Isabela Gobetti Merçon de Lima
Membro filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.
O interesse estrangeiro, em especial do mercado europeu, por jogadores de futebol brasileiros, ainda menores de idade, é notável. O Brasil, como é cediço, é celeiro de atletas, havendo “produção” em massa de futuros craques, razão pela qual os clubes do exterior cada vez mais intensificam suas observações nos campeonatos nacionais.
Nos últimos tempos, transferências milionárias envolvendo jogadores com menos de 18 anos de idade foram sacramentadas, vide as contratações dos atletas Vinicius Jr., Reinier e Rodrygo pelo Real Madrid – muito embora saibamos que somente com a maioridade dos atletas as transferências foram implementadas, seguindo as regras da Fédération Internationale de Football Association (“FIFA”).
Para os clubes de futebol brasileiros que, em grande parte, encontram-se extremamente endividados, os ganhos financeiros provenientes das categorias de base são importantíssimos. Quanto aos atletas, resguardar seus direitos, ainda mais quando menores de idade e no início de uma carreira, é fundamental. Assim, providencial discutir e verificar a estabilidade de contratos de trabalho e de formação, firmados por atletas de futebol menores de idade, por prazo superior a 3 anos.
A Lei nº 9.615/1998 (“Lei Pelé”) dispõe, em seu artigo 29, parágrafo 4º[2], que contratos de formação podem ser firmados pelos clubes com atletas maiores de 14 anos e menores de 20 anos de idade.
No caput do referido artigo 29[3], estabelece-se que a entidade de prática desportiva formadora possui o direito de firmar com o atleta, a partir de 16 anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo (“CETD”), cujo prazo não poderá ser superior a 5 anos.
Em sede de regulamentação da Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”), o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (“RNRTAF”) disciplina, no caput do artigo 7º, sobre a duração mínima e máxima do CETD no mesmo sentido que a Lei Pelé. No entanto, seguindo as diretrizes da FIFA (conforme artigo 18.2 do Regulation on the Status and Transfer of Players – “RSTP”), dispõe, no parágrafo único do artigo 7º, que, em se tratando de atletas menores de idade, quando em eventual litígio submetido a órgão da FIFA, serão considerados somente os 3 primeiros anos de duração do contrato[4].
No que concerne aos regulamentos da FIFA, imperioso frisar que o artigo 26, parágrafo 3, do RSTP[5], determina que as federações nacionais de futebol devem compulsoriamente alterar seus regulamentos, a fim de que sejam devidamente acomodadas as disposições do artigo 1 do referido regulamento, mormente, seu parágrafo 3, a).
Tal dispositivo (artigo 1, do RSTP) define que determinados artigos são vinculativos a nível nacional e têm de ser incluídos, sem alterações, nos regulamentos das federações, quais sejam, artigos: 2-8, 10, 11, 12bis, 18, 18bis, 18ter, 19 e 19bis[6], que são como cláusulas pétreas.
Conforme se pode observar, o mencionado artigo 18 está presente nesse rol. Dentre as suas previsões, há o parágrafo 2, parte final, que dispõe que “os jogadores com menos de 18 anos não podem assinar um contrato profissional por um termo superior a três anos. Qualquer cláusula que preveja um período mais longo não será reconhecida” (tradução livre)[7].
Diferentemente da legislação brasileira, na qual o atleta adquire o status de profissional por meio da celebração de um CETD com um clube, o RSTP considera profissional um atleta que possui um contrato escrito com um clube e que recebe mais por sua atividade futebolística do que as despesas nas quais ele, atleta, efetivamente incorre. Todos os outros jogadores são considerados amadores[8].
Dessa forma, os critérios relevantes escolhidos pela FIFA para a diferenciação do jogador profissional e não profissional são o contrato escrito e a remuneração.
Assim, a celebração de um CETD, quando ainda menor de 18 anos o jogador, por prazo superior a 3 anos, claramente não coaduna com o previsto no RSTP. Nesse mesmo sentido, não harmoniza com o quanto disposto no mencionado regulamento da FIFA a celebração de um contrato de formação, quando ainda menor de 18 anos o jogador, por prazo superior a 3 anos, e considerando os termos e as condições do referido instrumento, em especial no que se refere ao valor a ser pago mensalmente ao atleta, que ultrapassa as despesas nas quais o jogador efetivamente incorre.
