Pedro Magalhães¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
No mundo jurídico do futebol é explicito que temos regras suficientes de combate contra condutas racistas e discriminatórias. Neste sentido, a Fédération Internationale de Football Association (FIFA), entidade máxima do futebol, preconiza em seu artigo 13, do anexo I do Código Disciplinar, a competência de atuação, as definições e sanções impostas com relação às condutas racistas e discriminatórias. ²
Em âmbito nacional, o Estatuto da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) possui em sua redação a seguinte norma:
“Art. 11 – A CBF não exercerá atividades político-partidárias nem religiosas, sendo terminantemente proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito por questões de gênero, raça, cor da pele, origem étnica, idioma, religião ou por qualquer outra razão que afronte a dignidade humana.
Parágrafo único – O não cumprimento do disposto neste artigo sujeitará o infrator às sanções previstas neste Estatuto e no Código de Ética e Conduta do Futebol Brasileiro, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis.”³
Ainda, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) preconiza:
“Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).”[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]
Para uma melhor elucidação das regras que versam sobre o racismo no futebol, recomenda-se a leitura do artigo: “O CÓDIGO DISCIPLINAR DA FIFA E O RACISMO”[5], do brilhante e promissor advogado Matheus Laupman.
Embora a punição contra o racismo no futebol esteja disciplinada no mundo jus-desportivo, há muita dificuldade quanto a aplicação efetiva dessas normas na prática, contrariando toda uma lógica de combate de discriminação racial.
Mas por que é tão difícil aplicar as sanções de forma rígida e eficaz que, se efetivamente aplicadas, iriam resultar em uma diminuição significativa dos atos racistas?
A resposta é: por conta do Racismo Estrutural. Não obstante a resposta possa parecer simples, é necessária uma abordagem mais profunda sobre o tema, uma vez que ele não é amplamente debatido e muita das vezes desconhecido.
Antes de adentrarmos ao tema do Racismo Estrutural no esporte, e mais especificamente no futebol, iremos explorar um pouco mais esse conceito sociológico que é a causa da maioria das injustiças sociais atualmente, todavia passa desapercebido pela maioria da sociedade.
Quando falamos na palavra “Racismo”, o que vem em nossa mente? Na maioria dos casos, pensamos em uma violência explícita direcionada ao indivíduo negro. Isto pois, a própria definição de racismo na sociedade em geral não é amplamente conhecida e o racismo acaba sendo compreendido como um ataque direto ao indivíduo, seja pela cor da sua pele, pelos seus traços (fenótipos), sua cultura (religiões) e etc.
Então, a dificuldade de uso da palavra “racista” para se empregar a alguém ou alguma instituição vem, não pelo fato de ser crime, mas sim pelo entendimento da sociedade de que a palavra “racismo” é uma anomalia. Pois, foi criada a ideia de que uma pessoa que é racista está agindo fora da normalidade com um ato volitivo. Portanto, isso acaba transmitindo a mensagem de que pessoas racistas são pessoas desprovidas de algum tipo de conhecimento ou patologicamente prejudicadas ao ponto de se criar uma “desumanização” da pessoa ou entidade racista quando identificada.
O que a noção do Racismo Estrutural nos traz é tentar racionalizar todos esses pensamentos e demonstrar a normalidade do racismo no dia a dia, humanizando o ser racista no sentido de não o culpar pela falta de moral, mas sim discutir a neutralidade do racismo na sociedade e nas instituições.
As estruturas sociais como estão fundamentadas atualmente geram opressões simplesmente por existirem na sua pura normalidade, sem a necessidade de que algo seja feito com a finalidade de oprimir e discriminar o indivíduo pela cor da sua pele. Portanto, o estudo e apontamento do Racismo Estrutural tem como intuito demonstrar a normalidade com que a sociedade reproduz estas opressões.
