COMO OS TRIBUNAIS DESPORTIVOS ENCARAM O TORCEDOR

Fernanda Soares

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Um estudo realizado pela Universidade do Futebol em 2018[2] revela que existem 155 milhões de torcedores no Brasil, o que, naquele ano, representava 75,3% da população.

É bem provável que o leitor, assim como a autora dessa coluna, esteja incluído nos números acima; somos muitos, de fato.

O Estatuto do Torcedor define, em seu artigo 2º, que entende como torcedor “toda pessoa que aprecie, apoie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade desportiva”.

Ressalte-se que esse acompanhamento ou apoio não precisa ser, necessariamente, in loco para que o torcedor seja entendido como tal. Além disso, o parágrafo único deste artigo esclarece que a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de que trata o caput são presumidos. Ou seja, ao torcedor não é necessária a comprovação de sua condição, sendo invertido o ônus da prova àquele que questioná-la.

É inegável que o futebol se tornou um fenômeno de massa, que cativa as pessoas. É igualmente inegável que ante o interesse pelo esporte é necessário um sistema sólido de solução de conflitos.

E é aqui que entra a Justiça Desportiva. As especificidades do desporto exigem uma tomada de decisão sólida, justa e célere. É por isso que o debate sobre resolução de conflitos jurídicos no esporte é de suma importância e um pré-requisito para a justiça e igualdade nas competições esportivas.

Mas, afinal: qual o papel do torcedor na Justiça Desportiva?

Vamos pelo começo: o torcedor não é jurisdicionado da Justiça Desportiva, ou seja, ao torcedor não se aplicariam diretamente as decisões tomadas pelos tribunais desportivos já que a este não se aplica o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). É o que nos diz o artigo 1º, § 1º, que tem a seguinte redação:

§ 1º Submetem-se a este Código, em todo o território nacional: I – as entidades nacionais e regionais de administração do desporto; II – as ligas nacionais e regionais; III – as entidades de prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração mencionadas nos incisos anteriores; IV – os atletas, profissionais e não-profissionais; V – os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem; VI – as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções, diretivos ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades mencionadas neste parágrafo, como, entre outros, dirigentes, administradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica; VII – todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas.

Há quem argumente que o torcedor estaria contemplado no inciso VI, já que o dispositivo menciona “pessoas naturais que exerçam qualquer função” em entidades de prática desportiva (clubes).

Não me filio a esta corrente. Entendo ser uma interpretação extensiva equivocada da norma; fosse a intenção do legislador incluir o torcedor no rol daqueles que são submetidos ao CBJD, o faria de forma mais explícita já que o torcedor exerce papel relevante numa competição desportiva (bem jurídico protegido pela Justiça Desportiva).

O torcedor, portanto, não se submete ao CBJD, e, até recentemente, não era legítimo para apresentar uma notícia de infração disciplinar. Este documento, previsto no artigo 74 do CBJD pode ser apresentado por quem tiver conhecimento ou presencia a prática de irregularidades previstas no CBJD, desde que forneça as informações necessárias para que a Procuradoria tenha elementos que caracterizem a existência da infração para desencadear o processo desportivo disciplinar (a Procuradoria é quem inicia o processo por meio da denúncia).

Ocorre que, a despeito de o mencionado artigo 74 do CBJD prever que “qualquer pessoa natural ou jurídica poderá apresentar por escrito notícia de infração disciplinar desportiva à Procuradoria, desde que haja legítimo interesse, acompanhada da prova de legitimidade”, o torcedor não podia apresentar o documento.

É que havia entendimento no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) no sentido de que o torcedor não teria legitimidade para apresentar uma notícia de infração. O entendimento se concretizava sob o argumento de que o Estatuto do Torcedor oferece ao torcedor meios próprios de manifestação por meio da Ouvidoria.

O artigo 6º do Estatuto do Torcedor prevê que deve haver, em toda competição, o ouvidor que forneça “os meios de comunicação necessários ao amplo acesso dos torcedores”.

Desta forma, portanto, o torcedor se manifestaria por meio da ouvidoria e esta, se assim entendesse, teria a legitimidade para formular uma notícia de infração a ser apresentada ao Tribunal. A procuradoria analisaria a notícia de infração e, se entendesse pertinente, ofereceria a denuncia e iniciaria o processo desportivo.

Utilizei os verbos no passado para falar sobre a legitimidade do torcedor para apresentar uma notícia de infração porque, aparentemente, o entendimento do STJD em relação a essa questão mudou.

Como aponta o portal “Lei em Campo”[3], em caso recentemente julgado pela 1ª Comissão Disciplinar do STJD, a denúncia que deu início ao processo foi sustentada a partir da notícia de infração apresentada pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ.

Pois bem.

Ocorre que, a despeito de não ser mencionado no artigo 1º, § 1º do CBJD como submetido ao Código, e (no mínimo) haver debate sobre a possibilidade de apresentar uma notícia de infração, o torcedor pode receber punição de um tribunal desportivo.

É o que prevê o artigo 243-G, que pune a prática de ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

O § 2º deste artigo prevê que, se o ato discriminatório for praticado por torcedor identificado, este pode ser condenado à proibição de ingresso na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de 720 dias. É uma pena pesada, mas de difícil aplicação, já que o controle de ingresso não é tão simples.

Há, portanto, um cenário no qual o torcedor pode ser punido num Tribunal regido por um Código ao qual ele não está submetido, por meio de um processo ao qual ele não tem direito ao contraditório e à ampla defesa.

Não parece haver espaço na Justiça Desportiva para a participação do torcedor, a não ser para puni-lo.