As hipóteses supra mencionadas são situações nas quais, à luz do artigo 2, parágrafo 1, do RSTP, há a celebração de um contrato profissional por termo superior a 3 anos com jogadores menores de idade, de modo que, conforme dispõe o artigo 7º, parágrafo único, do RNRTAF, em caso de litígio submetido a órgão da FIFA, somente serão considerados os 3 primeiros anos de vigência do contrato. Traduzindo: caso seja do interesse do atleta a celebração de um novo contrato profissional com entidade de prática desportiva estrangeira, após atingidos os 3 primeiros anos de contrato (seja de trabalho ou de formação), irá o atleta, embasado nas normas associativas da FIFA, comunicar ao clube a rescisão do contrato, seja esse um CETD ou um contrato de formação.
Há, portanto, claro conflito entre as normas associativas da FIFA e da CBF e as previsões da legislação federal nacional, a Lei Pelé. A questão é que a CBF, como integrante da FIFA, deve atender às normas da entidade internacional, sob pena de desfiliação.
Dentro do sistema associativo, dada a dimensão internacional do caso, na eventualidade de efetiva existência de uma transferência internacional, de fato, há de ser observado o disposto nos regulamentos da FIFA e as regras específicas do TMS. Nesse sentido, é inclusive a jurisprudência da Corte Arbitral do Esporte ao estabelecer que “as leis nacionais e os regulamentos internos não são a lei aplicável no caso de um litígio com um elemento internacional. Esses litígios são exclusivamente regidos pelos termos do RSTP da FIFA e suas definições”[9].
Além disso, a Corte Arbitral do Esporte também já decidiu que “(…) no caso de uma transferência entre clubes pertencentes a diferentes associações como o caso em questão, no caso de inconsistência entre uma disposição da CBF e uma disposição da FIFA, a disposição da FIFA prevalecerá”[10].
Como tratado anteriormente, os atletas provenientes das categorias de base são ativos importantíssimos para as entidades de prática desportiva, tendo em vista que as taxas de transferência pagas pelos clubes do exterior, muitas vezes, são o que desafogam as contas dos clubes ou, ao menos, surgem como um excelente complemento para a formação de fortes elencos. A possibilidade de perder um atleta, um ativo, para um clube estrangeiro, sem qualquer contrapartida, indubitavelmente, gera um desequilíbrio financeiro e organizacional. Por outro lado, hão de ser preservados os direitos do atleta de futebol.
Assim, constata-se que essa incompatibilidade entre a Lei Pelé e o RSTP poderá acarretar significativos empecilhos para os principais atores do futebol brasileiro, de modo que o referido cenário deve ser tratado com cautela.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.
[1] Pós-graduada em Gestão do Esporte e Direito Desportivo pela Faculdade Brasileira de Tributação em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Advogada no escritório Tannuri Ribeiro Sociedade de Advogados. Membro filiada ao IBDD.
[2] Art. 29. […] § 4º O atleta não profissional em formação, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes.
[3] Art. 29. A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos.
[4] Art. 7º. O contrato especial de trabalho desportivo, facultado a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade do atleta, terá prazo determinado, com duração mínima de 3 (três) meses e máxima de 5 (cinco) anos. Parágrafo Único – Os atletas menores de 18 (dezoito) anos podem firmar contrato com a duração estabelecida no caput deste artigo amparados na legislação nacional, mas, em caso de litígio submetido a órgão da FIFA, somente serão considerados os 3 (três) primeiros anos, em atendimento ao art. 18.2 do Regulamento da FIFA sobre o Status e a Transferência de Jogadores.
[5] Art. 26. Transitional measures. 3. Member associations shall amend their regulations in accordance with article 1 to ensure that they comply with these regulations and shall submit them to FIFA for approval. Notwithstanding the foregoing, each member association shall implement article 1 paragraph 3 a).
[6] Art. 1. Scope. 3. a) The following provisions are binding at national level and must be included without modification in the association’s regulations: articles 2-8, 10, 11, 12bis, 18, 18bis, 18ter, 19 and 19bis.
[7] Art. 18. Special provisions relating to contracts between professionals and clubs. 2. The minimum length of a contract shall be from its effective date until the end of the season, while the maximum length of a contract shall be five years. Contracts of any other length shall only be permitted if consistent with national laws. Players under the age of 18 may not sign a professional contract for a term longer than three years. Any clause referring to a longer period shall not be recognised.
[8] Art. 2. Status of players: amateur and professional players. 2. A professional is a player who has a written contract with a club and is paid more for his footballing activity than the expenses he effectively incurs. All other players are considered to be amateurs.
[9] CAS 2009/A/1781 FK Siad Most v. Clube Esportivo Bento Gonçalves, sentença de 12 de outubro de 2009, n. 38. No mesmo sentido, CAS 2007/A/1370 & 1376.
[10] CAS 2009/A/1781 FK Siad Most v. Clube Esportivo Bento Gonçalves, sentença de 12 de outubro de 2009, n. 40.
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