ESTREITANDO AS LINHAS OS LIMITES CRESCENTES À AUTORREGULAÇÃO DESPORTIVA

Fernando Barbalho Martins¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

O século XX testemunhou a ascensão do esporte como uma atividade social relevante, especialmente no que diz respeito às suas funções educacionais. Mesmo antes disso, no final do século XIX, uma das motivações mais importantes para Pierre de Coubertin na sua busca pelo restabelecimento dos Jogos Olímpicos era a observação dos efeitos da prática desportiva entre os estudantes britânicos.²

Na medida em que torneios de futebol, regatas de remo e lutas de boxe cresciam em popularidade, o esporte aumentou sua capacidade de atração de todas as classes sociais e acabou sendo objeto de discussão política. Primeiro, como veículo de propaganda, como nos exemplos infames da instrumentalização dos Jogos Olímpicos de 1936 pelo regime nazi-fascista alemão, e da vinculação da atividade atlética aos interesses dos partidos comunistas no período da chamada Guerra Fria.

Na civilização ocidental, é um tanto simbólico que a Grécia tenha sido a primeira nação a dispor sobre o esporte em sua Constituição (1975), sob um signo bastante intervencionista:

O esporte está submetido à proteção e à supervisão do Estado. O Estado subsidiará e controlará as associações esportivas de qualquer natureza, nos termos da lei. Os subsídios serão concedidos de acordo com os objetivos de tais associações e serão disciplinados por lei

Este intervencionismo não é uma característica uniforme nos diversos ordenamentos jurídicos estatais, tendo o esporte sido usualmente inserido no rol de políticas públicas relevantes, especialmente no que tange à promoção da saúde pública, como o fez a Constituição Espanhola de 1978.

O papel social do Esporte é destacado por Martinho Neves Miranda, “como manifestação capaz de melhorar a qualidade de vida das pessoas”[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4] destacando, o mesmo autor, que previsões constitucionais a respeito do esporte normalmente envolvem a instituição de incentivos à prática esportiva como uma obrigação estatal.[5]

A mesma abordagem é adotada pelo White Paper on Sport, editado pela União Europeia:

A vasta maioria das atividades esportivas ocorrem em estruturas amadoras (…) Além de melhorar a saúde dos cidadãos europeus, o esporte tem uma dimensão social e desempenha um papel social, cultural e de lazer. O papel social do esporte também tem o potencial de fortalecer as relações externas da União.

Esta premissa se reproduziu no art.165 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que afirma que a União contribuirá para a promoção das questões esportivas europeias, levando em conta a natureza específica do esporte”. Tal disposição revela a preocupação da União Europeia ao entender o esporte como uma ferramenta social, desenvolvida num regime de voluntariado, um contexto muito diferente do ambiente altamente comercializado do esporte profissional.

Esta ênfase no papel social do esporte foi espertamente adotada pela comunidade esportiva, de modo a aprofundar a justificativa da chamada especificidade do esporte, o que o isentaria de restrições ordinárias impostas pelo Direito em geral.

Entretanto, tal espécie de comportamento já foi identificado por críticos:

Talvez a questão mais importante – e que ainda não foi enfrentada – é a contribuição feita por certas organizações esportivas na deturpação dos aspectos sociais do esporte, de modo a angariar solidariedade. Suas reivindicações de prerrogativas especiais indicam claramente que tais organizações não estão preocupadas em promover solidariedade no esporte. O caso Bosman claramente ilustra o quão incapazes foram os dirigentes esportivos na tentativa de justificar as regras restritivas de sua modalidade no que diz respeito às taxas de transferência.[6]

Neste sentido, embora ordenamentos jurídicos ao redor do globo e o discurso doutrinário deem ênfase ao papel social do esporte, não se pode esquecer a natureza dúplice do esporte: para além de relevância social de suas atividade, o esporte é hoje parte expressiva da chamada indústria do entretenimento, gerando volumosos recursos financeiros para organizações esportivas e atletas.[7]

Esta transformação da própria natureza da atividade desportiva criou espaço para o incremento de litígios em torno do esporte, na medida em que as diferenças entre categorias de base e esporte de elite aumentaram.[8] O esporte se tornou uma opção profissional valorizada e um campo lucrativo de negócios para organizações e indivíduos.

