Pitágoras Dytz[1]
Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. Então você se diverte jogando videogame, você se divertiu.
Com essas frases, Ana Moser, medalhista olímpica em 1996 (Atlanta, Estados Unidos da América), “inaugurou” sua gestão à frente do recriado Ministério do Esporte. Pelas reações provocadas, o ataque desferido pela ex-ponteira do selecionado brasileiro foi uma verdadeira “medalha” no peito dos praticantes dos chamados e-sports, mas não dessas que reluzem, de ouro, prata ou bronze e que todo atleta almeja, e sim uma carimbada capaz de desnortear o adversário do outro lado da rede.
A gritaria não foi pouca, tampouco pequena e, parece-me que o fato de a mandatária ter comparado os treinos dos jogadores de e-sports à preparação de uma cantora de axé contribuiu fortemente para obnubilar ainda mais as coisas. Como era de se esperar em tempos carregados de ansiedade de ser o primeiro a se posicionar sobre um assunto, no açodamento da primeira hora, de nervos à flor da pele – a real e não a dos personagens usados pelos jogadores nos embates virtuais – muita coisa foi dita num debate centrado basicamente em questões de menor importância prática e que pouco agregam, reduzindo o espaço para se ir a fundo naquilo que, de fato e de direito, realmente importa quando a opinião parte de um Ministro de Estado. Salvo melhor juízo, deu-se muito mais atenção ao aspecto político da fala ministerial do que ao seu viés [e efeitos] jurídico.
Nessa senda, de tudo o que foi dito na entrevista dada em 12 de janeiro, há questões que merecem especial atenção e a correspondente elucidação.
A começar pelo fato de que, exceto como opinião pessoal e exercida no campo político, pouco importa se a Ministra do Esporte reconhece um fato social ou expressão cultural como esporte ou se atribui ou não a determinada modalidade o qualificativo de esportiva, pois, pelo desenho constitucional brasileiro – e, por conseguinte, na intersecção entre os campos político e jurídico, o Estado, e, por conseguinte, a própria mandatária, carecem de legitimidade para tanto.
Não se olvide que, conforme conceituação dada por Durkheim, o esporte é um fato social, assim entendida como uma maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais. Logo, sendo um fato social, ele existe independentemente da vontade ou reconhecimento estatais. O que o Estado pode fazer – e o faz – é, reconhecendo esse fato social, e valendo-se do Direito como instrumento, conferir-lhe efeitos jurídicos, transformando a vontade política em ação prática institucionalizada. Mas, ao assim fazer, deve observar os limites constitucionais, os quais, em nenhum momento, atribuem ao Estado o direito, ou o dever, de dizer o que é e o que não é esporte.
O fim da legitimidade do Estado para definir o que era ou não Esporte e como deveria ser praticado veio em 1988, com a promulgação da Constituição Federal cujo artigo 217 estabelece que o Estado tem múltiplos deveres nessa quadra de ação: fomentar a prática esportiva, respeitando a autonomia das entidades dirigentes e associações – no que se refere ao seu funcionamento e organização – incentivar o lazer, priorizar ações voltadas ao esporte educacional, ao tempo em que não pode descurar da proteção às manifestações de criação nacional.
Assim, do ponto de vista eminentemente jurídico, no que concerne à atuação estatal em matéria de Esporte, especialmente para fins de atribuir tais efeitos à prática de uma modalidade específica – e colher os benefícios estatais daí decorrentes, pouco importa quais as características inerentes à prática em si, se se exige mais ou menos treino, se envolve o uso de equipamentos ou não, por exemplo.
Sob o enfoque da legislação atual, isso faz ainda menos sentido, pois, tendo observado os limites fixados pelo constituinte, o legislador infraconstitucional estabeleceu diferenças que, em regra – exceção feita à Bolsa Atleta, não adotam a modalidade praticada como elemento de discrímen, mas levam em consideração ora a forma como se manifesta tal prática – educacional, participação, rendimento ou formação – ora o público a ser atingido, como no caso da lei federal de incentivo ao Esporte que, no § 6º de seu artigo 1º, fala de comunidades em situação de vulnerabilidade social.
