Fabrício Trindade de Sousa¹
Membro Filiado ao Instituto de Direito Desportivo do Brasil (IBDD)
A Proposta do Substitutivo do Projeto de lei n.º 5.082/16, capitaneado pelo Deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), tem sido amplamente divulgado como iniciativa legislativa para solucionar os problemas financeiros dos clubes de futebol brasileiro, transformando-os em empresas e incentivando um modelo de gestão profissional.²
Entretanto, como soe acontecer nos processos legislativos, outros temas já foram inseridos no projeto, sendo objeto do presente artigo a matéria jurídico-trabalhista nele versada.
O capítulo VIII do projeto se dedica ao Regime Centralizado de Execução na Justiça do Trabalho. Chama atenção, inicialmente, o critério legislativo consubstanciado na exigência de mais de um processo³ para estar elegível ao requerimento de centralização da execução de suas dívidas judiciais trabalhistas, mediante pagamento de uma quantia mensal para amortização respectiva.
Leitura atenta dos artigos que disciplinam o tema revela que a concessão do requerimento está condicionada à demonstração das dificuldades financeiras que o clube atravessa, a apresentação de um plano de pagamento e as garantias respectivas. Denota-se, portanto, que a preocupação não reside na quantidade de processos, mas no volume da dívida em contraste com as fontes de receitas do clube.
Fixadas tais premissas, seria legítimo requerer a centralização da execução mesmo na hipótese de um processo, mormente se demonstrada que a dívida dele decorrente seria suficiente para inviabilizar o funcionamento do clube. Logo, despicienda a exigência de dois ou mais processos para ser elegível ao modelo diferenciado de execução de créditos trabalhistas.
Feita a ressalva específica, subsiste enorme controvérsia no âmbito da Justiça do Trabalho sobre a licitude (atualmente regulado de forma autônoma, pelos Tribunais Regionais e pelo Tribunal Superior do Trabalho) e eficácia dos atuais Regimes Centralizados de Execução.
Os principais fundamentos contrários ao regime residem na ausência de legislação que autorize o procedimento, na inobservância da natureza alimentar do crédito trabalhista, na validação da má gestão dos clubes e, não menos relevante, na demora para o recebimento do crédito, sendo que não raras as vezes os reclamantes estão desempregados e quando atletas ativos, não recebiam salários vultuosos que lhes permitissem subsistir enquanto aguardam a “fila” para receberem os valores que lhes são devidos.
Os defensores do regime sustentam que o modelo permite o pagamento integral e atualizado das dívidas trabalhistas, ainda que em dilatado espaço de tempo, de modo que na hipótese de execução direta do crédito trabalhista, por certo que os clubes já estariam falidos e apenas parte reduzida dos credores teriam sido adimplidos. Também argumentam a indispensabilidade dos clubes de futebol, não apenas em face dos aspectos culturais, mas principalmente em razão dos diversos empregos diretos e indiretos que são gerados.
Não cabe nesta reflexão defender ou criticar o Regime, mas apenas avaliar o teor do projeto de lei. O projeto reflete, em grande parte, a disciplina do TST sobre a matéria[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], com acréscimos relevantes, abrangendo a faculdade do juízo centralizador em determinar a realização de perícia contábil para homologar as informações apresentadas pelo clube, a fixação do prazo máximo de 10 (dez) anos para vigência do regime[5], e a suspensão do cumprimento dos mandados de penhora e das ordens de bloqueio de valores já expedidos nas execuções iniciadas até a data do requerimento, sendo também facultada a estipulação, a critério do Presidente do Tribunal, ouvido o juízo centralizador, de limitação de abrangência regime ao cumprimento das sentenças proferidas ou dos acordos firmados nas ações distribuídas até a data da sua concessão.
Há uma inovação relevante que em primeira e superficial análise redunda na observância da natureza alimentícia do crédito trabalhista e ameniza o tempo de espera para recebimento dos valores pelo reclamante. Trata-se da exigência de garantia de juízo para oposição de embargos à execução, acompanhada da previsão no sentido de que recebidos os embargos à execução, e comprovada a garantia daquele juízo, será expedido o respectivo pedido de reserva de crédito ao juízo centralizador pelo valor homologado, para fins de habilitação e respeito à anterioridade do crédito, de modo que a tramitação da controvérsia sobre os cálculos de liquidação não impactará em prejuízo temporal ao reclamante.
