ESPORTE ELETRÔNICO ? A NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE

Felipe Legrazie Ezabella – Advogado, Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo, sócio fundador do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, cursando a segunda edição do FIFA Diploma in Football Law.

 

Nos últimos dias o mundo dos E-Sports foi “surpreendido” com as declarações da Ministra do Esporte, a ex-atleta Ana Moser, que em entrevista ao portal UOL[1], ao responder ao jornalista Demétrio Vecchioli, afirmou que não tem intenção de investir no “esporte eletrônico”, que ao seu ver não é um esporte e sim um entretenimento. Para justificar sua posição argumentou que o jogo eletrônico não é imprevisível, pois tem uma programação fechada.

Vejam que a discussão sobre a não imprevisibilidade de um jogo eletrônico levantada pela Ministra, ou ainda se a simples utilização de um controle, joystick, mouse ou teclado pode ser considerada uma atividade física, impacta de sobremaneira sobre o enquadramento jurídico da atividade, ou seja, sobre qual legislação a regulamenta.

A discussão sobre ser esporte[2] ou não pode vir através de lei que o defina, ou mesmo por entendimento majoritário das organizações desportivas. Mas uma simples definição não resolveria por si só alguns dos problemas que o “novo” esporte enfrenta para se encaixar ao tradicional sistema desportivo nacional.

Sobre a definição do que é esporte, isso tem sido um desafio a professores e a doutrinadores; imaginem esse mesmo desafio em termos legislativos e de políticas públicas, sempre recheados de diversos interesses e vieses.

Para Luiz Roberto Martins Castro, “esporte é uma atividade física competitiva, delimitada por regras específicas, tendo o ser humano como agente principal”[3]. O mesmo autor, depois complementado por Ricardo Georges Affonso Miguel em sua obra “O Enquadramento Jurídico do Esporte Eletrônico[4], trazem à luz alguns elementos que a atividade deve conter para a caracterização como um esporte, quais sejam: (i) atividade física, (ii) caráter competitivo (performance e incerteza do resultado), (iii) caráter interpessoal, (iv) regras padronizadas e pré-definidas[5] e (v) talento.

Passando rapidamente pelos elementos, a questão do talento serve basicamente para diferenciar o esporte do jogo de azar; a existência de regras pré-definidas para que todos compreendam, respeitem e participem da atividade em igualdade; a relação interpessoal é no sentido de existir uma disputa entre pessoas; a competição é para que essas pessoas busquem um objetivo em comum e haja um vencedor de acordo com a melhor performance; e por fim, a atividade física tem que ser um diferencial, seja pelo grande esforço, seja pela proeza ou sutileza do que hoje se denomina “gesto técnico.”

Depois de refletir por algum tempo acabei por entender que o Esporte Eletrônico pode sim ser considerado um Esporte. Entendo perfeitamente a dificuldade de muitos, como a minha no início, de entender como que a atividade de “jogar videogame” pode ser considerada um esporte.

A questão é ainda mais difícil quando se compara a atividade física de um nadador ou de um corredor com a de um atleta de jogos eletrônicos. Mas se começarmos a comparar com a atividade física de um atleta de tiro, que nos dias de hoje utiliza pistolas de ar comprimido, veremos que nos gestos técnicos em consoles se faz muito mais esforço, mais atividade física, do que quando se utiliza a pistola de ar comprimido. Aqui apenas para ficar num único exemplo, sem falar dos jogos eletrônicos em simuladores onde a atividade física sequer é questionada (simuladores de remo, automobilismo, etc.).

Porém a Ministra trouxe uma nova questão para discussão, talvez nem tão nova assim, mas muito pouca discutida, que é a questão da suposta falta de imprevisibilidade de um jogo eletrônico, pois tem uma programação fechada, com códigos fontes protegidos uma vez que os jogos, em sua imensa maioria, são de propriedade de terceiros.

