Henrique Soares Pinto¹
Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
Em tempos de COVID-19, período em que há uma série de dúvidas sobre como o mercado desportivo e as próprias modalidades desportivas se desenvolverão no futuro próximo, um tema muito debatido e relativamente recente faz aniversário e começa a ser melhor compreendido pelas partes que atuam no âmbito do futebol.
O fato é que o Regulations on the Status and Transfer of Players (“RSTP”) ² que entrou em vigor em meados de 2019 após aprovação, em 03 de junho do mesmo ano, pelo Conselho da Fédération Internationale de Football Association (“FIFA”), encerrou uma discussão específica e clarificou algo que até então se mantinha obscuro em relação à titularidade dos Direitos Econômicos dos atletas profissionais de futebol.
Ou seja, e a partir de 2019, os Direitos Econômicos, tema que sempre foi relevante nas relações entre os clubes de futebol, os atletas e os intermediários, parece ter retomado papel de grande protagonismo nas mesas de negociações entre estes.
No entanto, antes de tratar do mérito propriamente dito do que é objeto deste escrito, é interessante conceituar, de modo breve e objetivo, o que é o instituto denominado “Direitos Econômicos”.
Direitos Econômicos, pois, e em síntese apertada, pode ser entendido como a receita obtida pelo clube (cedente) em decorrência da cessão onerosa do vínculo federativo (Direito Federativo) de determinado atleta profissional de futebol para outro clube (cessionário).
Vale lembrar que o Direito Federativo, ao contrário dos Direitos Econômicos, é uno e indivisível, sempre sendo 100% (cem por cento) de titularidade do clube em que o atleta estiver vinculado, ainda que de modo temporário (empréstimo).
Até o advento da Circular 1.464, datada de 22 de dezembro de 2014 e editada e publicada pela FIFA, era lícito que os clubes entabulassem negócios com terceiros cujo efeito prático era o repasse de todo ou parte da receita decorrente da transferência onerosa do vínculo de determinado atleta para outro clube quando e se tal evento (transferência) ocorresse durante a vigência do Contrato Especial de Trabalho Desportivo (“CETD”) mantido entre clube cedente e atleta.
A partir de 01 de maio de 2015, no entanto, os clubes não estavam mais autorizados a negociar com terceiros os Direitos Econômicos decorrentes do CETD dos atletas profissionais de futebol.
Uma das principais motivações apresentadas para tal medida foi a intenção da FIFA em privilegiar a finalidade desportiva das transferências em detrimento da finalidade econômica.
No entanto, e em que pese seja louvável a motivação apresentada, não é nenhuma novidade que clubes do mundo todo efetivamente precisam operar no mercado de transferências também para fins econômicos.
A transferência de vínculos de atletas entre clubes é inerente ao mundo do futebol.
Inobstante, e aliada à nova redação do artigo 18ter do RSTP, a FIFA acabou, então e assim, por definir como “terceiros” todos aqueles que não fossem os clubes envolvidos na transferência (cedente e cessionário) e eventuais outros clubes pelos quais o atleta tenha sido registrado durante a sua (atleta) carreira.
Desse modo, e a partir de maio de 2015, somente os clubes em que determinado atleta tenha sido registrado é que poderiam ostentar a condição de legítimo titular dos Direitos Econômicos do respectivo atleta.
Conforme já brevemente mencionado anteriormente, e até que a edição de junho de 2019 do RSTP fosse oficialmente divulgada pela FIFA, muito se discutiu sobre a possibilidade de os atletas serem titulares de seus próprios Direitos Econômicos.
É, no mínimo, curioso diagnosticar que o atleta se enquadrava como terceiro em relação à transferência de seu próprio vínculo para outro clube, mas é indiscutível que, em análise literal do que apresentava o RSTP, o atleta não estava no rol de possível detentor de seus (atleta) próprios Direitos Econômicos.
Tanto o é que a redação do RSTP de junho/2019 adicionou praticamente apenas o trecho “(…) the player being transferred (…)” ao conceito de terceiros (third party).
Vejamos a pequena (e de efeitos consideráveis) alteração na definição de terceiros ao comparar o RSTP de 2018 ao mesmo diploma da FIFA datado de 2019:
RSTP/2018: “Third party: a party other than the two clubs transferring a player from one to the other, or any previous club, with which the player has been registered.”
RSTP/2019: “Third party: a party other than the player being transferred, the two clubs transferring the player from one to the other, or any previous club, with which the player has been registered.”
Ou seja, até o momento anterior à Circular 1.464, os clubes podiam negociar livremente os Direitos Econômicos dos atletas de futebol com qualquer terceiro, sendo que, a partir de maio de 2015 e até a oficialização do corrente entendimento da FIFA, houve incerteza sobre a possibilidade ou não de que os atletas fossem titulares de seus próprios Direitos Econômicos.
Superada a questão, e uma vez que os atletas estão formalmente respaldados pela entidade máxima do futebol a ostentar a condição de titulares de seus próprios Direitos Econômicos, vários são os possíveis e interessantes desdobramentos que advêm de tal “nova realidade” formalizada via RSTP há exatamente 1 (um) ano.
Desde a mudança no conceito de terceiros, surgiu uma série de oportunidades e de riscos para as partes envolvidas, com destaque para clubes, atletas e intermediários.
Algumas possíveis consequências que decorrem da possibilidade de que o atleta ostente percentual de seus próprios direitos econômicos são de fácil visualização e identificação, tais como, por exemplo, a possibilidade de que o clube minimize custos/gastos relacionados ao atleta no curto/médio prazo em troca de uma compensação ao atleta que seja decorrente de evento futuro e incerto, qual seja a transferência onerosa do vínculo do mesmo atleta para outro clube.
