Estatização do futebol e distorções jusdesportivas

Álvaro Melo Filho*

“O desporto está saindo da área privada das associações, para situar-se no território suspeito de dominação estatal”.                                     

                                                            Serrano Neves

 

É inescondível que as proposições legislativas feitas com ódio, rancor ou animus de vindicta, invariavelmente, abusam da folia verbal e se sustentam numa rasa profundeza jurídico-desportiva, fazendo com que esquizofrênicas soluções projetadas se transfundam em problemas, ao cogitar de dar vigência e eficácia a normas jusdesportivas distorcidas com o velado propósito de estatização do futebol.

 

Um exemplo bem atual centra-se nos artigos 36 a 40 do Substitutivo ao PL n. 5.201/13, apenso ao PL n. 6.753/13, nitidamente contaminados por algumas desvairadas ojerizas e indisfarçáveis discriminações. Cumpre realçar que referido Substitutivo ao PL denominado de PROFORTE pretende estabelecer princípios e práticas de responsabilidade fiscal e financeira e de gestão transparente e democrática para entidades desportivas, institui parcelamento especial para recuperação de dívidas pela União, autoriza a criação de novas fontes de recursos para o desporto escolar e dá outras providências.

 

À evidência, o Substitutivo sub examine condensa algumas relevantes ferramentas para inibir os gastos abusivos e déficits exorbitantes dos clubes de futebol professional que, em permanente instabilidade e risco econômico, comprometem os valores da sociedade desportivizada. Com efeito, o endividamento dos clubes brasileiros repousa em múltiplas razões. Por exemplo, os orçamentos de despesas que não são compatíveis com a receita que eles geram, as dívidas herdadas de gestões anteriores, a utilização antecipada do dinheiro de direitos televisivos, as dificuldades de vender jogadores para o exterior, a queda na receita de contratos de patrocínio, a fuga de torcedores dos estádios em face da violência, etc. Ademais, os gastos excessivos dos grandes clubes, com salários exorbitantes de jogadores e comissões técnicas, acima da capacidade de pagamento e ao arrepio de qualquer planejamento econômico, acabam exigindo a obtenção de onerosos empréstimos bancários ou a cessão de direitos econômicos a terceiros investidores para viabilizar tais contratações.

 

É este o retrato real do “país do futebol”, onde prepondera nos clubes o improviso, a desorganização e o estilo individualista dentro e fora de campo, repleto de criativas razões justificadoras de aventuras e desventuras financeiras, com interesses desportivos desatrelados de responsabilidades fiscais e financeiras, com muitos clubes envoltos num cipoal de gestões retrógradas, direções arcaicas e administrações artesanais. Trata-se, pois, de uma preocupação positiva do Substitutivo para conduzir a uma nova governança do futebol brasileiro, onde o problema maior é de falta de gestão, e não, de recursos financeiros.

 

De mais a mais, não se pode olvidar que num universo onde os clubes passaram a ganhar e a gastar cada vez mais, com lucros previstos e imprevistos e déficits previsíveis e imprevisíveis, as mudanças devem envolver, necessariamente, uma nova cultura gerencial e uma nova legislação jus-futebolística. Outrossim, o excesso de investimentos irracionais e assunção de riscos desmedidos para satisfazer as expectativas das torcidas, colocam os clubes à beira da quebra. Nesse passo, os vícios e artimanhas que envenenam o futebol passam a ser eixo central das preocupações e da busca de soluções. E a regra de ouro resume-se em dito popular: “não dar passos além de suas pernas”, ou seja, não gastar mais do que recebe, vale dizer, ajustar seus gastos às suas receitas.

 

À luz de todos estes aspectos repontados, sinale-se que os clubes de futebol profissional, diante do surrealismo financeiro, da ambição desmedida por triunfos e títulos e do naufrágio econômico em que se debatem, parecem colocar-se diante de uma típica dúvida hamletiana: ser exitoso no desportivo e fracassado no financeiro, ou vice-versa, eis a questão. Esquecem, contudo, que tais hipóteses são conciliáveis, quando feitas com uma governança responsável. E mais, insta ter presente que a solução passa, obrigatoriamente, pelo corte de despesas com salários absurdos e pelo refrear a volúpia de contratações milionárias, quiçá irresponsáveis, para que o futebol não se transforme num negócio cronicamente deficitário e de duvidosa sobrevivência. Por isso mesmo, torna-se cogente fixar normas de controle preventivo para que os clubes de futebol não sejam consumidores de sua própria “economia fictícia” de receitas, gastos e endividamentos fruto de irresponsabilidades administrativo-financeiras.

