Milton Jordão ¹
Membro Filiado ao Instituto de Direito Desportivo do Brasil (IBDD)
Caros leitores,
Inicio hoje uma jornada no IBDD, na qualidade de colunista, atendendo ao gentil convite feito pelo estimado amigo Leonardo Andreotti, Presidente do Instituto. Confesso que a surpresa me assaltou, visto que não esperava compor grupo tão qualificado de pensadores do Direito Desportivo nacional.
Todavia, como não me furto aos desafios, entendi por bem aceitar a incumbência presidencial e, a partir deste instante, dedicar-me-ei a, neste espaço virtual, compartir com vocês angústias, dilemas, alegrias e novidades que vivenciei e vivenciarei no Direito Desportivo.
Curiosamente, a primeira coluna, o debutar, se deveu ao destino, pois pensava em discutir com vocês uma questão de matriz jusdesportiva, temática técnico-jurídico, todavia, quis a coletiva do técnico do Esporte Clube Bahia, Roger Machado, que tudo mudasse. E mudou. Ao menos para mim.
Cuidava, no último sábado (12 de outubro de 2019), de assistir a partida do meu clube do coração, o Esporte Clube Bahia, que, ao fim, restou derrotado pelo Fluminense Football Club, quando, já desanuviando do infortúnio que padecemos, me detive a acompanhar o que o nosso mister diria sobre o jogo. Ainda entretido com as questões técnicas do embate, fui desarmado e me pus a refletir sobre um tema tão próximo de todos nós e ocultado diuturnamente: o racismo no futebol.
O técnico Roger Machado, em aproximados cinco minutos, calou a todos e nos fez pensar. Suas palavras desnudaram as dificuldades que profissionais negros padecem e até mais, as agruras de ser negro no Brasil. Observe-se que, ainda hoje, se verifica certa constância de ofensas raciais dentro de campo, malgrado todos esforços empreendidos ao longo dos anos pela FIFA, por Federações Nacionais e por clubes. São campanhas e mais campanhas de conscientização, criação de normas proibitivas e sanções, que visam fustigar esta chaga; contudo, ainda assim, ela permanece ali, presente.
Entretanto, este racismo perpetrado dentro de campo de jogo, seja por um colega de profissão, seja por torcedores é mais fácil de se combater do que aquele denunciado por Roger Machado, que é o racismo existente fora das quatro linhas.
Embora impactado pela entrevista (mais pela coragem do técnico em afirmar tudo aquilo), não estava surpreso com o fato revelado, pois, tivera a oportunidade de encetar debate no Fórum Social Mundial sobre este mesmo tema, em março de 2018². Naquela oportunidade indagava, como faço até hoje, como compreender a democracia racial no esporte se existem poucos técnicos negros ou mesmo, como equipes nunca contam em suas estruturas administrativas de negros em posição de maior destaque. É uma falácia a democracia racial. Os óbices são ocultos e seguem sendo ocultados.
No futebol isso é curioso, pois nossos maiores atletas, os ícones do desporto bretão, são e foram negros. Então, como estes não poderiam contribuir deveras para os clubes ou federações? Será que não poderiam proporcionar revoluções administrativas se assim fizeram em campo?
A dificuldade que os profissionais negros do futebol padecem para se colocar no competitivo mercado de trabalho do mundo da bola não se explica somente pela meritocracia. Uma simples mirada na Europa nota-se que grandes craques do campo, por vezes, acabaram exercendo postos de destaque, a exemplo de Johan Cruijff ou Franz Beckenbauer, este além de técnico se tornou grande dirigente esportivo.
O discurso de que as oportunidades são iguais é falso. Basta rememorar o que foi o próprio começo do negro no futebol pátrio. Uma viagem no tempo, nas letras de Mário Filho, nos traz a certeza de que a luta não acabou, bastando rememorar o que Gentil Cardoso, negro, embora campeão pelo Vasco da Gama na década de 50, foi preterido e demitido com escusa fútil, para, em seu lugar, assumir um branco. Inclusive, vociferou que se ele fosse branco nada daquilo teria ocorrido³. Este é apenas um recorte de tantos casos que ocorreram no passado e ainda hoje teimam em vir à tona.