O filósofo, advogado e professor Sílvio Almeida, em sua obra “O que é racismo estrutural?” aborda a concepção institucional de racismo como um avanço para os estudos das relações raciais, pois amplia a ideia existente de racismo como comportamento individual. O racismo institucional diz respeito aos efeitos causados pelos modos de funcionamento das instituições que concede privilégios a determinados grupos de acordo com a raça. Para o filósofo, as instituições estabelecem e regulamentam as normas e os padrões que devem conduzir as práticas dos sujeitos, conformando seus comportamentos, seus modos de pensar, suas concepções e preferências. Com base nessa ideia, “as instituições são a materialização das determinações formais na vida social” e derivam das relações de poder, conflitos e disputas entre os grupos que desejam admitir o domínio da instituição (ALMEIDA, 2018, p. 30)[6].
Nesse sentido, Almeida, apresenta uma concepção estrutural de racismo que está intrinsicamente ligado ao racismo institucional que determina suas regras a partir de uma ordem social estabelecida. Ou seja, o racismo é uma decorrência da estrutura da sociedade que normaliza e concebe como verdade padrões e regras baseadas em princípios discriminatórios de raça.
Considerando o racismo como regra e não exceção, a solução para a efetivação de mudanças é a adoção de práticas antirracistas, como por exemplo a criação de políticas de inclusão nas instituições. E é, justamente, neste ponto que toda a narrativa do Racismo Estrutural chega ao esporte, e mais especificamente no futebol.
Em 2019, o grandioso advogado e Mestre em Políticas Sociais, Milton Jordão em seu artigo: “É PRECISO RASGAR O VÉU: COMO COMBATER O RACISMO FORA DAS QUATRO LINHAS”[7], nos trouxe reflexões muito importantes sobre o tema em debate, em que destaco a seguinte passagem:
“No futebol isso é curioso, pois nossos maiores atletas, os ícones do desporto bretão, são e foram negros. Então, como estes não poderiam contribuir deveras para os clubes ou federações? Será que não poderiam proporcionar revoluções administrativas se assim fizeram em campo?
A dificuldade que os profissionais negros do futebol padecem para se colocar no competitivo mercado de trabalho do mundo da bola não se explica somente pela meritocracia.”[8]
Vivemos em uma sociedade onde o racismo é neutralizado em toda sua estrutura, está em nosso dia a dia, no modo em que agimos e pensamos. Portanto, é imperativo que todos os stakeholders do mercado do futebol compreendam o que é o Racismo Estrutural para que as situações desiguais se dissipem ao longo do tempo e deixem de ser internalizadas e tratadas como normais.
Pois, atualmente toda a estrutura do futebol é racista. Em seu sistema piramidal, desde a base até o topo, o futebol é racista: Federações estaduais; CBF (Confederação Brasileira de Futebol); CONMEBOL (Confederação Sul-Americana de Futebol) e FIFA (Federação Internacional de Futebol). E, frisa-se, como já mencionado anteriormente, o racismo tem que ser entendido além do ataque direto ao negro. Isso significa que essas entidades de administração do desporto normalizaram e conceberam como verdade padrões e regras baseadas em princípios discriminatórios de raça.
Muito dos leitores quando se deparam com as informações de que existe um racismo invisível, insensível e institucionalizado nessas entidades e em toda indústria do futebol, logo recorrem à memória de algum funcionário negro dentro destas instituições, ou até mesmo citam campanhas que já viram dentro de campo, seja com frases de efeito, seja com faixas e ou atletas entrando de mãos dadas.
Mas a questão principal é: e fora de campo, o que está sendo feito? Onde se encontram os diretores, gestores, advogados negros do futebol? Se a maioria dos atletas são negros, por que não temos presidentes de clubes ou entidades de administração do desporto que sejam negros?
Destaca-se que o Brasil é o segundo país do mundo com o maior número de população negra, ficando apenas atrás da Nigéria, país que está situado no continente africano.