 

Por isso mesmo, com ou sem Substitutivo, impende criar-se  um círculo de supervisão e controle econômico de clubes de futebol onde estejam asseguradas a independência, imparcialidade e autonomia desportiva (art. 217, I, CF) suficientes para harmonizar e equilibrar as vertentes econômica e desportiva. Este sistema composto de normas, instrumentos e lógica próprias exige uma regulamentação específica com o objetivo primacial de controlar as atividades financeiras dos clubes de futebol, impondo-lhes critérios de transparência e boa gestão. Ressalte-se, nesse passo, que o futebol profissional é um setor dotado de volatilidade econômica e conformação peculiar que impõem requisitos de solvência patrimonial e de equilíbrio financeiro como conditio sine qua de participação nas competições profissionais. De fato, o cumprimento de uma série de requisitos que induzem pagar, tempestivamente, as dívidas passadas e as obrigações correntes, a par da fixação de limites de diferentes matizes, são ingredientes centrais de um modelo desenhado para dar estabilidade aos clubes do futebol profissional, a partir de ajustes e acréscimos no marco jusdesportivo vigorante.

 

Pondo a latere as dimensões positivas trazidas pelo Substitutivo, não se pode descurar que a proposta legislativa também alberga – nos artigos 36 a 40 – contribuições de pioria e intervenções descabidas na CBF, malferindo ditames legais e constitucionais como se passa a demonstrar.

 

 

Art. 36. Fica o Futebol Brasileiro constituído como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil para todos os efeitos legais.”

 

A repetição insistente de parte da mídia especializada, com suas fantasias e estereótipos, acabou disseminando, subliminarmente, como veraz, a falsa assertiva de que “o futebol é patrimônio cultural do País” que agora se pretende materializar na lex sportiva. À evidência, ninguém desconhece que o futebol ou soccer é originário da Inglaterra, e, hoje “carrega o conflito essencial da globalização”, não podendo, sequer por ficção jurídica, ser considerado “patrimônio cultural imaterial do Brasil”.  Com efeito, se o futebol promanou da Inglaterra, se o basquete nasceu nos Estados Unidos, tal como ocorreu com inúmeras outras modalidades desportivas largamente difundidas e praticadas no Brasil, é incogitável tornar qualquer delas dimensões da cultura nacional por um simples “passe de mágica” da legislação ordinária. E, esta ilação tem supedâneo na própria Constituição Federal, mui especificamente, no inciso IV do art. 217 quando prevê “a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional”, onde se enquadram a peteca e a capoeira e onde não se encaixam o futebol e o basquete, modalidades aqui mencionadas a título exemplificativo. Estas colocações levam, inexoravelmente, à conclusão de que o futebol não é “patrimônio cultural brasileiro” pelo simples fato de não ser criação nacional.

 

De outra parte, basta uma leitura do art. 216 da Carta Constitucional para inferir-se que as manifestações desportivas não se conformam, conceitualmente, não se amoldam, faticamente, e nem se harmonizam, juridicamente, como patrimônio cultural brasileiro, até porque não incluídas no rol exauriente do citado art. 216 da CF, sob pena de derruir-se a consistência e coerência do sistema constitucional brasileiro. Vale dizer, inexiste no Texto Constitucional autorização do constituinte para que o legislador infraconstitucional amplie e acresça hipóteses outras que não aquelas constantes dos cinco incisos do caput do art. 216, daí ser flagrantemente injurídica e inconstitucional a inclusão do desporto como “patrimônio cultural imaterial brasileiro”.

 

A “forçada” e “engendrada” integração do futebol como “patrimônio cultural imaterial brasileiro” atropela, à evidência, a própria Constituição Federal, pois, o patrimônio cultural brasileiro (art. 216) não inclui nem poderia incluir o desporto que, topograficamente, consta de Secção diversa e de outro dispositivo (art. 217), evidenciando tratar-se de hipóteses distintas, apartadas e, juridicamente, inequiparáveis.