A já citada recente condenação do Flamengo com multa de R$ 50 mil reais por supostos atos discriminatórios de sua torcida na partida contra o Grêmio faz surgir para debate duas questões importantes sobre a forma como o Tribunal enxerga o torcedor: a primeira, já mencionada, é sobre a legitimidade do torcedor para apresentar a notícia de infração.

A segunda é sobre se o torcedor é considerado “pessoa vinculada” ao clube para fins de incidência do § 1º do artigo 243-G.

Explico.

O Flamengo foi condenado pela 1ª Comissão Disciplinar (cabendo, pois, recurso ao Tribunal Pleno do STJD) por infração ao artigo 243-G. É dizer: entendeu o Tribunal que 1- houve atos discriminatórios praticados pela torcida relacionados a preconceito em razão de orientação sexual, e; 2- o clube responde por tais atos.

O § 1º do artigo 243-G prevê que quando a prática de atos discriminatórios for realizada de forma simultânea por considerável número de pessoas vinculadas a um clube, este clube será punido com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição.

O § 1º do artigo 243-G continua esclarecendo que caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição (que é o caso da Copa do Brasil), o clube será excluído da competição, torneio ou equivalente. Na sessão de julgamento que condenou o Flamengo ao pagamento da multa de R$50.000,00, a Procuradoria pediu a exclusão do clube da Copa do Brasil de 2022.

Ocorre que a 1ª Comissão Disciplinar entendeu que o torcedor não é “pessoa vinculada” ao clube, portando afastando o § 1º do artigo 243-G.

Esse entendimento é completamente oposto ao entendimento do mesmo tribunal que, em 2014, excluiu o Grêmio da Copa do Brasil por infração ao mesmo artigo 243-G.

Qual é o entendimento do tribunal, afinal: o torcedor é “pessoa vinculada” ao clube ou não?

A forma como o tribunal concebe o torcedor é importante e afeta a estabilidade do sistema de soluções de controvérsias desportivas constitucionalmente posto.

E não apenas a punição direta prevista no artigo 243-G, § 2º afeta o torcedor; o torcedor é parte importante da competição desportiva.

A justiça desportiva, por força de determinação constitucional, tutela o bem jurídico competição desportiva. Desta forma, as decisões da justiça desportiva, que tem o condão de proteger a competição, afetam também o torcedor.

Afetam tanto que muitos torcedores procuram a justiça comum por sentirem que seu direito foi, de alguma forma, lesado por uma decisão da justiça desportiva. Destas ações propostas na justiça comum, surgem decisões que, erroneamente, modificam competições desportivas (em datas, perdas de pontos, rebaixamentos e outros). Sabemos o quão temerário pode ser a interferência da justiça comum na organização das competições desportivas.

Se houvessem meios diretos de participação do torcedor na justiça desportiva, talvez a procura pelo judiciário fosse menor e o sistema se fortaleceria. Quanto mais forte é o sistema interno de solução de controvérsias, mais forte será o próprio esporte.

A participação do torcedor poderia se dar pela notícia de infração. Não de forma individual, já que, se fosse o caso, a cada partida seriam apresentadas milhares de notícias de infração. Mas algo estruturado, de forma que um grupo de torcedores, munidos de um mínimo de assinaturas e da clara demonstração do legítimo interesse, pudesse apresentar a notícia de infração ao tribunal desportivo. Seria uma forma de aproximar o torcedor da justiça desportiva, enriquecendo ainda mais o trabalho dos tribunais.

Qualquer que seja a decisão sobre incluir ou não o torcedor na justiça desportiva e a forma de fazê-lo, há de se definir como o tribunal encara o torcedor.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.

Bibliografia

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, […]. Brasília, DF: Planalto, [2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

BRASIL. Código Brasileiro de Justiça Desportiva – Resolução CNE nº 01, de dezembro de 2003. 2003. Disponível em: http://www.esporte.gov.br/arquivos/legislacao/resolucaoN1CodigoBrasileiroJusticaDesportiva231203.pdf.

BRASIL. Lei n° 10.671 de 15 de Maio de 2003. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.671.htm

Portal Lei em Campo. STJD abre “precedente” ao aceitar notícia de infração de grupo contra Flamengo. Disponível em https://leiemcampo.com.br/stjd-abre-precedente-ao-aceitar-noticia-de-infracao-de-grupo-contra-flamengo/

SALOMÃO FILHO, Paulo Cesar. A Procuradoria da Justiça Desportiva. Em Justiça Desportiva. Perspectivas do Sistema Disciplinar Nacional, Internacional e no Direito Comparado. São Paulo. 2018. Quartier Latin.

Universidade do Futebol. G20: AS MAIORES TORCIDAS DO BRASIL. Disponível em: https://universidadedofutebol.com.br/wp-content/uploads/2017/11/G20-AS-MAIORES-TORCIDAS-DO-BRASIL.pdf


[1] Advogada desportiva. Internacionalista. Especialista em Negócios no Esporte e Direito Desportivo. Especialista em Direito, Logística e Negócios Internacionais. Especialista em Proteção de Dados Pessoais. Mestranda em Direito Desportivo. Procuradora no Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol de Minas Gerais e Membro filiada e Colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.

[2] https://universidadedofutebol.com.br/wp-content/uploads/2017/11/G20-AS-MAIORES-TORCIDAS-DO-BRASIL.pdf

[3] https://leiemcampo.com.br/stjd-abre-precedente-ao-aceitar-noticia-de-infracao-de-grupo-contra-flamengo/