ATOS DISCRIMINATÓRIOS MACHISTAS NO ESPORTE

Por Julia Gelli Costa

Membro filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

O inegável desenvolvimento do Futebol Feminino e o crescimento exponencial da respectiva audiência já foram amplamente tratados nesta Coluna Jus Desportiva, por Advogadas Experts no tema, como a Dra. Luciana Lopes.[2]

Entretanto, pouco foi falado ainda sobre a autoridade feminina, sobretudo dentro do âmbito esportivo.

Afinal, conforme recentemente explanado pela Exma. Ministra do STF, Dra. Cármen Lúcia[3] durante julgamento de sessão plenária sobre dispositivos da Lei Maria da Penha, quando relatou fato ocorrido no mês da mulher (março), de um entregador que fora à sua residência e teria dito “eu vim entregar um documento e me disseram que era para uma autoridade. Mas agora me disseram que aqui mora uma mulher. Afinal, aqui mora uma autoridade ou uma mulher?”, ao esclarecer que tal situação evidencia o machismo estrutural presente na nossa cultura, já que de forma falha o senso do brasileiro comum tende a compreender que um cargo de autoridade seria naturalmente ocupado por pessoa do gênero masculino, atribuindo à mulher papel supostamente inferior na sociedade.

Todavia diversos exemplos recentes demonstram o sucesso das Mulheres nos respectivos cargos de gestão e consequentemente imbuídas de autoridade, dentro e fora do esporte, promovendo verdadeiro diferencial.

Sob a perspectiva macro, tem-se o êxito, muito noticiado[4] se comparado com outras nações, de países liderados por mulheres diante da pandemia do Coronavirus que assolou o mundo, como por exemplo a Primeira-Ministra da Nova Zelândia – Sra. Jacinda Ardern; a até então Chanceler Alemã, Sra. Angela Merkel; a Premiê da Sérvia, Sra. Ana Brnabić, primeira mulher gay a assumir o cargo. Outro importante exemplo é a Presidência do Banco Central Europeu, ocupada pela Sra. Christine Lagarde. Já tratando de fatos ainda mais recentes, tendo em vista a guerra iniciada após a invasão russa, a Sra. Olena Zelenska, esposa do Presidente ucraniano, e várias outras personalidades femininas da Ucrânia, divulgaram[5] desde o final de fevereiro de 2022 registros demonstrando estarem prontas para efetivamente lutar.

Na Justiça, a Presidência tanto do TST quanto do TRT 1ª Região, são cargos ocupados por Presidentes Mulheres[6], as Exmas. Dras. Maria Cristina Peduzzi e a Des. Edith Tourinho, respectivamente.

Especificamente no Futebol, nesse ano de 2022, diante da partida disputada entre as Agremiações Chelsea e Palmeiras pelo Mundial de Clubes, foi destaque recorrente na mídia o fato de que ambas as Equipes possuem mulheres no comando[7], tendo em vista o cargo de Diretora ocupado por Marina Granovskaia no time inglês e a Presidência do Palmeiras com Leila Pereira recém eleita e empossada, mas já com vitórias e títulos de expressão internacional.

O Direito Desportivo também exemplifica esse cenário com Autoridades e Gestoras Mulheres no comando. O próprio IBDD tem no mandato atual, empossado este ano, uma diretoria com vasta representação feminina, já que conta com as Dras. Raquel Lima na Presidência[8] e Mariana Chamelette na Vice-presidência. Já a Justiça Desportiva, nas mais diversas modalidades e instâncias, possuem competentes mulheres atuantes, sendo que no STJD do Futebol, além de Auditoras[9], como a Diretora Institucional do IBDD Dra. Adriene Hassen na 4ª Comissão Disciplinar, foi instituída a Comissão Feminina[10] formada integralmente por mulheres, e inclusive a JAD – Justiça Desportiva Antidopagem é presidida por uma mulher, a Dra. Tatiana Mesquita Nunes, presidente em exercício do Tribunal TJD-AD[11].

Apesar de todo o contexto narrado acima, é difícil acreditar e compreender que o esporte ainda é um meio extremamente machista e permeado de atos discriminatórios, dos mais variados tipos.

Neste artigo iremos adentrar a partir de agora, mais especificamente, a interpretação da Justiça Desportiva no que tange as infrações disciplinares perpetradas em face da arbitragem feminina e, como essas autoridades em campo são, por vezes, inferiorizadas, mediante infrações disciplinares direcionadas em acordo com o gênero.

No final do ano passado (outubro de 2021) uma Decisão do Pleno do STJD do Futebol, Órgão recursal, obteve notoriedade[12] por reformar um Acórdão de primeira instância, da 3ª Comissão Disciplinar, que havia punido o Presidente (homem) de um determinado Clube, de forma unânime, por ofensa à honra de uma integrante da arbitragem (árbitra assistente e mulher) nos termos do artigo 243-F do CBJD.

O Pleno por maioria, restando vencido apenas o Relator, reformou a Decisão a quo por entender na Instância superior que a tipificação mais adequada ao caso seria a aplicação da norma 243-G do CBJD, que trata de atos discriminatórios.

Necessário contextualizar que alguns Julgadores e Doutrinadores consideram importante a análise do direcionamento ou não às vítimas das palavras contidas nas infrações disciplinares jus desportivas. Em que pese tênue em alguns casos, há exemplos que evidenciam se a fala, normalmente xingamentos, fora direcionada ou não.

Dito isto, é compreensível que aqueles que avaliam o direcionamento das palavras observem atentamente as intenções dos denunciados com cada expressão. Portanto foi com esse critério, somado à etimologia das palavras ditas, que basicamente fundamentou o julgamento do C. Pleno daquela E. Corte. Foi sustentado inclusive o fato de que algumas palavras seriam discriminatórias ao sexo feminino, e de modo mais gravoso, do que se atribuídas aos homens.