Fossem insuficientes tais argumentos, remanesceria a confissão explícita do Poder Executivo Federal que tem a sua estrutura organizacional publicizada e disciplinada na Lei nº 10.683, de 28.05.2003, contemplando um Ministério do Esporte (art. 25, XI) e um Ministério da Cultura (art. 25, VI), tornando patente tratar-se de áreas que albergam pessoas, órgãos, orçamentos e atividades absolutamente diferenciadas a exigir cada uma, tratamento especial e específico, tanto que há um Conselho Nacional de Esporte (art. 29, XI da Lei nº 10.683/03) e um Conselho Nacional de Política Cultural (art. 29, VI da Lei nº 10.683/03), atestando, sem a mais mínima dúvida, estar-se diante de aspectos e realidades formais e materiais absolutamente inconfundíveis.

 

Assim, diante das distorções visíveis em derredor da temática, assinala-se que o indigitado art. 36 condensa vícios jurídicos formais e materiais que o tornam carente e despido da mais mínima constitucionalidade e consistência jurídicas ao colidir com a letra e com o espírito do Texto Constitucional.

 

Art. 37. Fica declarada como de Especial Interesse Público a comercialização de patrocínio proveniente da atividade de Representação do Futebol Brasileiro nos âmbitos nacional e internacional.

 

Parágrafo único. Sobre as receitas decorrentes da comercialização de patrocínio de que trata o caput deste artigo incidirá Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – Cide, de alíquota de 10% (dez por cento), a ser recolhida no último dia útil do mês seguinte ao da contratação do patrocínio, destinando-se os recursos daí arrecadados ao fomento e formação de atletas de futebol menores de 18 (dezoito) anos, nos termos dispostos em regulamento.”

 

 

     O caput do art. 37 declara ser de “Especial Interesse Público” a atividade de representação do Futebol Brasileiro, que, sabidamente, é realizada pela Confederação Brasileira de Futebol, ente filiado à FIFA. É notório que, nesse passo, a proposição normativa concretiza uma vedada “estatização” ou uma subreptícia “ação interventiva” no futebol, fazendo tabula rasa da competência constitucional, atribuída à União, para legislar sobre “normas gerais  sobre desportos”, e não, restritivamente impor reponsabilidades e obrigações direcionada individual e exclusivamente à CBF como ente diretivo do futebol brasileiro.

 

Aliás, com esta volúpia legisferante propõe-se categorizar o Futebol Brasileiro como de “Especial Interesse Público”, olvidando o § 2º do art. 4º  da Lei nº 9.615/98, onde está grafado que a organização desportiva do País é “considerada de elevado interesse social”.  Certamente o legislador, a par de desconhecer a existência deste ditame vigente, talvez não saiba que “interesse público” e “interesse social”, não são expressões sinônimas e que o Direito não faz uso de sinonímia.  E, para dissipar qualquer dúvida e expungir a confusão terminológica, veja-se que a distinção pode ser extraída da própria Carta Magna. Nessa toada, note-se que o  § 6º do art. 231 do Texto Supremo utiliza a terminologia interesse público, diferentemente do § 2º do art. 184 refere-se a interesse social.

 

        Quanto ao parágrafo único deste art. 37 que institui uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – Cide, com de alíquota de 10% (dez por cento), destinado ao fomento e formação de atletas de futebol menores de 18 (dezoito) anos, esbarra em intransponíveis obstáculos jurídicos e constitucionais.

 

Não atentou o legislador para o fato de que a CBF é, induvidosamente, ente privado da espécie jurídica associação, sem fins econômicos, e que, na dicção do caput do art. 217 da Constituição Federal, o fomento às práticas desportivas é dever do Estado, ou seja do Poder Público, ou quer dizer, sem a mais mínima alusão direta ou por via transversa aos entes diretivos privados, independentemente de ser prática desportiva da tipologia competitiva, educativa ou participativa.

 

Trata-se de um discrímine irrazoável que onera, singularmente, a pessoa jurídica da Confederação Brasileira de Futebol, com exclusão de toda e qualquer outra congênere de quaisquer das outras modalidades desportivas, quando o art. 149 da Lei das Leis autoriza a Cide como “instrumento de sua atuação na respectiva área”, e não, em face de uma determinada pessoa jurídica. Com isso torna-se clarividente e palmar que o art. 37 é norma elaborada sob o influxo de desigualdades artificiais e retóricas, conquanto não dá um tratamento igual no campo da contribuição pretendida, sendo juridicamente insustentável, com supedâneo no postulado constitucional da igualdade de todos na lei e perante a lei (art. 5º, caput, da Constituição Federal).

