Talita Garcez[1]
[1] Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Direito Desportivo. Presidente da Comissão Disciplinar da Liga Campineira de Futebol. Auditora Suplente da Comissão Disciplinar da Federação Paulista de Volleyball. Membro da International Association for Football Lawyers (AIAF), Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e Comissão Estadual de Direito Desportivo da OAB/SP.
INTRODUÇÃO
O assunto tem se tornado cada vez mais frequente, mas o problema não é novo. Notícias de manipulação de resultados envolvendo atletas, inclusive de seleção brasileira, têm sido alvo de investigações. A empresa Sportradar, especializada em monitoramento de partidas, divulgou um relatório com dados dos seus levantamentos feitos ao longo de 2023, indicando que o Brasil segue como o país com mais casos em números absolutos suspeitos de manipulação. No Brasil, a empresa monitorou aproximadamente 9 mil partidas de 118 campeonatos diferentes. Ao todo, 109 foram consideradas suspeitas, o que representa 1,21% dos jogos. [2]
Esses dados indicam um sinal amarelo para vitalidade do esporte, pois quando falamos em manipulação de resultados não existe apenas um prejudicado, já que o ato atinge o que tem de mais instigante no esporte, que é a imprevisibilidade do resultado; assim todos os stakeholders ficam prejudicados, inclusive a casa de apostas (operador), o atleta, o clube, a federação, os patrocinadores e a própria torcida, que perde com a mácula do espetáculo.
Com isso, é importante compreendermos que esse fenômeno reflete em diversas áreas, tais como na criminal, na desportiva e, também, na trabalhista.
Este artigo visa analisar de que forma os reflexos da manipulação dos resultados impactam na relação trabalhista e como se pode colaborar no combate a essa prática.
1 – LEGALIZAÇÃO DAS APOSTAS ESPORTIVAS NO BRASIL X MANIPULAÇÃO DE RESULTADOS
Após mais de setenta anos de proibição derivada da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 9.215/1946), a Lei nº 13.756/2018 legalizou as chamadas “apostas de quota-fixa relativas a eventos reais de temática esportiva” (doravante apenas “apostas esportivas”), a qual posteriormente foi regulamentada por intermédio da Lei 14.790/2023.
Tal evento talvez nos remeta à falsa impressão de que, a partir de então, o esporte começou a ser maculado por situações relacionadas a manipulação de resultados; porém, basta pensarmos que, em 1982 enfrentamos o caso conhecido como a “Máfia da Loteria Esportiva”; posteriormente, em 2005, a “Máfia do Apito”, que foram sucedidos pelas Operações Penalidade Máxima 1, 2 e 3 (2022 e 2023), pela Operação Jogada Ensaiada. (2023); CPI das Apostas Esportivas (2024); Caso Lucas Paquetá (2024).
A preservação da lógica desportiva e da lisura das apostas é um trabalho gigantesco de todos os players envolvidos nesta relação, nesse sentido a Legislação atual prevê:
Lei 14.790/2023:
“Art. 26. É vedada a participação, direta ou indireta, inclusive por interposta pessoa, na condição de apostador, de:
V – pessoa que tenha ou possa ter qualquer influência no resultado de evento real de temática esportiva objeto de loteria de apostas de quota fixa, incluídos:
- a) pessoa que exerça cargo de dirigente desportivo, técnico desportivo, treinador e integrante de comissão técnica;
- b) árbitro de modalidade desportiva, assistente de árbitro de modalidade desportiva, ou equivalente, empresário desportivo, agente ou procurador de atletas e de técnicos, técnico ou membro de comissão técnica;
- c) membro de órgão de administração ou de fiscalização de entidade de administração de organizadora de competição ou de prova desportiva;
- d) atleta participante de competições organizadas pelas entidades integrantes do Sistema Nacional do Esporte;
- 2º As vedações previstas nos incisos II, IV e V do caput deste artigo estendem-se aos cônjuges, aos companheiros e aos parentes em linha reta e colateral, até o segundo grau, inclusive, das pessoas impedidas de participar, direta ou indiretamente, na condição de apostador.”
Essa lei deriva do regulamento inglês FA Betting Rules, o qual detalha minuciosamente a proibição, desde a temporada 2014-2015, e não deixa muita margem para interpretação: os Participantes são estritamente proibidos de atuar, direta ou indiretamente, nas apostas no futebol em qualquer lugar do mundo. também se estende ao fornecimento de informações privilegiadas a terceiros que depois são usadas para apostas.
No mesmo sentido, o regulamento geral de competições da CBF em 2024 trouxe:
“Art. 66 – Com o objetivo de evitar a manipulação de resultado de partidas, ou a ocorrência de um fato ou eventos específicos no seu decurso, considerar-se-á conduta ilícita praticada por atletas, técnicos, membros de comissão técnica, dirigentes e membros da equipe de arbitragem e todos aqueles que, direta ou indiretamente, possam exercer influência no resultado das partidas, os seguintes comportamentos:
I – apostar em si mesmo, ou permitir que alguém do seu convívio o faça, em seu oponente ou em partida de futebol;
Ii – instruir, encorajar ou facilitar qualquer outra pessoa a apostar em partida de futebol da qual esteja participando ou possa exercer influência;
Iii – assegurar a ocorrência de um acontecimento particular durante partida de futebol da qual esteja participando ou possa exercer influência, e que possa ser objeto de aposta ou pelo qual tenha recebido ou venha a receber qualquer vantagem;
Iv – dar ou receber qualquer pagamento ou outro benefício em circunstâncias que possam razoavelmente gerar descrédito para si mesmo ou para o futebol;
V – compartilhar informação sensível, privilegiada ou interna que possa assegurar uma vantagem injusta e acarretar a obtenção de algum ganho ou seu uso para fins de aposta;
Vi – deixar de informar de imediato ao seu clube, federação estadual ou à competente autoridade desportiva, policial ou judiciária, qualquer ameaça ou suspeita de comportamento corrupto, como por exemplo no caso de alguém se aproximar para perguntar ou sugerir manipulação de qualquer aspecto de uma partida ou mediante promessa de vantagem ou favores em troca de informação sensível. “
Como notamos, com a regulamentação das apostas esportivas, os regulamentos e lei vigente buscaram coibir toda pessoa que tenha ou possa ter qualquer influência no resultado de evento real de temática esportiva a participação, direta ou indireta em apostas, justamente visando coibir a manipulação de resultados, de modo que, inobstante as consequências na esfera criminal e desportiva, é certo que tal prática ensejará reflexos também na relação trabalhista.