Realmente esse ponto levantado pela Ministra merece um melhor olhar da comunidade esportiva. Como garantir que os elementos essenciais que caracterizam o esporte, como o das regras padronizadas e pré-definidas, bem como o da performance com a incerteza do resultado, não serão violados?

Talvez com auditorias, controles, códigos fontes abertos. Mas será que as donas dos jogos se interessariam por isso? Realmente é um ponto de muita reflexão.

Outro ponto que também precisa ser debatido é a real intenção ou mesmo necessidade dos jogos eletrônicos serem definidos ou caracterizados como esporte. Não seria apenas uma questão de “status”, uma vez que em tese é melhor ser um “atleta” do que um “jogador de videogame”.

Lógico que a questão passa pelo enquadramento jurídico, uma vez que sendo considerado um esporte, automaticamente o ambiente passa a ser regulado pelas leis esportivas, aí pensando em leis de incentivo ao esporte, bolsa atleta, tributação, contratos de formação e de trabalho com os atletas e suas rotinas de treinamento e preparo.

Mas não esqueçamos que as leis esportivas também exigem que a solução de disputas seja via Justiça Desportiva (STJD’s, TJD’s, CD’s), que o Estatuto do Torcedor também traz uma série de exigências, como a realização de um campeonato por pontos corridos. Já para fazer parte do Sistema Nacional do Desporto serão necessárias Federações, Confederações, clubes e o cumprimento de uma série de normas burocráticas dos nossos tradicionais esportes.

E essa ausência de definição sobre o enquadramento jurídico ou mesmo de uma legislação própria que, ao meu ver, seria mais apropriada, faz com que haja uma busca natural da indústria para aproveitar o que há de melhor e mais benéfico na legislação nacional. E isso, realmente, merece uma solução legislativa rápida e a contento.

A indústria de games possui características próprias e muito diferentes do atual sistema desportivo brasileiro, o que dificulta de sobremaneira a sua incorporação ao sistema já existente como se fosse uma nova modalidade esportiva. Assim, a utilização dos conceitos tradicionais e doutrinários que tentam há décadas definir o que é esporte para justificar a classificação dos jogos eletrônicos como um esporte não ajuda a resolver os problemas da indústria, uma vez que eles, em muitos aspectos, não se enquadram (e nem querem se enquadrar!) no sistema desportivo brasileiro.

Não precisa aqui ser dito que os jogos eletrônicos são uma indústria gigantesca que certamente necessita de um tratamento legislativo adequado para que não circule pelas brechas de cada uma das legislações que regem os esportes, os softwares, as propriedades intelectuais, a cultura, etc.

Estamos vivendo uma era em que os esportes tradicionais tentam, cada vez mais, aproximarem-se da indústria do entretenimento. Os jogos eletrônicos estão fazendo o caminho inverso: de atividade lúdica de puro entretenimento estão migrando, numa velocidade muito mais rápida, para uma atividade esportiva. Estamos ainda a viver uma era em que as duas atividades vão se fundir, e isso não vai demorar muito.

[1] https://www.uol.com.br/esporte/colunas/olhar-olimpico/2023/01/11/esports-querem-ser-tudo-ao-mesmo-tempo-para-ganhar-em-todos-os-lados.htm

[2] Como sempre lembrado pelo Professor Álvaro Melo Filho, a Constituição Federal utiliza a palavra “desporto” ao invés de “esporte”. Mauricio Correa da Veiga, ao que parece, “herdou” do Professor Álvaro a iniciativa de, sempre que possível, lembrar e defender a terminiologia utilizada pela Carta Magna. São sinônimos: esporte eletrônico, desporto eletrônico.

[3] “Apresentando o Direito Desportivo” in Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo, Ano XXXIV, abril de 2014, nº 122, p. 8.

[4] São Paulo: Quartier Latin, 2019, páginas 23/28.

[5]Rules do not get in the way of the game, they make it possible”. Arcebispo de Canterbury, Rt. Revd George Careyum, dos mais apaixonados torcedores do Arsenal, em uma conferência na Câmara dos Lordes