 

Agregue-se, por relevante, que a malfada e distorcida Cide que se quer instituir e exigir tão apenas da CBF, destina-se a setores e áreas dentro da Ordem Econômica e Financeira, vale dizer, gera um tratamento tributário para a atividade, mas nunca direcionado e adstrito a uma única entidade – a CBF. De outra parte, é consenso entre os juristas que a intervenção no domínio econômico, como toda intervenção, é eventual e, em caráter excepcional. Esclareça-se que seu objetivo é a corrigir distorções e descompasso em setores determinados e estruturais para o desenvolvimento das atividades econômicas – o que não é o caso do futebol, para inibir o domínio de mercados, a eliminação de concorrência e o aumento arbitrário de lucros, nos termos do § 4º do art. 173 da Constituição Federal. Trata-se, por óbvio, de hipótese inteiramente inaplicável à CBF, na qualidade de associação de direito privado, de caráter desportivo, sem fins econômicos, cuja atividade diretiva do futebol brasileiro é exercida com amparo no inciso I do art. 217 da Constituição Federal,  gozando de peculiar autonomia quanto à sua organização e funcionamento, não estando sujeita a ingerência ou interferência estatal, a teor do disposto nos incisos XVII e XVIII do art. 5º da Constituição Federal.

 

Fossem insuficientes tais argumentos, ressalte-se que a instituição da  CIDE exige que o setor da economia (e não do desporto) deve estar sendo desenvolvido pela iniciativa privada para que possa configurar um ato de intervenção no domínio econômico. É preciso entender que o produto de arrecadação desta Cide, em face do disposto no art. 24, III, do Substitutivo, constitui uma parte dos recursos do Fundo de Iniciação Esportiva (IniciE), a ser criado, e destinado a crianças e jovens matriculados no ensino fundamental e médio de estabelecimentos de ensino público, fica evidente a canalização para o desporto educacional, de responsabilidade exclusiva do Poder Público. Por sinal, a própria Lex Magna assegura a “destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional” (art. 217, II). Vê-se, então, que o desporto educacional não é, e nem está sendo,  desenvolvido pela iniciativa privada, o que inviabiliza, à luz dos ditames constitucionais, a criação desta Cide que teria somente a CBF como contribuinte único.

 

 

Art. 38. A instituição que exerça atividade de representação do futebol brasileiro nos âmbitos nacional e internacional poderá receber o status de “Representante Oficial do Futebol Brasileiro”, mediante chancela direta da Presidência da República, nos termos de regulamento específico, e, em consequência, disponibilizará na rede mundial de computadores todas as informações provenientes das receitas auferidas nos termos do art. 37 desta Lei, sujeitando-se a eventuais auditorias do Tribunal de Contas da União, quando requeridas pelo Poder Executivo ou por membro do Poder Legislativo.”

 

Lembra-se aqui que o futebol não é atividade pública, a CBF é ente privado que não recebe recursos públicos, seus empregados não servidores públicos, nem seus dirigentes nomeados pelo Presidente da República ou qualquer outra autoridade pública.  Adite-se, ainda, que a CBF não é beneficiária de qualquer imunidade ou isenção tributária, pagando regularmente Imposto de Renda sobre o lucro, PIS, Cofins, CSLL e Contribuições Sociais devidas.  E mais, as contratações da CBF não estão sujeitas a processo licitatório.

 

Quanto a disponibilização na Internet de todas as informações provenientes de receitas auferidas pela CBF, certamente decorre do fato do legislador ignorar o caput do art. 46-A da Lei n. 9.615/98, inclusive com a previsão de penalidades nos § § 1º, 2º e 3º em caso de descumprimento, verbis:

 

Art. 46-A. As ligas desportivas, as entidades de administração de desporto e as de prática desportiva envolvidas em qualquer competição de atletas profissionais, independentemente da forma jurídica adotada, ficam obrigadas a: (Incluído pela Lei nº 10.672, de 2003)

I – elaborar suas demonstrações financeiras, separadamente por atividade econômica, de modo distinto das atividades recreativas e sociais, nos termos da lei e de acordo com os padrões e critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Contabilidade, e, após terem sido submetidas a auditoria independente, providenciar sua publicação, até o último dia útil do mês de abril do ano subsequente, por período não inferior a 3 (três) meses, em sítio eletrônico próprio e da respectiva entidade de administração ou liga desportiva; (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

II – apresentar suas contas juntamente com os relatórios da auditoria de que trata o inciso I ao Conselho Nacional do Esporte – CNE, sempre que forem beneficiárias de recursos públicos, na forma do regulamento. (Incluído pela Lei nº 10.672, de 2003).”