O artigo 52 do projeto promove alterações trabalhistas na Lei Pelé. Inicia autorizando o pagamento parcelado da cláusula compensatória, sendo exigido o pagamento de, no mínimo, três salários do atleta, concomitante ao pagamento das verbas rescisórias e, o pagamento de um salário nos meses subsequentes, até a quitação total da obrigação, sem qualquer exigência, ao menos expressa, de observância de juros e atualização monetária.
Na hipótese do atleta dispensado formalizar novo contrato especial de trabalho desportivo, as parcelas mensais residuais serão reduzidas em valor equivalente ao dos salários recebidos, devendo o cálculo desta redução ser feito mês a mês, vedada a imposição ao atleta de devolução de valores ou desconto em parcelas remanescentes caso o salário do novo contrato seja superior. O atleta deve informar o valor do salário pactuado. A nova regra poderia ser assim ilustrada, salvo vício de interpretação da proposta legislativa:
- Salário do atleta na ordem de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Cláusula compensatória pactuada em 30 vezes o valor do salário do atleta;
- Na rescisão contratual o clube quitou 3 (três) parcelas, subsistindo 27 (vinte e sete);
- Permaneceu o pagamento por mais um ano, ou seja, quitou 12 (doze) parcelas, remanescendo 15 (quinze);
- O atleta formalizou novo contrato de trabalho, pelo período de 12 (doze) meses, com salário de R$8.000,00 (oito mil reais);
- Durante o novo contrato de trabalho, o antigo empregador pagaria 12 parcelas mensais de R$2.000,00 (dois mil reais), valor resultante da diferença entre os salários;
- As três últimas parcelas das 30 (trinta) totais seriam de R$10.000,00 (dez mil reais), salvo se o atleta formalizar outro contrato;
- No mesmo exemplo, caso o atleta recebesse o montante igual ou superior a R$10.000,00 (dez mil reais), o clube estaria isento do pagamento, sem prejuízo da dedução da quantidade de parcelas devidas, durante o período do contrato;
A proposição faz sentido sob a ótica de sanear as finanças dos clubes (que já poder-se-ia cogitar atendida com o pagamento parcelado), entretanto, desvirtua, substancialmente, o alcance da cláusula compensatória, que não obstante seu caráter financeiro imediato, não encontra origem na subsistência do atleta enquanto estiver desempregado (único fator considerado na justificativa do projeto[6]), mas em efetiva indenização pelos presumidos prejuízos gerados pela rescisão antecipada do contrato de trabalho. Não nos parece razoável que a formalização de novo contrato de trabalho resulte em isenção ou redução da obrigação indenizatória do antigo empregador.
Prossegue o projeto em análise importando do artigo 444 da CLT a hipótese do atleta “hipersuficiente”, tendo como base o mesmo critério remuneratório fixado pela CLT, porém, sem a necessidade de formação em nível superior, desde que assessorado por advogado de sua escolha quando da assinatura do contrato. Considerando o baixo percentual de atletas com remuneração acima do dobro do teto do INSS e a quase impossibilidade, por absoluta incompatibilidade (sem ignorar o crescimento exponencial dos cursos de educação à distância) de formação superior, penso que o projeto propôs alternativa viável e eficaz para fazer valer a manifestação de vontade dos atletas.
Em compasso com a efetivação de meios alternativos de solução de conflitos, o projeto traz a faculdade de pactuação de cláusula arbitral para os profissionais que recebam salários igual ou superior ao dobro do teto do INSS. Não obstante tal incentivo, os atuais custos da arbitragem impedem sua adoção.
Está sendo proposta alteração no caput do artigo 31 da Lei Pelé, reduzindo de três para dois meses de atrasos de salário a condição para rescisão indireta do contrato de trabalho. Trata-se de iniciativa salutar, sendo premissa básica e exigível, em qualquer contrato de trabalho, o pagamento tempestivo dos salários e demais obrigações contratuais. O atraso de um mês, eventualmente, é razoável e, por vezes, deriva de fatores alheios à vontade do empregador (inadimplência de devedores ou patrocinadores), que terá um prazo máximo de 60 dias para buscar alternativas para a solução do problema financeiro.