Posto isso, e ainda em complementação ao disposto acima, outra possibilidade que muito possivelmente será apresentada com frequência cada vez maior é a inclusão contratual das chamadas “cláusulas de liberação/saída”, a depender do caso.
Detalhe também que, ao não ser mais considerado como terceiro, o atleta poderá atuar ativamente no sentido de influenciar a “quebra” de seu próprio vínculo com o clube sem que tal prática, em tese, seja uma violação ao artigo 18bis do RSTP.
Contudo, outros possíveis desdobramentos acerca da possibilidade de que os atletas ostentem a titularidade de seus próprios direitos econômicos podem não estar tão evidentes e, por isso, merecem ainda maior atenção e cuidado, até mesmo pelo grau de sensibilidade que carregam.
Posto isso, é sabido que, não raras vezes, quem negocia os contratos representando os atletas são os denominados intermediários.
A figura do intermediário, aliás, há muito tempo está presente no âmbito desportivo (ainda que sob a denominação de “agentes”, “empresários” ou etc.), desempenhando papel bastante relevante e, em termos de negociações, também de protagonismo.
Por isso, e assim como em se tratando da titularidade, por parte de terceiros, dos direitos econômicos decorrentes dos vínculos dos atletas (Third-Party Ownership ou “TPO”), entende-se que a atividade dos intermediários pode e deve ser tratada com o devido cuidado e regulamentação, merecendo a mesma atenção que as entidades de administração do desporto destacam para outros assuntos tão relevantes quanto.
Assim, em relação ao assunto deste artigo e retornando ao ponto de que são os intermediários que representam os atletas nas mesas/rodadas de negociações, é válido transcrever o que dispõe especificamente o primeiro item/ponto do artigo 7 do Regulations on Working on Intermediaries publicado pela FIFA e em vigor desde 2015 (“Regulamento de Intermediários da FIFA”).
“1. The amount of remuneration due to an intermediary who has been engaged to act on a player’s behalf shall be calculated on the basis of the player’s basic gross income for the entire duration of the contract.”
Resumidamente, e em tradução livre, o Regulamento de Intermediários da FIFA determina que eventuais valores pagos por um clube a determinado intermediário devem ser calculados com base “(…) na receita/remuneração básica bruta do atleta durante toda a duração do contrato”.
Entende-se como desnecessárias maiores considerações acerca da obrigatoriedade, por parte de todos os integrantes do sistema federativo (pirâmide federativa), em cumprir as determinações emanadas pelos órgãos de administração do desporto competentes, notadamente em se tratando da entidade máxima do futebol (FIFA), eis que tal cumprimento não é facultativo e, sim, mandatório.
Ou seja, considerando não apenas as normas e regulamentos pertinentes aplicáveis, mas também levando em consideração o fato de que os atletas de futebol quase que invariavelmente são representados por intermediários quando das negociações de contratos entre clubes e atletas, está-se diante de um claro e aparente possível conflito de interesses.
Isso porque, conforme visto, se por um lado o atleta poderia pleitear em negociação o recebimento de parte de seus próprios direitos econômicos (receita futura), por outro lado pode não parecer interessante para o intermediário representante do atleta a hipótese de que, em detrimento do recebimento de alguma “receita/remuneração básica bruta do durante toda a duração do contrato”, o atleta passe a ostentar parte de seus (atletas) direitos econômicos, eis que, em ocorrendo tal possibilidade, o intermediário poderia deixar de receber algum valor importante.
Claro que não se está pressupondo que o intermediário, ao representar o atleta perante o clube, colocaria os seus (intermediário) interesses a frente dos interesses do seu representado, mas é fato que, diante de eventual proposta do clube ao atleta, via intermediário, oferecendo parte dos direitos econômicos em troca de hipotética diminuição na pedida salarial, se estaria diante de uma situação, ao menos, delicada.
Outrossim, com a indicação da FIFA no sentido de que, em breve, deve haver um limitador percentual em termos de valor máximo a ser pago aos intermediários a depender de cada operação, tal fato pode acabar impactando ainda mais no cenário aqui apresentado.
Concluindo, a pergunta que pode surgir é acerca da possibilidade de que atletas, na condição de legítimos titulares de seus próprios direitos econômicos, poderiam entabular acordos entre estes e seus respectivos intermediários representantes.
No entanto, e para finalizar, entende-se como improvável que os atletas “repassem”, por instrumentos particulares, os seus (atletas) próprios direitos econômicos aos intermediários, uma vez que junto com o direito de ostentar direitos econômicos vem também a obrigação – que até então era apenas dos clubes – de não violar o TPO.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ Gestor do Esporte e Advogado. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais. Pós-Graduado em Gestão do Esporte, Marketing Esportivo e Direito Desportivo. Especialista em Gestão de Futebol e em Gestão de Clubes de Futebol. Membro filiado e Coordenador Regional do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Membro da Comissão Especial de Legislação e Direito Desportivo (CELDD) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio Grande do Sul (OAB/RS). Sócio Fundador, Presidente Executivo e Coordenador-Geral do Núcleo de Gestão do Esporte do Instituto Riograndense de Gestão e Direito Desportivo (IRGDD). Ex-Auditor da Primeira Comissão Disciplinar do Tribunal de Justiça Desportiva de Futebol do Rio Grande do Sul (TJD/RS – Futebol). Ex-Auditor Presidente da Comissão Disciplinar e Auditor do Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva de Rugby do Rio Grande do Sul (TJD/RS – Rugby).
² https://www.fifa.com/who-we-are/legal/rules-and-regulations/documents/