 

De outra vertente, o art. 38 erigido como lastro em sofismas enganadores e invocação dissimulada de pseudo-interesse público, pretende fazer a CBF vinculada a auditorias do Tribunal de Contas da União, sempre que requisitadas pelo poder discricionário do Executivo ou por integrantes do Legislativo federal.

 

Tudo indica que o legislador desconhece que a competência constitucional atribuída ao Tribunal de Contas da União diz respeito às contas dos responsáveis por valores públicos, expressão que exclui, de pronto, desenganadamente, a auditoria e o julgamento de contas de entidades de direito privado, salvo nos casos em que estas utilizam, arrecadam,  guardam, gerenciam ou administram dinheiros, bens e valores públicos, o que não ocorre com a CBF. Impõe-se que o legislador leve em conta a abrangência, objetiva e subjetiva, da competência para a prática de procedimentos fiscalizatória (auditoria) do TCU, evitando a proposição de ditames arbitrários e intervencionistas que contemplem a adoção de medidas invasivas do TCU, fora de quaisquer parâmetros de legalidade e razoabilidade, ao desbordar dos limites constitucionalmente fixados para a atuação do TCU.

 

Reitere-se aqui, por extrema relevância, que a CBF é ente privado que não recebe, utiliza ou administra recursos públicos, não foi criada pela vontade de nenhum ente estatal, não foi instituída e nem é mantida pelo poder público federal, seus servidores não integram a categoria de funcionários públicos, seus dirigentes são livremente eleitos por Assembéia Geral de Federações e clubes da 1a Divisão do futebol brasileiro, desatrelados de qualquer indicação ou nomeação de autoridade pública, seu patrimônio é integralmente privado, não tem qualquer tratamento privilegiado do poder público, não é prestadora de serviço público, não é beneficiária de qualquer imunidade ou isenção tributária e, seus contratos privados não estão sujeitos a processo licitatório. Enfim, a CBF está alheia a qualquer vínculo jurídico de ordem administrativa ou funcional com o serviço público, e, por isso mesmo, não pode nem deve o legislador infra-constitucional impingir auditorias do TCU nas contas da CBF, posto que as “informações provenientes de suas receitas” estão fora do âmbito de competência do TCU, cuja jurisdição e atuação estão demarcadas nos artigos 70 e 71 da própria Lex Magna.

 

Art. 39. Fica acrescida em dez pontos percentuais a alíquota da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins devida por entidade associativa de Representação do Futebol Brasileiro em âmbitos nacional e internacional, conforme disposto no § 9o do art. 195 da Constituição Federal.” 

 

       O art. 39 faz uso de falacioso verniz retórico para colocar a “entidade associativa de Representação do Futebol Brasileiro”, ou seja, a CBF,  como exclusivo e único sujeito passivo afetado pela majoração desproporcional da alíquota do Confins, em dez pontos percentuais, transformando o tributo  em fonte de receita para os cofres públicos. E o faz, não só malferindo o princípio da isonomia tributária (art. 150, II, da Constituição Federal),  significa dizer, violando o princípio constitucional da isonomia, por estabelecer tratamento diferenciado entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, na medida em que as outras Confederações desportivas não são alcançadas pela majoração.

 

Acresça-se, ainda, a proibição constitucional do confisco como condicionante negativa de validade da norma em que institua os elementos quantificativos de relação tributária. Em termos mais simplificados: a alíquota do Confins à CBF, majorado em 10% tem, à evidência, efeito confiscatório (art. 150, IV, CF). Essa menção objetiva salientar que a alíquota, como qualquer outro componente normativo da relação obrigacional tributária, pode incorrer em inconstitucionalidade, o que parece ocorrer no caso concreto.