Um levantamento feito por Heitor Esmeriz do Globoesporte.com, em novembro de 2019 revelou que, dos quarenta clubes das séries A e B daquele ano, apenas a Ponte Preta tinha um presidente negro: Sebastião Arcanjo. Novo levantamento feito por Rafael Oliveira do Jornal O Globo, em junho de 2020, constatou que Arcanjo mantinha-se como o único presidente negro não apenas das Séries A e B, mas também da C daquele ano.[9]
Nas palavras do Mestre Milton Jordão:
“É preciso lidar com este dilema, ver esta crua e latente realidade, de que há sim um sistema opressivo e invisível em desfavor dos negros no futebol. O racismo ainda vive, ronda e traga bons valores, impede que se possa exercer a livre democracia, a igualdade e verdadeira (e tão estimada) meritocracia.”[10]
Essa questão não está apenas atrelada ao esporte, mas em toda sociedade e em nosso cotidiano. É só começar a perceber e refletir quantos negros ocupam posições de comando ou destaque em escritórios de advocacia, bancos, multinacionais, na política e grandes instituições no Brasil e mundo a fora. Até em nossa própria equipe de trabalho, as vezes temos 1, 2 ou até 3 pessoas negras, mas na maioria das vezes é inexistente. E a partir do momento em que o racismo é neutralizado, as pessoas acham normal não encontrar pessoas negras em determinadas posições ou lugares de destaque na sociedade.
Vivemos em uma sociedade onde o privilégio branco sempre foi imposto aliado ao discurso do mito da democracia racial[11]. E essa naturalização do racismo é um desafio em que, não só o futebol, mas o esporte como um todo precisa enfrentar. Principalmente com relação ao racismo estrutural e a necessidade latente de políticas dentro das entidades e instituições que pretendam mitigar esse tipo de discriminação dentro de um sistema. Aumentando a representatividade negra dentro do alto escalão da indústria do futebol como um todo.
Uma vez que não existem pessoas negras que compreendam determinados tipo de atos como uma atitude discriminatória, além de estipularem, criarem e aplicarem determinadas normas sobre o racismo no futebol, nunca haverá o efetivo combate e a punição eficaz, muito menos o debate e a conscientização dos conceitos de racismos institucionais e estruturais que irão possibilitar a diminuição concreta desses episódios. Isto pois, a falta de representatividade nos traz a possibilidade de uma alteração da percepção do ato racista e que na maioria dos casos acabam: passando desapercebidos, não gerando a punição eficaz, ou até mesmo não sendo punidos.
Toda a indústria do futebol, como Federações, Confederações, Clubes, escritórios de advocacia, agências de marketing etc., têm o dever de olhar para essa questão e tratá-la como um assunto sério a ser amplamente debatido, buscando soluções efetivas e não apenas como ações pontuais. Visto que o esporte há muito se transformou em uma atividade econômica, e com isso trouxe uma responsabilidade de que não é possível auferir lucros, expandir comercialmente fazendo o uso de políticas e condutas que fomentem situações discriminatórias e racistas.
Em outros setores econômicos já é comum o recrutamento e o desenvolvimento de lideranças negras dentro das empresas em conformidade com políticas de reparação e equiparação racial, entretanto não há nada relacionado ao futebol e toda sua indústria que o circunda. Por que será?
Quer seja pela via de que o futebol carregaria uma responsabilidade social, de disseminação, de uma mensagem, de um tratamento mais igualitário, afirmativo e inclusivo. Quer seja pelo viés de que não podemos nos pautar, em cima de uma atividade comercial, que faça uso desse tipo de política racista. Acaba nos parecendo que o futebol, e o esporte, necessitam de, pelo menos, enfrentar o Racismo Estrutural.
Um pequeno exemplo é da Liga Inglesa de Futebol (EFL), correspondente à segunda divisão, onde em 2018 instituiu a política chamada “Regra Rooney”[12], onde os clubes devem em todo processo de seleção ter ao menos um candidato negro, asiático ou de um grupo minoritário para vaga administrativa.[13] Entretanto, embora seja uma medida louvável, chega a ser ínfimo pelo tamanho do mercado do futebol inglês.
Em dezembro de 2020 um grupo de lideranças negras se reuniram com dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol[14] para propor medidas contra o racismo no futebol. Durante a reunião com o Presidente da CBF, foram apresentadas ideias de ações para o combate do racismo no futebol, como campanhas publicitárias, ações afirmativas para a inclusão de negros no mercado de trabalho do futebol e projetos de formação antirracista, entre outras medidas.
