Autonomia dos contratos de trabalho de atletas profissionais

Ao contrário do que ocorre com o trabalhador comum, o contrato de trabalho do atleta profissional possui características especiais e por esta razão deve ser interpretado à luz da legislação desportiva.

A Lei Pelé (Lei n.º 9.615/98) teve forte inspiração do “Caso Bosman”, que assegurou a plena liberdade profissional ao atleta, rompendo com o sistema anterior que se desenvolvia sob o sistema do “passe”.
Na obra Direito do Desporto Profissional, Ed. Almedina – P. 15, assevera o professor J.J. Gomes Canotilho que o “Caso Bosman” oportunizou uma profunda suspensão reflexiva em torno dos problemas de qualificação jurídica ao nível das normas jurídico-contratuais do trabalho, na medida em que, antes deste episódio o contrato do atleta não era reconhecido nem como um contrato de trabalho e nem como um contrato de emprego.

Nos dias atuais não há dúvidas de que o contrato do atleta é um contrato de trabalho, estabelecido com a agremiação esportiva na qual está vinculado, havendo estipulação legal de duração deste contrato, cuja previsão encontra-se no artigo 30 da Lei Pelé.

Nota-se, portanto, a estipulação de um período mínimo e de um período máximo de duração do contrato de trabalho do atleta, com previsão expressa de não aplicação dos arts. 445 e 451 da CLT, o que a princípio pode parecer redundante, pois se trata de lei especial e que prevê prazo de duração maior do que o estipulado na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Todavia, é importante a afirmação legal para demonstrar a autoridade e supremacia da lei especial em detrimento da CLT que é aplicada ao trabalhador comum.

As características dessa relação de emprego justificam a existência de um contrato por prazo determinado, assegurando vantagens tanto para o clube quanto para o atleta. O clube saberá que o atleta não irá se desligar no meio do campeonato (poderá fazê-lo se pagar a cláusula indenizatória), enquanto que o atleta não permanecerá vinculado eternamente com o mesmo clube, salvo se assim o desejar.

O cerne da questão em saber a situação daquele jogador que, findo o contrato de trabalho, assina novo contrato de trabalho com a mesma agremiação esportiva.

Neste caso, para efeito de contagem de marco inicial de prescrição, haveria um único contrato ou contratos distintos?

A questão não é simples e demanda uma profunda reflexão.

Precedente do TST

No dia 11 de maio de 2015 o site do Tribunal Superior do Trabalho (TST) noticiou que a 8ª Turma reconheceu a unicidade contratual entre o Grêmio e o meia Souza.

A decisão que prevaleceu foi a de que o artigo 30 da Lei Pelé não veda o reconhecimento da unicidade contratual em casos de contratos de trabalho sucessivos, mas tão somente em relação à impossibilidade de transformação desses contratos por prazo determinado em contrato por prazo indeterminado.

De acordo com a ministra Dora Maria da Costa, relatora do Recurso de Revista n.º 1571-50.2012.5.04.0001, o primeiro contrato de trabalho foi sucedido por outro no mesmo dia em que foi rescindido, permanecendo a vinculação das partes de forma ininterrupta no período compreendido entre 10/7/2008 a 5/1/2011, prazo inferior ao máximo de cinco anos autorizado pela lei especial.

Nada obstante os robustos argumentos constantes da decisão acima divulgada, o entendimento acima externado não encontra amparo na legislação esportiva.

Com efeito, o art. 30 da Lei Pelé é expresso em assegurar a autonomia de cada contrato de trabalho.

Além disso, não há como se aplicar a disposição contida no artigo 453 da CLT ao jogador de futebol, em razão de manifesta incompatibilidade com a Lex Desportiva.

Findo o primeiro contrato de trabalho, em tese, o jogador estava livre para assinar com o clube de sua preferência. Manifestada a opção por assinar novo contrato com o mesmo clube, tal circunstância se deu porque o jogador entendeu que seria mais proveitosa para ele.