 

        Sob o prisma formal, em face do que dispõe o art. 195,  § 4º, do Diploma Maior, o aumento ou majoração da alíquota em mais 10%, se aprovada e efetivada, só teria validade jurídica desde que obedecidos os cânones estabelecidos pelo inciso I do artigo 154 da Carta Magna, vale dizer, desde que mediante a edição de Lei Complementar, jamais Lei Ordinária.  E não se pode esquecer que um ato jurídico só se modifica mediante o emprego de formas idênticas àquelas adotadas para elaborá-lo. Não é despiciendo realçar que uma Lei ordinária nunca pode alterar uma Lei Complementar, exigida na hipótese na dicção dos arts. 149 e 146, III, da CF. A Lei ordinária se cria a partir de uma maioria simples de votos dos congressistas. Ou seja, 50% mais um voto dos presentes, observado um quorum regimental mínimo. Já a Lei Complementar se cria a partir de uma maioria absoluta composta pela votação de 2/3 dos congressistas da casa. Portanto, nunca uma Lei ordinária pode revogar no todo ou em parte uma Lei Complementar, pois seria a minoria alterar decisão da maioria.

 

Dito isso, é de clareza meridiana que o art. 39 do Substitutivo está maculado por inconstitucionalidades formais e materiais, seja à falta de fundamento lógico que justifique a desequiparação e tratamento diferenciado da CBF em relação a outros entes de administração nacional do desporto, seja pelo uso de Lei Ordinária configurar induvidosa e frontal violação ao postulado constitucional da hierarquia das leis. E, se houver a aprovação do referido ditame, o Estado de Direito deixa de ser concebido como instrumento de proteção aos cidadãos contra o exercício desatado e abusivo do Poder Legislativo, pondo em risco a segurança jurídica do processo legislativo.

 

Assim, a se admitir a aprovação destes artigos 36 a 40 do Substitutivo, estar-se-ia promovendo a consagração da injuridicidade como regra de conduta do Poder Legislativo e a astúcia cavilosa como padrão do Direito.

 

 

Art. 40. Os recursos arrecadados em função do disposto no art. 39 desta Lei serão aplicados na concessão de benefícios assistenciais a ex-atletas profissionais de futebol, nos termos definidos em regulamento.”

 

A previsão de acrescer 10% dos recursos do Cofins (art. 39) que serão aplicados na concessão de benefícios asistenciais a ex-atletas profissionais de futebol, parece olvidar que o art. 57 da Lei n. 9.615/98, fixa uma contribuição cogente em prol da Federação das Associações de Atletas Profissionais (Faap) ou pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf). Transcreve-se, a seguir os dispositivos do Decreto nº 7.984, de 08 de abril de 2013, que regulamentam o mencionado art. 57, evidenciando que a proposta já está contemplada na lex sportiva:

 

“Art. 53.  Assistência social e educacional será prestada pela Federação das Associações de Atletas Profissionais – FAAP, ou pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol – FENAPAF, na forma do art. 57 da Lei nº 9.615, de 1998, com a concessão dos seguintes benefícios:

I – aos atletas profissionais: assistência financeira, para os casos de atletas desempregados ou que tenham deixado de receber regularmente seus salários por um período igual ou superior a quatro meses;

II – aos ex-atletas:

a) assistência financeira mensal ao incapacitado para o trabalho, desde que a restrição decorra de lesões ou atividades ocorridas quando ainda era atleta; e

b) assistência financeira mensal em caso de comprovada ausência de fonte de renda que garanta a sobrevivência ao ex-atleta; e

III – aos atletas em formação, aos atletas profissionais e aos ex-atletas: custeio total ou parcial dos gastos com educação formal.

§ 1º A FAAP e a FENAPAF deverão elaborar demonstrações financeiras dos recursos cuja fonte seja a prevista no art. 57 da Lei nº 9.615, de 1998, referentes a cada exercício fiscal, de acordo com padrões e critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Contabilidade, e, após submetidas à auditoria independente, publicarão as demonstrações em seu sítio eletrônico, até o último dia útil do mês de abril do ano subsequente.

§ 2º Qualquer pessoa poderá requerer, por escrito, a prestação de contas referente aos valores recebidos e empregados na assistência social e educacional aos atletas profissionais, aos ex-atletas e aos atletas em formação, cujos documentos serão disponibilizados no prazo de dez dias úteis.

Art. 54.  As contribuições devidas à FAAP e à FENAPAF, na forma do art. 57 da Lei nº 9.615, de 1998, se não recolhidas nos prazos fixados, sujeitam-se à cobrança administrativa e judicial, com atualização dos valores devidos até a data do efetivo recolhimento.

Art. 55.  As entidades de prática desportiva e de administração do desporto responsáveis pela arrecadação, pelo recolhimento dos valores referidos no art. 57 da Lei nº 9.615, de 1998, e pelo registro dos contratos desportivos deverão prestar à FAAP e à FENAPAF todas as informações financeiras, cadastrais e de registro necessárias à verificação, controle e fiscalização das contribuições devidas.