Desde o início da década de 1970, portanto, o esporte deixou de ser uma “terra sem lei”[9] e uma série de precedentes judiciais na Europa passaram a questionar – e estreitar – o alcance da especificidade do esporte e sua consequente prerrogativa de autorregulação.

Dois casos da década de 1970 já podem identificar esta tendência restritiva da jurisprudência europeia:

a) Walrave and Koch v Association Union Cycliste Internationale (Processo 36/74 do Tribunal de Justiça Europeu – TJE), em que, apesar de ter decidido que a prática esportiva só está sujeita ao direito comunitário na medida em que se characterize como uma atividade econômica, abriu espaço para para que a restrição da Liberdade professional poderia atrair a incidência das normas europeias sobre o esporte.

b) Donà v Mantero (Processo 13/76 do TJE), em que se reputou incompatível com a liberdade professional do cidadão europeu as normas da Federação Italiana de Futebol que restringiam a participação de estrangeiros em competições profissionais.

Malgrado as advertências já contidas nesses dois precedentes, a perplexidade demonstrada pelos dirigentes do futebol europeu em relação à decisão proferida no famosíssimo Caso Bosman acabaram por revelar um certo grau de hipocrisia nos argumentos desenvolvidos por organizações e dirigentes esportivos, na medida em que a alegada preocupação com o financiamento das categorias de base e com a manutenção do equilíbrio competitivo foi claramente afastada pela fundamentação no julgamento do caso em tela.

O verdadeiro abalo sísmico provocado pelo Caso Bosman teve reverberações em outros dois precedentes. O Caso Meca-Medina, em que foi relativizada a premissa de que o Direito Europeu só incidiria sobre o esporte na medida em que este não se constituísse como atividade econômica. Com efeito, a decisão da Corte Arbitral do Esporte (CAS) em tal demanda estabeleceu que “o mero fato de que uma regra seja puramente esportiva não produz o efeito de afastar a incidência do Tratado [TFUE] da atividade sujeita a tal regra”.

Por conseguinte, passou a ser exigido das organizações esportivas que suas regras tenham um objetivo legítimo e que as restrições impostas aos seus destinatários sejam proporcionais.

Finalmente, o Caso MOTOE apontou para a necessidade de segregar-se as funções regulatórias e comerciais de uma entidade de administração desportiva, invalidando atos da Federação Grega de Motociclismo que, aproveitando-se do status de agente regulador do esporte, que lhe era garantido pela legislação nacional, obstava a realização de eventos da modalidade por parte de outras organizações privadas.

A principal lição extraída de tais precedentes europeus é de que a invocação da condição de “guardiãs do esporte” feita pelas entidades de administração desportiva não mais justificam a manutenção de um quadro que não mais consegue disfarçar os interesses comerciais por trás do discurso de “pureza” desportiva.

O último exemplo do crescente alcance das normas gerais de Direito sobre as regras esportivas foi a anulação da suspensão da participação do Manchester City na UEFA Champions League. Ainda que o efetivo cumprimento das regras de fair-play financeiro não tenha sido suficientemente esclarecido, o julgamento do CAS que reverteu a punição apontou para a impossibilidade da UEFA agir com menor apreço ao devido processo legal e às garantias de contraditório e ampla defesa do clube em questão.

Em outras palavras, o esporte não consegue mais se esconder atrás de sua especificidade para fazer valer um regime jurídico que desconsidere garantias básicas das entidades e indivíduos sujeitos às normas editadas pelas entidades de administração desportiva.