Por fim, nada impede que o jogador de futebol firme novo contrato de trabalho com o mesmo clube no qual estava vinculado (vide exemplo do jogador Rogério Ceni do São Paulo). Todavia, se o jogador se julga credor de determinada verba trabalhista, deve ajuizar a competente ação judicial, dentro do prazo previsto no art. 7º, XXIX, ou seja, dentro do período de dois anos após a ruptura do contrato de trabalho.

E nem se diga que tal fato poderá inibir o ajuizamento de demanda trabalhista em face de seu atual – e ao mesmo tempo antigo – empregador.

Repita-se, o atleta profissional não é um trabalhador comum e como tal não pode ser tratado.

O ajuizamento de processo trabalhista contra o clube não importará necessariamente em represália ou rescisão do contrato por iniciativa do empregador, pois tal fato, na maioria das vezes é danoso para o próprio clube, que correrá o risco de não mais contar com aquele atleta.

O que não pode ocorrer é uma presunção de fraude a ensejar a aplicação da unicidade contratual quando a Lex Desportiva fala expressamente em autonomia dos contratos de trabalho.

Decisão semelhante foi tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho no processo em que foram partes o jogador Maurinho e o Cruzeiro, no processo TST-ARR-164300-68.2008.5.03.0105.

Naquela oportunidade, o entendimento sufragado pela mais alta Corte Trabalhista do país afirma que os novos ajustes firmados entre a agremiação esportiva e o atleta não podem constituir contratos autônomos, pois se esta fosse a interpretação, restaria desvirtuada a finalidade da Lei nº 9.615/98.

No caso do time mineiro ainda teve outro agravante.

É que a instância ordinária – a última que detém o condão de reexaminar a matéria fática produzida nos autos – afirma expressamente que houve quitação do contrato de trabalho, firmada pelo jogador, com a assistência de seu advogado, bem como novo contrato de trabalho foi firmado com o clube, mediante aumento da remuneração anteriormente percebida.

Nada obstante, quando estiver caracterizada a existência de fraude ou manifesta tentativa de burla à legislação trabalhista, deverá ser considerada a unicidade contratual. Dentro destas hipóteses podemos citar o “contrato de gaveta”, no qual o jogador é forçado a assinar um segundo contrato, em branco concomitantemente com o primeiro contrato.

Desta forma, tem-se que:

1) O artigo 30 da Lei Pelé estabelece que o contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos-, e em seu parágrafo único afasta expressamente a regra do art. 445 da CLT, segundo a qual o contrato de trabalho por prazo determinado não poderá ser estipulado por mais de dois anos.
2) A liberdade contratual que embasa a Lei 9.615/98, permite que o atleta firme contratos sucessivos com o mesmo clube (empregador), sem que tal fato importe, necessariamente, em afronta aos direitos trabalhistas do atleta.
3) Se o atleta se sentir lesado ou julgar que teve direitos trabalhistas sonegados, deverá ajuizar a competente ação judicial, dentro do prazo previsto no art. 7º, XXIX da Constituição Federal, ou seja, dentro do período de dois anos após a ruptura do contrato de trabalho.
4) O fato de haver processo trabalhista em face do clube que emprega o atleta, em tese, não prejudicará a relação contratual havida entre as partes. Enquanto que em relação ao trabalhador comum poderia haver represália ou até mesmo rescisão do contrato de trabalho. Ocorre que no caso do atleta profissional, tal fato, na maioria das vezes é danoso para o próprio clube, que correrá o risco de não mais contar com aquele jogador.
5) Em razão das especificidades que envolvem o atleta profissional de futebol, não há como se aplicar os princípios de direito do trabalho inerentes ao trabalhador comum. A própria Lei Pelé contempla esta assertiva ao estabelecer no parágrafo 4º do artigo 28 que ao atleta profissional aplicam-se as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes na Lei 9.615/98.

Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga – Membro do IBDD

Fonte: Painel Acadêmico

 

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