José Francisco C. Manssur¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Por mais que a Lei nº 8.672/93 (“Lei Zico”) já tenha tratado do tema, consideramos que o marco inicial da real discussão sobre a forma societária dos clubes de futebol do Brasil tenha sido a edição da Lei nº 9.615/98 (“Lei Pelé”) que, no seu artigo 27 original, estabeleceu que a participação em “competições de atletas profissionais” seria “privativa” de “clubes esportivos constituídos como sociedades empresariais ou sociedade civil de fins econômicos”.
Passados vinte e dois anos de discussões, debates e idas e vindas legislativas, há expectativa de que o Senado Federal irá votar, até o final deste mês – escrevo este texto em novembro de 2020 – o PL 5082/2016, que visa criar um ambiente favorável – sem obriga-los a tanto – para os clubes que pretendam constituir empresas para gerir o departamento de futebol profissional, em convergência com a criação de um tipo societário específico para os clubes de futebol: a Sociedade Anônima do Futebol – SAF.
Neste artigo, pretendemos voltar às origens da discussão, fazendo tentativas de responder a pergunta que está no seu título: por que devemos discutir a forma societária das entidades esportivas?
Despretensiosamente, entendemos que retomar essa questão, possa servir para trazer elementos de base mais consistentes para o hoje, tão presente, debate sobre a forma societária das nossas entidades esportivas – que, pelo desenvolvimento praticamente unimodal da cultura esportiva brasileira, segue mais centrado nos clubes de futebol – refletida no embate entre a forma das associações ou aquelas dos clubes-empresa.
Uma entidade, seja qual for sua natureza, é formada a partir da reunião de pessoas visando atingir determinado objetivo, que pode ser: realizar atos de comércio ou prestar serviços com a pretensão de obter lucro que remunere condignamente seus sócios/cotistas; ou proporcionar atividades culturais, recreativas, ou mesmo defender alguma causa considerada socialmente relevante, sem nenhuma pretensão econômica como resultado.
Ao longo do tempo, o desenvolvimento de grupos interpessoais para realização de determinadas ações resultou na criação de formatos distintos de organização que, no ordenamento brasileiro, estão definidos no artigo 44 do Código Civil, contemplando os diversos tipos de pessoas jurídicas, quais sejam: I as associações, II as sociedades, III as fundações, IV as organizações religiosas e V os partidos políticos.
Forma de organização utilizada de forma praticamente predominante pelas entidades esportivas brasileiras, as associações estão previstas nos artigos 53 a 61 do Código Civil. O artigo 53 pontua que “constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.” (n.g.)
A organização de pessoas em associações está historicamente ligada aos movimentos liberais do Século XVIII, dentre os quais destacam-se a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, que primaram pela defesa da maior participação do cidadão nas decisões governamentais. Ao longo dos tempos, a constituição de associações foi a forma que grupos da sociedade civil encontraram para unir pessoas com interesses ou necessidades comuns, a fim de potencializar sua capacidade de representação diante dos poderes públicos e diante dos outros segmentos da sociedade.
As associações também são voltadas à realização de atividades recreativas, culturais, religiosas, de benemerência, entre outras que, mesmo necessitando da obtenção de receitas financeiras a serem reinvestidas para sua manutenção, não têm como função primaz as atividades de natureza e finalidade econômica.
A alternativa ao modelo clubes associativos, com ainda pouca incidência no esporte brasileiro, embora muito utilizada por entidades de prática do esporte nos Estados Unidos, na Europa e em outros continentes, é a gestão das atividades esportivas por meio das sociedades empresariais.
A finalidade das sociedades empresárias, ao contrário do que ocorre com as associações, é o desenvolvimento de atividade econômica com a circulação de bens e serviços. As sociedades empresárias permitem, tendo por objetivo, que os lucros gerados com as atividades econômicas realizadas sejam distribuídos entre seus sócios/quotistas.