A luta contra o racismo no futebol segue, nos dias atuais, uma nova fase. Digo isso, pois, hodiernamente, os tempos vividos oscilam deveras, há uma grita enorme pelo afastamento de políticas de equiparação e reparação, sobretudo a racial, se nega (porque se quer negar, “simples assim”!) a existência de déficit, ou seja, a desigualdade de oportunidades. Seria, mutatis mutandi, a peleja que padecem as mulheres. Este obscurantismo impede que se reconheça e busque vencer a desigualdade, termina por dar vazão a um mito de igualdade racial (e de gênero também[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]).
Fora das quatro linhas, sem os habituais holofotes do gramado, fica muito mais difícil para se vencer. Naturalmente, casos existem e não estou aqui a negá-los, no entanto, é digno de reflexão: a maioria dos atletas brasileiros é formada por negros, porque não temos tantos negros no comando de clubes? E nas estruturas organizacionais, porque não temos presidentes de clubes ou entidades de administração do desporto que sejam negros?
É preciso lidar como este dilema, ver esta crua e latente realidade, de que há sim um sistema opressivo e invisível em desfavor dos negros no futebol.
O racismo ainda vive, ronda e traga bons valores, impede que se possa exercer a livre democracia, a igualdade e verdadeira (e tão estimada) meritocracia.
Ricardo Pinto de Souza ao abordar as tensões na consolidação futebol nacional relata, com clareza meridiana, a evidência e a ocultação do racismo: Temos que ressaltar que a exclusão do negro foi, em larga escala, dissimulada por uma exclusão social, ou seja, os grupos dirigentes não precisavam tocar no racismo para excluir os negros[5].
E complementa mais adiante dizendo que: A complexidade é muito grande para limitarmos o debate em um dos grupos sociais [faz-se menção aqui às classes mais populares versus as mais abastadas]. Desse modo, vale ressaltar que, no meio dessas tensões, as instituições esportivas assumiam um caráter fundamental, transformando racismo pessoal em racismo institucional[6].
Apesar do relato acima ter sido um registro histórico de outrora, ainda permanece a certeza de que não se extirpou o racismo da sociedade brasileira e, por conseguinte, das estruturas organizacionais esportivas, mesmo que ele seja (aparentemente) imperceptível, relatos como o de Roger Machado servem de alerta de que se tem muito por fazer, sobretudo, para que se cumpram os próprio valores que a prática esportiva enaltece!
Assim, portanto, é preciso rasgar o véu, assumir a existência do racismo (invisível, insensível e institucionalizado), para que, somente após este reconhecimento, se possa empreender verdadeiros esforços no seu combate!
¹ Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSal/BA. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro da Comissão Nacional de Direito Desportivo da OAB Nacional. Ex-Presidente e Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Auditor do STJD da Ginástica. Ex-Procurador do STJD do Futebol.
² “A mesa quatro, a última, trouxe a discussão: Racismo no Futebol e LGBTfóbia no futebol. Milton Jordão, advogado e presidente do instituto de direito desportivo da Bahia, explanou sobre o racismo na formação da sociedade brasileira e sua repercussão histórica no futebol do país, alertou acerca dos números negativos de participação negra de presidentes, técnicos e comissão técnica dos clubes.” Disponível em: https://observatorioracialfutebol.com.br/forum-social-mundial-debate-futebol-brasileiro/.
³ FILHO, Mário. O Negro no Futebol, 5a ed., Rio de Janeiro: Mauad X, 2010, p. 307.
[4] Recentemente, o STJD do Futebol instituiu uma comissão de mulheres juristas desportivas para julgar feitos do futebol feminine. Foi curioso ver as mais diversas reações a a esta Comissão Disciplinar, sendo um dos discursos mais aventados o da igualdade e da meritocracia. Mas, deixemos isso para outro momento e uma nova coluna.
[5] PRIORE, Mary del e MELO, Victor Andrade de (orgs). História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais, São Paulo: Ed. UNESP, 2009, p. 202.
[6] _____. Ob cit, p. 204.
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