Art. 56.  A entidade responsável pelo registro do contrato de trabalho do atleta profissional e pelo registro de transferência de atleta profissional a outra entidade desportiva deverá exigir, quando de sua efetivação, o comprovante do recolhimento das contribuições fixadas no art. 57 da Lei nº 9.615, de 1998.

Parágrafo único. As entidades nacionais de administração do desporto deverão informar à FAAP e à FENAPAF a relação dos atletas e das entidades de prática desportiva que não atenderem ao disposto no caput.”

 

Registre-se, ainda, que o vigente art. 57 da Lei nº 9.615, de 1998 assegura à  FAAP 0,5% do salário do atleta (pago pelo clube) e 0,8% do valor correspondente às transferências nacionais e internacionais (pago pelo clube cedente), e, adicionalmente, nesta última hipótese, mais 0,2% em favor da FENAPAF. Tais percentuais entremostram que são, notoriamente, inferiores ao pretendido acréscimo de 10% de Confins que se quer fazer acrescer no Cofins devido pela CBF, materializando um teratológico tratamento discriminatório do ente diretivo nacional do futebol.

 

Dessume-se, então, que a vinculação contratual e empregatícia do atleta é com seu clube de futebol, e, em nenhum momento da vida desportiva profissional os ex-atletas foram empregados da CBF. Por isso mesmo é que os clubes – e não a CBF – devem contribuir para assistência social a atletas profissionais e ex-atletas, em razão da ausência de qualquer liame de jogadores de futebol com a CBF, que, num passe de mágica, por mero arbítrio legislativo, torna-se responsável por contribuição confiscatória, objetivando propiciar benefícios assistenciais a ex-atletas profissionais de futebol que não são seus contratados e que já estão amparados por recursos canalizados para a FAAP e FENAPAF.

 

À guisa de conclusão há de reconhecer-se que, diante de tantas e esdrúxulas propostas legislativas insculpidas, caprichosamente, nos artigos 36 a 40 do Substitutivo aqui examinados, está a concretizar-se a profética advertência de Aníbal Pellon, em acórdão lavrado no Tribunal de Justiça da então Federação Carioca de Futebol, quando averbou: “O que está vigorando entre nós, como se vê, apesar de todas as franquias democráticas, alçadas a mandamentos constitucionais, é a estatização do desporto, só admissível nos países totalitários. É uma estatização velada, sub-reptícia, de certo modo imperceptível, mas tremendamente atuante, que age como um polvo, a estender os tentáculos restritivos da liberdade de associação, pois interfere até na economia doméstica das associações menores,  tirando-lhes autonomia.”

 

Por derradeiro, como vários dos estatizantes ditames analisados direcionam-se à “entidade associativa de Representação do Futebol Brasileiro” ou à “Representante Oficial do Futebol Brasileiro”, é preciso sinalar que a CBF não necessita de qualquer “chancela direta da Presidência da República” para o exercício de seus legítimos objetivos estatutários, seja porque sua filiação à FIFA dependeu tão apenas de aprovação da Assembléia Geral do ente internacional, seja porque está de há muito regularmente registrada como ente associativo de natureza privada. Ressalte-se, outrossim, que nem a bandeira brasileira, nem a expressão “Brasil” integram, na descrição do vigente texto estatutário da CBF quaisquer das suas insígnias, emblemas e uniformes, diversamente do que o fazem confederações brasileiras de outras modalidades desportivas, soterrando, de vez, explícitos e implícitos argumentos em favor destas “patrióticas” e demagógicas proposições legislativas “pessoalizadas”, não isonômicas e adstritas à CBF, carentes, portanto, da mais mínima juridicidade.

 

* Álvaro Melo Filho – Professor Emérito da UFC. Livre-Docência em Direito Desportivo. Membro da FIFA, da International Sport Law Association, da Academia Nacional de Direito Desportivo, do IBDD e da Comissão de Estudos Jurídicos Esportivos do Ministério de Esporte e do IBDD. Autor de 56 livros, dos quais 28 na área do Direito Desportivo, além de 203 artigos em revistas jurídicas nacionais e estrangeiras. Destaque como advogado na área de Sport Law no Global Guide, anos de  2013 e 2014, do Chambers & Partners (London).

 

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