A despeito do Código Civil prever uma série de espécies de sociedades empresárias, os mais utilizados e, como tal, úteis à discussão afeita ao tema da constituição societária das entidades de prática esportiva são: as sociedades anônimas, que estão previstas no Código Civil e contam com uma Lei das Sociedades Anônimas específica – Lei nº 6.404/76 – tida e havida como uma das mais completas e bem sucedidas leis de sociedade anônima no Mundo; e as sociedades limitadas, previstas nos artigos 1.052 a 1.087 do Código Civil.
A doutrina distingue as sociedades anônimas das sociedades limitadas especialmente no que diz respeito à responsabilidade dos seus sócios ou quotistas. Nas sociedades anônimas, o capital social é dividido em ações e a responsabilidade do acionista é limitada ao preço de emissão das ações. Já nas sociedades limitadas, os quotistas se responsabilizam solidariamente, até o limite de suas quotas integralizadas no capital social.
Relembrar as características dos tipos de organização acima mencionados, serve, a nosso sentir, para trazer os elementos primordiais que servirão como base para a discussão acerca da melhor forma constituição das nossas entidades esportivas.
O tipo de pessoa jurídica utilizado é, para ilustrar, a “casca” da entidade, ou, por assim dizer, é o “traje”, a “roupa” adequada que a entidade deve vestir para melhor atender aos objetivos e funcionamento da organização.
A utilização de um “traje” inadequado pode ser obstáculo ao bom desenvolvimento de determinada atividade. Como se alguém que vai colher o mel numa colmeia de abelhas deva vestir a roupa apropriada para tanto, que cubra todo o corpo com um tecido suficientemente espesso para não permitir que o ferrão das abelhas atinja sua pele, deva usar máscara de proteção com tela e calçar botas. De outra parte, se alguém irá participar de uma maratona, correndo 42,2 km, deve vestir roupas esportivas com tecido fino e leve e calçar tênis de corrida. O erro na escolha do traje correto para cada uma dessas atividades por levar a sérias consequências. A pessoa que vai ao local onde se colhe o mel das abelhas vestido com o uniforme do maratonista, possivelmente irá sofrer picadas dolorosas. Aquela que se dispuser a correr a maratona com o equipamento de proteção do apicultor, terá grandes dificuldades para completar a prova, por mais bem preparado que esteja.
Uma vez repisado os conceitos e finalidades dos tipos jurídicos relevantes para a discussão, basta refletir sobre o teor a natureza das atividades atualmente realizadas, a bem do debate, pelos nossos principais clubes de futebol, para caminhar ao encontro da conclusão acerca da melhor conformação societária a ser adotada para seu aprimoramento e desenvolvimento.
A discussão sobre o tipo de organização ideal para as entidades de prática esportiva que participam de competições entre atletas profissionais é salutar e sua importância não pode ser relegada a um segundo plano. Afirmar que o debate sobre a melhor opção para organização das entidades esportivas, entre associações ou sociedades, não afeta sobremaneira o progresso do nosso esporte nos parece tão superficial como o entendimento oposto, aquele que defende que a mera escolha da opção societária correta seria a panaceia de todos os males. Nem uma coisa, nem outra.
O esporte brasileiro precisa escolher o “traje” adequado que irá vestir para enfrentar os desafios do Século XX, mesmo sabendo que, mesmo com a roupa mais adequada, serão as pessoas responsáveis pela gestão as principais responsáveis pelo seu sucesso.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹José Francisco Cimino Manssur – advogado sócio de Ambiel Advogados desde 2008. Professor da Disciplina de Direito Desportivo do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor da cadeira de Direito Desportivo no Curso de Gestão para Profissionais do Esporte da FGV/SP, Universidade São Marcos e Marketing Champion da ESPM. Ex Vice-Presidente de Comunicação e Marketing do São Paulo Futebol Clube. Co-autor dos Livros Futebol, Mercado e Estado e Sociedade Anônima do Futebol. Auditor e Vice-Presidente do TJD do Basquete entre 2008 e 2019.