2 – REFLEXOS TRABALHISTAS DA MANIPULAÇÃO DE RESULTADOS
O ordenamento jusdesportivo brasileiro, por intermédio Lei 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte), dispõe que a relação do atleta com seu empregador terá aplicação subsidiária da legislação trabalhista, consoante dispõe seu art. 85.
No mesmo sentido, o artigo 74, III, da Lei n. 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte) prevê, dentre os deveres do atleta profissional, o de “exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.” (art. 74, III).
A legislação trabalhista adota critério taxativo no que se refere à tipificação das infrações passíveis de serem cometidas pelo empregado como justa causa à ruptura contratual pelo empregado, elencando no artigo 482 da CLT as situações respectivas:
Dentre as hipóteses de justa causa está a realização de ato de improbidade (que consiste na conduta que atenta contra o patrimônio do empregador ou de terceiros, praticada pelo trabalhador com a finalidade de obter vantagens para si ou para outrem) e a prática de ato lesivo à honra e boa fama do empregador (que consiste na conduta que desabona o empregador). Portanto, o envolvimento em apostas esportivas e consequente manipulação de resultados, restarão configurados o ato de improbidade e ato lesivo à honra e boa fama do empregador, que são indubitavelmente para quebrar a fidúcia necessária na relação de emprego e configurar a dispensa motivada.
Não obstante a apuração criminal e desportiva, é certo que tanto a lei atual, quando o Regulamento Geral de Competições proíbem a participação de Atletas nas apostas, de modo que, havendo prova robusta do seu envolvimento, tal fato já é suficiente para consolidar a dispensa motivada pela prática do ato de improbidade.
Nesse esteio, esse tipo de conduta não exige a utilização de advertências prévias ou medidas mais brandas, uma vez que sua configuração pode se dar a partir de um ato único, que prejudica a relação de confiança que deve existir para o desenvolvimento da relação empregatícia, portanto, é aplicável de imediato a penalidade de dispensa por justa causa.
Assim, o exercício do poder disciplinar pela entidade desportiva é necessário à manutenção da ordem do sistema desportivo, eis que a manipulação de resultados atinge a base do esporte, por isso, atletas envolvidos em esquema que agridem princípios esportivos devem ser punidos com rigor.
Portanto, configurada a justa causa, restará rescindido de forma motivada o CETD do Atleta, com o direito de receber apenas o saldo de salários e as férias vencidas (se houver), remanescendo ainda a obrigação de pagar ao clube cláusula indenizatória, conforme entendimento do Ministro Alexandre Agra Belmonte:
“Se na transferência de um clube para o outro o primeiro tem direito a uma indenização por abandono de serviço, da mesma forma o clube também deveria ser indenizado se ocorrer um dos casos de despedida por justa causa previstos na CLT. Se o atleta deu causa ao término do contrato, ele tem que pagar a cláusula indenizatória, disciplinada no artigo 28 da Lei Pelé.”[3]
Assim, em atenção ao princípio da isonomia, e considerando ainda a gravidade do ato e o necessário rigor na medida, nos afigura razoável também a exigência da incidência dessa multa.
3 . CONCLUSÃO
As consequências desportiva e criminal da participação em manipulação de resultados não impede que se operem reflexos trabalhistas, como a justa causa pela prática de ato de improbidade.
A manipulação de resultados pode existir, à medida em que ocorrem as apostas da mesma forma que as negociações com base em informações privilegiadas decorrem da própria existência do mercado de ações.
No passado, a manipulação de resultados era motivada pela paixão. Hoje, a manipulação ocorre primordialmente por interesses econômicos, por isso é dever de todos os envolvidos no sistema esportivo adotar práticas que contribuam para a preservação da integridade esportiva.
Não há dúvidas de que a resposta para esse tipo de conduta deve ser dura, visando o cumprimento pedagógico e obstar a mácula ao espetáculo desportivo e ao esporte como um todo.
Assim, independentemente das consequências nas esferas desportiva, criminal e civil, é certo que a justa causa deve ser uma resposta consequência trabalhista reflexo da manipulação de resultados .
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do(a) Autor(a) deste texto.
[2]SPORTRADAR. Betting Corruption And Match Fixing in 2023. A review by Sportradar Integrity Services. Disponível em https://goto.sportradar.com/l/533382/2024-03-01/7p9m9d/533382/170929916597HjWoHQ/Betting_Corruption_and_Match_Fixing_in_2023.pdf
[3] Belmonte, Alexandre Agra. Poder disciplinar da entidade de prática desportiva e a Justiça do Trabalho, disponível em: https://www.editorajc.com.br/poder-disciplinar-da-entidade-de-pratica-desportiva-e-a-justica-do-trabalho/