, certamente.

[4] Disponível em: <https://img.fifa.com/image/upload/zyqtt4bxgupp6pshcrtg.pdf> Acessado em 21 abr 2020.

[5] Em especial, a MP 936/2020. Acerca do tema no âmbito do direito do trabalho, sugere-se a leitura da análise feita por Marina Aidar de Barros Fagundes, Lilian Lucena Brandão e Lucas Gentil de Pauli. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/323900/impacto-da-covid-19-no-direito-do-trabalho-analise-das-medidas-provisorias-927-928-e-936-de-2020> Acessado em 21 abr 2020.

[6] Nem o mais robusto certame estadual se viu livre dos efeitos da pandemia. Disponsível em: <https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/futebol-nacional/2020/04/01/noticia_futebol_nacional,3843060/tv-globo-suspende-pagamento-da-ultima-parcela-do-paulista.shtml> Acessado em 21 abr 2020.

[7] Um bom exemplo disso é a notificação feita pela Turner para os clubes que assinou a aquisição dos direitos de transmissão dos jogos do campeonato brasileiro visando uma rupture deste. Naturalmente, o interessa da gigante americana das comunicações é se ver livre de contrato que entende hoje como desinteressante por um valor, seguramente, mais baixo do que tem a pagar. Sem dúvidas, aposta no caos proporcionado pela pandemia e nas dívidas que os clubes dela possam adquirir. Disponível em <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2020/04/10/clubes-cogitam-acao-bilionaria-e-ate-acionar-governo-federal-contra-turner.htm> Acessado em 21 abr 2020.

[8] Recomedável a leitura da coluna do advogado Juan de Dios Crespo, onde questiona a responsabilidade civil da UEFA por obrigar o Valencia e o Atalanta a jogarem partida válida pela UEFA Champions League. É um sinal do que pode, futuramente, ocorrer em diversos lugares. Disponível em <https://iusport.com/art/103251/podria-demandar-el-valencia-a-la-uefa-por-contagiarse-del-coronavirus> Acessado em 21 abr 2020.

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