Raimundo da Costa Santos Neto¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
Sabe-se há muito que é anseio de grande parte dos atores do mundo esportivo a renovação na gestão do esporte. Passaram-se muitas gerações de atletas, porém, a gestão do esporte permaneceu na mão de poucos, apelidados muitas vezes de maneira pejorativa como cartolas.
Cientes desse anseio de mudança, a legislação brasileira evoluiu e adotou uma série de medidas condicionando o recebimento de verbas públicas à adoção de medidas de transparência, alternância no poder e gestão participativa.
Nessa esteira, nascia a Lei Federal nº 12.868/2013, que introduziu em abril de 2014, o artigo 18-A, na Lei Pelé, prevendo em seu inciso I, a regra de que o presidente ou dirigente máximo de uma entidade desportiva teria o mandato de até 04 (quatro) anos, permitida 01 (uma) única recondução.
Sem dúvidas, tratava-se de uma revolução já que a tradição patrimonialista do Esporte mantinha o poder ao longo dos anos na mão de poucos gestores, bastando lembrar que o Comitê Olímpico do Brasil, ao longo de seus 107 anos de história teve apenas nove presidentes, nenhuma mulher diga-se de passagem².
Contudo, os ventos de mudança que sopravam de fora para dentro do mundo esportivo, em momento de investimento maciço pré-olimpíadas, parecem ceder ao estamento esportivo fortalecido pela renegação do Esporte como política pública prioritária a partir da extinção do antigo Ministério do Esporte.
Não à toa, o Comitê Olímpico do Brasil passou a ser o único protagonista de peso no esporte olímpico, sendo dispensado, inclusive do cumprimento da Lei Pelé pelo parecer jurídico nº 396/2019 CONJUR/MC/CGU/AGU, sob o frágil argumento de que as verbas da loteria federal seriam verbas próprias do Comitê Olímpico, sendo, pois dispensável o cumprimento das normas do artigo 18 e 18-A, que preveem instrumentos de transparência, accountability, e gestão democrática dentre outros necessários à uma governança saudável. Diria, foi o primeiro grande revés após anos de avanço.
Mas os movimentos de retrocesso ou diria, de reconquista de território, não cessaram e após sete anos da sanção da lei que revolucionaria a gestão esportiva, colocando termo à perpetuação dos “donos do esporte” nas confederações, a norma sofre nova contestação, agora sob os auspícios do Comitê Olímpico do Brasil.
Contrariando entendimento já sedimentado no Ministério da Cidadania, conforme parecer jurídico nº 00155/2020/CONJUR-MC/CGU/AGU, no sentido de que os gestores eleitos quando da edição da Lei nº 12.868/2013, teriam seus mandatos resguardados, sendo-lhe, porém, permitida uma única recondução, o Comitê Olímpico Brasileiro passou a sustentar em parecer jurídico responsivo à consulta de suas Confederações filiadas que a lei não vedaria uma segunda reeleição aos cargos diretivos de dirigentes que já estivessem no poder quando da edição da norma em 2014, quer em razão de dispositivo da Lei Pelé garantir respeito ao período de mandato do presidente ou dirigente máximo eleitos antes da vigência da Lei, quer em razão de uma suposta retroatividade da norma que violaria ato jurídico perfeito.
Por óbvio que o entendimento diametralmente oposto entre a administração pública e a entidade privada de fomento do esportivo olímpico acendeu uma bomba relógio e trouxeram imensa insegurança ao desporto olímpico, cujo um terço das entidades tem dirigentes no posto há mais de uma década.
Explica-se, a seguir as orientações permissivas do Comitê Olímpico do Brasil as entidades olímpicas colocarão em risco a certificação da Secretaria Especial de Esporte para receber os recursos da Lei Pelé, já que será o entendimento da Advocacia Geral da União que prevalecerá para fins de reconhecimento do cumprimento legal pelas entidades das normas para a percepção de verbas públicas.
Salienta-se aqui duas premissas. A primeira é a de que não há obrigação legal de que as entidades cumpram o artigo 18 e seguintes da Lei Pelé para que continuem existindo.
As entidades possuem autonomia constitucionalmente garantida no artigo 217, I, da Carta Magna para que organizem e giram o esporte.
A segunda premissa é a de que para receberem recursos públicos de qualquer natureza, elas devem cumprir uma série de requisitos que a norma infraconstitucional dispõe, renunciando a parte de sua autonomia organizacional em troca de investimentos públicos.
Tangenciando o tema, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI5450-DF, em voto do Ministro Alexandre de Moraes dispôs que o estabelecimento de requisitos de mudanças estatutários para aderência ao PROFUT não seria uma intervenção arbitrária na autonomia das entidades desportivas, mas o consectário de um regime de cooperação entre o Poder Público e as entidades privadas, mormente em razão da voluntariedade na adesão ao programa.
Note-se, pois, que a mesma interpretação é aplicável às entidades olímpicas no sentido de que os limites para sua criação, organização e gestão estão dispostos nos diplomas de direito civil, porém, as condições excedentes para recebimento de verbas públicas encontram-se na Lei Pelé. É uma via de mão dupla.
Deve ser ressaltado que não há qualquer irrazoabilidade na regra limitadora de mandatos dos gestores, estando presentes os requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade. A necessidade decorreu de uma incapacidade de autorregulamentação do sistema desportivo que não conseguiu assimilar uma maior participação de outros atores como atletas em sua gestão. A adequação decorre do estabelecimento de critérios democráticos como requisito para o recebimento das verbas públicas e a proporcionalidade é clara à medida em que não se interferiu na organização da entidade, apenas criando-se parâmetros minimamente aceitáveis para o investimento público nas entidades, evitando-se colocar recursos em entidades sem transparência e gestão democrática.
Ao inovar a Lei Pelé trazendo a limitação de mandatos como requisito para o recebimento de verbas, por suposto, o Estado adotou como princípio esportivo a alternância de poder nas entidades, não se podendo interpretar o elemento normativo inscrito na Lei nº 12.868/2013, dissociado da mens legis.
Isso porque os princípios são como a alma das normas regulamentares. Nas palavras de Thiago Marrara³ “Os princípios são estruturas valorativas que, juntas, conformam as demais partes constituintes do ordenamento jurídico. Eles dão sentido ao todo, revelam a lógica por trás das tarefas quotidianas e das regras pormenorizadas que as disciplinam.
Assim, a interpretação adotada pelo Comitê Olímpico do Brasil acerca da norma que limitou o número de mandatos dos gestores esportivos para permitir nova reeleição torna-se enviesada e casuística, posto que fere de morte princípio que lhe deu vida.
Note-se, ainda que ao determinar a lei que fosse respeitado o período de mandato do presidente ou dirigente máximo eleitos antes da vigência desta Lei, apenas reiterou o respeito ao ato jurídico perfeito, não significando, contudo, um endosso para mais de uma reeleição.
Porém as velhas estruturas de poder resistem aos ventos de renovação, tentando impor uma hermenêutica torta que se aproxima a figura da Katchanga[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], popularizada em artigo do professor Lênio Streck, onde a interpretação da norma varia ao sabor dos interesses de plantão.
O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹Advogado e Procurador do Distrito Federal, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, Mestrando.
²Presidentes do Comitê Olímpico do Brasil – 08/09/2020 – Esporte – Fotografia – Folha de S.Paulo (uol.com.br) acessado em 07/04/2021.
³Princípios de processo administrativo | Revista Digital de Direito Administrativo (usp.br), acessado em 07/04/2021.
[4] ConJur – Senso Incomum: A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil acessado em 07/04/2021.
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