Aliás, porque não se valer do potencial de atração de público e, por consequência, de investidores, para, aproveitando os amplos limites de arrecadação conferidos pelo mesmo § 6º de seu artigo 1º da lei federal de incentivo ao esporte – o dobro do limite dedutível por pessoas jurídicas, e estabelecer como contrapartida o aparelhamento de escolas e/ou centros comunitários em áreas carentes, especialmente face à carência de recursos no orçamento federal? Os e-sports também podem ser um meio para inclusão social e digital e ascensão social de jovens em situação de vulnerabilidade social tanto quanto qualquer outra modalidade.
Assim como as escolhas do constituinte limitam e orientam as escolhas do legislador infraconstitucional, as escolhas feitas por esse limitam as do gestor, e é dentro dessas margens que elas devem ocorrer, sob pena de ilegalidade. As margens deixadas são aparentemente estreitas, mas não impedem o gestor de agir.
No caso específico dos e-sports, a opinião política da atual Ministra pode influenciar na tomada de algumas decisões administrativas, como na definição dos critérios para reconhecimento de competições válidas para a concessão de Bolsa Atleta (artigo 7º-A da Lei nº 10.891, de 2004), mas, exceto sob o risco de arbítrio e crassa ilegalidade, a exigir a devida responsabilização, pouco ou nenhum efeito terão, por exemplo, sobre a aprovação de projetos no âmbito da lei federal de incentivo ao esporte, pois, como já registrado, o que se leva em conta é a forma de manifestação e não a modalidade beneficiada e, sob esse aspecto, os esportes eletrônicos são plenamente subsumíveis às hipóteses previstas no artigo 3º da Lei Pelé.
Portanto, do ponto de vista constitucional, sob o prisma eminentemente jurídico, e, principalmente, da legislação atualmente em vigor e que regula os benefícios estatais voltados ao fomento na seara esportiva, não vejo razão para se perder tempo discutindo se e-sports podem ou não ser considerados uma manifestação esportiva, nem tampouco tentar incluí-lo ou excluí-lo de um conceito que sequer existe – o conceito jurídico de Esporte – e que a redação proposta no PL nº 1153, de 2019, em trâmite no Senado Federal, em nada resolverá. Fato é que, se voltada ao entretenimento ou à competição, a prática do jogo eletrônico está albergada pelas leis federais de fomento ao esporte, prescindindo de qualquer reconhecimento do Estado quanto a ser ou não Esporte.
Ao incluir o Esporte entre os temas material e formalmente constitucionais, o constituinte originário impôs ao Estado, por meio de seus órgãos e agentes, os limites dessa relação. Ao fim e ao cabo, para além de representar um receiturário de ação política, um libelo, o texto constitucional representa uma exortação aos agentes do Estado, desde o legislador até o mais singelo dos servidores, a atuar na promoção do Esporte conforme as prédicas constitucionais. Nem a norma, nem os atos administrativos que se circunscrevam à seara esportiva podem desbordar desses limites, ou dirigir-se em sentido contrário àquele indicado pelo constituinte, sob pena de esvaziar por completo seus éditos.
E vou além. Exceto nos debates no Congresso Nacional ou na formação de uma opinião pública favorável, nem a vontade política do governante do momento pode impor outros limites que não aqueles já postos pelas normas. Qualquer jogada nesse sentido será uma bola fora quem sabe representar um game over!
* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.
[1] Escritor. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito/UFRGS. Advogado da União. Membro da Consultoria Jurídica Ministério do Esporte, 2011-16. Consultor Jurídico junto ao ME, 2013-16. Diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal da AGU, 2016-18. Auditor do STJD/Voleibol de 2016-20. Membro da Secretaria de Análise de Atos Normativos da AGU. Professor de Direito Desportivo. Membro filiado ao IBDD.
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