Portanto, a natural e elogiável resistência do mundo esportivo à invasão de seus domínios por interesses políticos conjunturais é um traço que deve ser preservado e um legítimo fundamento para sua autorregulação. Entretanto, isto não faz do esporte um universo à parte, infenso a qualquer incidência dos princípios gerais do Direito, assim como a autonomia desportiva não é um salvo-conduto para criar isenções para a indústria que inequivocamente se formou em torno das atividades atléticas.

No Brasil, o exemplo mais eloquente do estreitamento do campo de autorregulação desportiva é o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2937, que declarou constitucional o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.671, de 2013). De tal julgado, pode-se extrair a emblemática passagem a seguir:

Penso se deva conceber o esporte como direito individual, não se me afigurando viável interpretar o caput do artigo 217 – que consagra o direito de cada um ao esporte – à margem e com abstração do inciso I, onde consta a autonomia das entidades desportivas. Ora, na medida em que se define e compreende como objeto de direito do cidadão, o esporte emerge aí, com nitidez, na condição de bem jurídico tutelado pelo ordenamento, em relação ao qual a autonomia das entidades é mero instrumento de concretização, que, como tal, se sujeita àquele primado normativo. A previsão do direito ao esporte é preceito fundador, em vista de cuja realização histórica se justifica a autonomia das entidades, dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento.[10]

Portanto, a pura e simples resistência às normas gerais de Direito e a pretensão de viver num ambiente econômico onde não incidem as regras de defesa da concorrência, a tutela do consumidor ou mesmo as garantias cidadãs fundamentais não mais encontra eco na sociedade global. A este respeito, é importante ouvir o alerta de Darren Bailey, comentando o escândalo de doping que abalou a Federação Internacional de Atletismo (IAAF):

Dados tais eventos, se o movimento esportivo não enfrentar ativamente suas falhas de governança, regulação e intervenção externa se torna muito mais provável.[11]

Como pode ser visto, a falta de efetivo desenvolvimento da governança desportiva e da construção de sólidos parâmetros normativos internos compromete a legitimidade da autorregulação do esporte, exigindo uma mudança radical na cultura política e gerencial das organizações esportivas, no mundo em geral, e no Brasil em particular.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.


¹ LLM in Sports Law and Practice pela De Monfort University (Reino Unido), MBA em Gestão e Marketing Esportivo pela Trevisan Escola de Negócios e Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. Professor convidado da FGV, EMERJ e ESAP. Autor de Futebol: Manual de (Re)Montagem. Membro filiado ao IBDD.

² FREIRE, Marcus Vinicius e RIBEIRO, Deborah. Ouro Olímpico. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. p.33.

³ MIRANDA, Martinho Neves. O Direito no Desporto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.13.

[4] Idem, p.15.

[5] Idem, p.12.

[6] CAIGER, Andrew e GARDINER, Simon. Postscript: Legal Intervention and the Possibility of Enlightened Governance. In CAIGER, Andrew e GARDINER, Simon. Professional Sport in the EU: Regulation and Re-regulation. Haia: TMC Asser Press, 2000. p.292.

[7] Na Europa, por exemplo, estudo de 2012 mostra que 2,98% do produto interno bruto da União Europeia se relacionam com o esporte, assim como a atividade respondia por 2,42% dos empregos em seu território (aproximadamente cinco milhões de pessoas – KENNELY, Brian et al. EU and UK Competition Rules and Sport. In LEWIS, Andrew and TAYLOR, John. Sport: Law and Practice. Londres: Bloomsbury, 2014. p.1124)

[8] BAILEY, Darren. A New World Order – What Next for International Federations? In Sports Law Administration and Practice, Agosto 2016, p.5.

[9] VIEWEG, Klaus. The Legal Autonomy of Sport Organizations and the Restrictions of European Law. In CAIGER, Andrew e GARDINER, Simon, Op.cit. p.83.

[10] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2086302, acesso em 20/09/2020.

[11] BAILEY, Darren. 2016: A Time of Challenge and Opportunity for the Sport Movement. In Sports Law Administration and Practice. Fevereiro 2016. p.6.

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