O relatório da vítima, que na Justiça Desportiva por ser Árbitra detém presunção relativa de veracidade, informou que após a partida o Presidente do Clube de futebol foi à porta do vestiário e disparou ofensas discriminatórias com o dedo em riste na direção da Árbitra tais como “sua má intencionada, vagabunda, safada” adentrando o vestiário e gritando repetidamente tais ofensas.

A Procuradoria consubstanciou a denúncia tanto no artigo 243-F, como também no 243-G, “ofender alguém em sua honra, por fato relacionado diretamente ao desporto” e “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”, respectivamente, ambos do CBJD. Porém, diante da absolvição quanto ao ato discriminatório praticado e mera condenação em ofensa à honra, o D. Procurador recorreu da Decisão ao Pleno alegando que, em entendendo tratar-se de conduta continuada, o denunciado deveria ser condenado pela infração mais gravosa e específica, de discriminação.

O Julgado do Pleno do STJD do Futebol que reformou a decisão caracterizando o ato infracional como a discriminação e puniu na forma preconizada pelo artigo 243-G do CBJD foi então considerada histórica, e precedente importante.

Ocorre que, conforme relato da Ministra do Supremo no início deste texto, o reconhecimento das mulheres enquanto autoridades ainda é lamentavelmente relativizado e por vezes dirimido, além de potencializados nos esportes praticados por homens.

Outros exemplos concretos podem ser observados de uma Ata de Julgamento[13] do dia 03/03/2020 da Fundação Municipal de Esportes – FME Navegantes – SC, comissão Disciplinar do Campeonato de Futebol de Areia – 1ª divisão, com expressões proferidas por jurisdicionados homens e direcionadas às mulheres Árbitras tais como “tu é uma mentira, tu tá cega, vou te esculachar”; “tu é uma safada”; “sua machorra, porquê mulher que apita jogo de homem é machorra”; “sua merda”; “tu é uma vergonha”; “sua fraca”; “vagabunda, lixo, não sabe apitar, só porque é mulher não apita nada, lixo vagabunda”; “sem vergonha, vai tomar na cara, filha da puta”, infrações essas que instruíram processos que geraram punições de suspensões de 3 à 6 partidas, somente.

Dessa forma, concluímos que, em que pese os esportes promoverem a união de povos, culturas, atuarem como ferramentas para o desenvolvimento social, mecanismo de formação humana, valores morais e éticos, promoção de saúde, recreação e lazer, ainda assim, a atividade esportiva pode ser mal aproveitada/utilizada encorajando também a criação de um ambiente permissivo para discriminação e o machismo estrutural. Daí extraímos a importância da Justiça Desportiva ceifar tais infrações disciplinares com punições exemplares, assim como a realização de campanhas educacionais objetivando o aprimoramento da educação através do esporte.

* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora desse texto.


[1] Advogada; Pós Graduada e Docente em Direito Desportivo; Pós Graduanda em Gestão do Esporte; Diretora Institucional do IBDD e Colunista; Procuradora da JAD – Justiça Desportiva Antidopagem; Subprocuradora-Geral do STJD do Futebol; Auditora do Pleno do STJD do Voleibol; Membro da Comissão de Ética da UBC e da CBDA – Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos; e ex Presidente do TJD-RJ do Remo; e Membro da ANDDJ e de diversas comissões eleitorais de Federações e Confederações desportivas.

[2] A AURORA DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO FUTEBOL FEMININO: UM CAMINHO SEM VOLTA MESMO DIANTE À CRISE DA COVID-19

[3] https://www.migalhas.com.br/quentes/362253/entregador-vai-a-casa-de-carmen-e-diz-aqui-mora-autoridade-ou-mulher

[4] https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/bate-papo-na-web/2021/03/paises-liderados-por-mulheres-se-saem-melhor-no-combate-a-pandemia.shtml e https://exame.com/mundo/paises-com-lideres-mulheres-estao-se-saindo-melhor-contra-o-coronavirus/

[5] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60734466 e https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2022/03/11/mulheres-ucranianas-despertam-espirito-heroico-para-lutar-contra-tropas-russas.htm

[6] https://www.tst.jus.br/apresentacao/presidente e https://www.trt1.jus.br/ultimas-noticias/-/asset_publisher/IpQvDk7pXBme/content/presidente-do-trt-rj-recebe-homenagem-no-mes-internacional-da-mulher/21078

[7] https://www.terra.com.br/esportes/futebol/mundial-chelsea-e-palmeiras-tem-mulheres-no-comando,71c8bd8308f0f5e4b857526b89e05c3c8fw1q04b.html

[8] https://ibdd.com.br/palavra-da-presidente/

[9] https://www.stjd.org.br/noticias/mulheres-do-stjd-do-futebol

[10] https://www.stjd.org.br/noticias/stjd-apresenta-comissao-feminina

[11] http://arquivo.esporte.gov.br/index.php/institucional/tdjad/58530-composicao

[12]https://www.stjd.org.br/noticias/pleno-pune-presidente-do-fast-por-discriminacao, https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2021/10/29/em-decisao-historica-stjd-pune-dirigente-por-ofender-arbitra-e-protege-dh.htm e https://ge.globo.com/am/futebol/times/fast/noticia/denis-albuquerque-e-condenado-a-30-dias-de-suspensao-e-multa-de-r-1-mil-por-xingar-anne-kesy.ghtml

[13] https://fmenavegantes.sc.gov.br/materias/ata-de-julgamento-do-dia-03032020