Porém, até o presente momento, infelizmente não tivemos mais notícias de que a entidade máxima do futebol brasileiro colocou esses projetos em prática. Além disso, teria sido uma ótima oportunidade para a edição de normas de efetivação de homens e mulheres negras nos cargos de direção e tomadas de decisão do futebol brasileiro, combatendo o racismo estrutural existente e incentivando outras políticas de inclusão e representatividade dentro da indústria do futebol.
Entretanto, essa atitude não é de se surpreender, uma vez que sempre quando se trata de política racial no Brasil o mais importante é parecer dar importância, mas na verdade o que falta é coragem para o combate do racismo por parte dos brancos. Pois, o racismo estrutural e a crença de que não há racismo no Brasil são grandes inimigos na luta por uma sociedade mais justa. Assim como a homofobia e a misoginia, o racismo é um entrave para que se forme uma sociedade brasileira baseada nos pilares democráticos e republicanos da igualdade e da liberdade.
A naturalidade da estrutura social das opressões racistas existe porque os indivíduos aceitam que elas existam, ainda mais sem pessoas negras no topo da pirâmide social ou em cargos de comando no futebol. Em consequência disso, os atos racistas serão sempre tratados sem a real importância e não vão deixar de serem problemáticos, por isso são tão difíceis o combate e a punição eficaz do racismo no futebol.
Assim, é muito importante ser consciente de que a lutar contra o racismo também é lutar contra as estruturas de sociedade. E essa luta irá alcançar privilégios, justamente porque a sociedade sempre neutralizou as opressões em prol destes privilégios dados a pessoas brancas.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ Advogado, é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Especialista em Gestão e Marketing Esportivo pela Trevisan Escola de Negócios, Gestor do Futebol pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF Academy). Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva do Handebol da FPHb. Auditor do Tribunal de Justiça Universitário da FUPE e membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD).
13 Discrimination 1. Any person who offends the dignity or integrity of a country, a person or group of people through contemptuous, discriminatory or derogatory words or actions (by any means whatsoever) on account of race, skin colour, ethnic, national or social origin, gender, disability, sexual orientation, language, religion, political opinion, wealth, birth or any other status or any other reason, shall be sanctioned with a suspension lasting at least ten matches or a specific period, or any other appropriate disciplinary measure.
³ https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201904/20190409135630_807.pdf
[4] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201507/20150709151309_0.pdf
[5] LAUPMAN, Matheusin https://ibdd.com.br/o-codigo-disciplinar-da-fifa-e-o-racismo/
[6] ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
[7] JORDÃO, Milton in https://ibdd.com.br/e-preciso-rasgar-o-veu-como-combater-o-racismo-fora-das-quatro-linhas/
[8] JORDÃO, Milton in https://ibdd.com.br/e-preciso-rasgar-o-veu-como-combater-o-racismo-fora-das-quatro-linhas/
[9] SERRANO, Igor in https://leiemcampo.com.br/a-necessidade-urgente-de-uma-regra-rooney-no-futebol-brasileiro/
[10] JORDÃO, Milton in https://ibdd.com.br/e-preciso-rasgar-o-veu-como-combater-o-racismo-fora-das-quatro-linhas/
[11] É um conceito que nega a existência do racismo no Brasil. É tratada como mito e ideologia por buscar exprimir a vigência de uma suposta democracia plena que se estenderia às pessoas de todas as raças, a despeito das desigualdades motivadas pelo racismo no país e por estruturas racistas culturais, sociais e políticas que privilegiam brasileiros brancos
[12] Essa política foi uma criação originalmente da Liga Nacional de Futebol Americano (NFL) que passou a exigir que as equipes da liga entrevistem candidatos de minorias étnicas para cargos de diretoria, como treinadores e outros executivos. Criada em 2003, foi assim nomeada em homenagem a Dan Rooney, proprietário do Pittsburgh Steelers e idealizador da medida. Após poucos anos em vigor, a medida foi responsável por aumentar a porcentagem total de treinadores negros na Liga de 6% para 22%.
[13] SERRANO, Igor in https://leiemcampo.com.br/a-necessidade-urgente-de-uma-regra-rooney-no-futebol-brasileiro/
[14] https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/presidente-da-cbf-rogerio-caboclo-recebe-representantes-da-cufa
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