Subsiste, todavia, dúvida para as hipóteses de pagamento de uma ou mais obrigações de forma parcial. Poder-se-ia cogitar, ilustrativamente, que o empregador tenha quitado a integralidade do FGTS, tributos e salário, mas a pago apenas 70% do valor a título de cessão de uso da imagem. O projeto, salvo em relação à redução de prazo, replica a Lei Pelé, que só prevê, expressamente, a ausência de pagamento, redundando em controvérsia desnecessária sobre a implementação da rescisão indireta na hipótese de pagamento parcial das obrigações ou de uma obrigação pelo empregador.
O projeto também propõe alterar o artigo 87-A da Lei Pelé, explicitando a base de cálculo dos percentuais, composta pela soma do salário e do valor ajustado no contrato de cessão de uso da imagem, fixando o teto de 40% sobre tal montante para atletas cujo salário for inferior a 2 (duas) vezes o limite máximo do salário de contribuição do Regime Geral de Previdência Social e de 80% para atletas cujo salário for igual ou superior a 2 (duas) vezes o limite máximo do salário de contribuição do Regime Geral de Previdência Social.
Não se identifica na justificativa do projeto os fatores que motivaram tal proposição. Caso tal iniciativa vise limitar as alegadas fraudes, aqui entendidas como pagamento de salário transmudado de parcela objeto de contrato de cessão de uso de imagem, por certo que não terá êxito, mas sim, permitirá a consolidação da intenção fraudulenta, afastando qualquer possibilidade de alegação de ilicitude para os empregadores que tão logo a lei passe a vigorar, balizarão suas contratações tendo como base os tetos de 40% e 80%, conforme o valor do salário do atleta que será contratado.
Por outro lado, não se pode negar o robusto ganho financeiro dos atletas, considerando que 40% ou 80% de sua renda mensal não será tributada. A isenção tributária em muito supera as perdas do reconhecimento da natureza salarial da parcela, mormente considerando que a rescisão do contrato de trabalho do atleta profissional, pelo advento do termo fixado, não autoriza o pagamento da multa de 40% do FGTS.
Finaliza o projeto alterando o artigo 90-E para inserir os §§ 11 e 12 do art. 28, também como de observância obrigatória, quando houver vínculo empregatício, da comissão técnica e da área de saúde.
Os temas aqui tratados impactam, substancialmente, nas relações trabalhistas entre clubes, atletas e demais profissionais envolvidos com a prática profissional do futebol, demandando um debate mais ativo na imprensa especializada e, principalmente, no âmbito da Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados.
¹ Advogado, sócio fundador do escritório Amorim, Trindade, Kanitz e Russomano Advogados, membro do IBDD, membro da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD, Mestrando em Direito pelo IDP.
² https://sportv.globo.com/site/programas/redacao-sportv/noticia/clube-empresa-deputado-explica-projeto-de-lei-usando-casos-de-botafogo-e-flamengo.ghtml – acesso em: 30/10/2019
³ Art. 34. Fica instituído o Regime Centralizado de Execução na Justiça do Trabalho, que, observadas as regras deste Capítulo, poderá ser concedido pelo Presidente do Tribunal Regional à entidade de prática desportiva de futebol que figure como executada em mais de um processo no âmbito do referido Tribunal e comprovadamente esteja com seu funcionamento em risco em razão de penhoras ou ordens de bloqueio de valores determinadas nestes processos. (grifou-se)
[4]Provimento n. 1/CGJT, de 9 de fevereiro de 2018
[5] No provimento n. 1/CGJT, de 9 de fevereiro de 2018 o prazo máximo é de 3(três) anos.
[6] Consta da justificativa: Nesse contexto, é preciso reconhecer que não é razoável exigir da entidade de prática desportiva, no mínimo, o pagamento em parcela única do valor total de salários a que teria direito o atleta até o término do prazo contratual. A cobrança desse elevado valor pode comprometer excessivamente o orçamento da entidade. Por outro lado, sabemos que a garantia dessa indenização é importante para o atleta, que contava com o pagamento dos salários durante o prazo contratado.
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