Futebol e finanças: o Profut é bola na rede ou na trave?

Fernando Facury Scaff

Qual o limite da intervenção do Estado na prática do futebol profissional? O Estado deve entrar na gestão dos clubes, impondo sanções desportivas? Ninguém tem dúvidas do clamor popular pela profissionalização do futebol, em especial após os vexames na Copa do Mundo em 2014 e na Copa América, em 2015, mas é preciso ter cautela com essa mistura de finanças públicas e futebol, pois pode gerar combinações explosivas. Na verdade, de boas intenções o purgatório está cheio.

Isso foi feito pela Lei 13.155/15, resultado da conversão da MP 671, conhecida como Lei do Profut — Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, que traz algumas pérolas em termos de sanções políticas e esportivas que, além de inconstitucionais, lembram aquilo que um antigo autor de crônicas humorísticas, Stanislaw Ponte Preta, batizou deFebeapa — Festival de Besteiras que Assola o País.

Aparentemente a Lei do Profut cria obrigações apenas para quem decidir ingressar no Regime Especial de Parcelamento de Débitos Federais estabelecido por aquela norma. Porém esta leitura não é precisa, pois esse aspecto se refere apenas aos artigos 2º a 16 daquela Lei, dentre outros esparsos.

Diversas alterações realizadas na Lei 9.615/98 e na Lei 10.671/03, e que atingirão inclusive os clubes que nãodesejarem ingressar do sistema de parcelamento especial. Desta forma, a análise a seguir alcançará não apenas asnormas transitórias relativas ao regime de parcelamento, mas também as normas permanentes, fruto da modificação da Lei 9.615/98 e da Lei 10.671/03.

Quanto à parte temporária da Lei 13.155/15, que se refere especificamente ao parcelamento de débitos, existem diversos pontos que merecem mais acurada análise sobre sua constitucionalidade, tais como os abaixo indicados.

a) A exigência de redução do déficit dos clubes (art. 4º, V), pois isso se caracteriza como uma disposição variável ao longo do tempo, a depender de receitas futuras, que não poderão ser definidas de antemão, pois, por definição, as receitas são estimadas, mas as despesas são fixadas, ou seja, as receitas dependem de eventos futuros e incertos, e as despesas são estabelecidas como compromissos de pagamento certo e definido. Logo, a redução do déficit é algo que não pode ser de antemão comprometido, apenas desejado.

b) Pelas mesmas razões, é incerta a determinação de limitação em 80% da receita bruta anual com o pagamento da folha de pagamento e direitos de imagem de atletas (art. 4º, IX), pois estas despesas são fixadas, mas as receitas são aleatórias e incertas, e muitas vezes dependem do desempenho dos clubes no campeonato, em especial as receitas com bilheteria, transferência de atletas e de suas atividades sociais, as quais obrigatoriamente deverão fazer parte do cômputo da receita bruta das agremiações (art. 4º, §6º).

c) Além disso, o comprometimento de oferta de ingressos a preços populares é algo muito pouco preciso, necessitando de maior análise sobre a composição do custo e da fonte de receitas indicada na norma (art. 4º, X, a).

d) Por fim, chama a atenção, no caso de rescisão do parcelamento, a vedação à obtenção de benefício fiscal ou repasses governamentais, pelo prazo de dois anos (art. 18). Trata-se de uma disposição muito peculiar, que não possui paralelo com outros sistemas de parcelamento federal já existentes.

Porém, o problema maior se dá nas diversas partes da Lei 13.155/15 em que são criadas novas exigências e alterada a legislação preexistente, de forma permanente para todos os clubes, independente da adesão ao parcelamento acima referido. Estas alterações alcançam todos os clubes de futebol profissional do país, do Corinthians paulista, que lidera a série A, ao Villa Nova, de MG, e o Operário, de MT, que encerram a série D.

Do conjunto de alterações e acréscimos à normas preexistentes, duas chamam mais a atenção, quais sejam:

1) A que autoriza os atletas, em caso de rescisão indireta de seu contrato (considerada quando ocorrer três meses de atraso parcial ou integral de salários e outras parcelas remuneratórias), a transferir-se para outra entidade de prática desportiva, inclusive da mesma divisão, independentemente do número de partidas das quais tenha participado na competição, constante da modificação do artigo 31 da Lei 9.615/98 e a inclusão do §5º nesse artigo;

2) E a inclusão, como critério técnico para habilitação de prática desportiva, além da “colocação obtida em competição anterior”, que era preexistente, a necessidade de apresentação de certidão negativa (CND) de tributos federais e da dívida ativa da União, certidão negativa do FGTS e comprovação do pagamento dos contratos de trabalho e de imagem dos atletas (art. 10, §1º, Lei 10.671/03).

A bem da verdade, o problema não se encontra apenas na equiparação do “critério fiscal” a um “critério técnico”, mas na sanção pelo seu descumprimento, a teor do artigo 10, §3º e §4º, da Lei 10.671/03, aqui transcrito para que os leitores constatem o que foi introduzido:

“§3º Em campeonatos ou torneios regulares com mais de uma divisão, serão observados o princípio do acesso e do descenso e as seguintes determinações, sem prejuízo da perda de pontos, na forma do regulamento:

I – a entidade de prática desportiva que não cumprir todos os requisitos estabelecidos no inciso II do § 1º deste artigo (que exige as certidões negativas de débitos – CNDs) participará da divisão imediatamente inferior à que se encontra classificada;

II – a vaga desocupada pela entidade de prática desportiva rebaixada nos termos do inciso I deste parágrafo será ocupada por entidade de prática desportiva participante da divisão que receberá a entidade rebaixada nos termos do inciso I deste parágrafo, obedecida a ordem de classificação do campeonato do ano anterior e desde que cumpridos os requisitos exigidos no inciso II do § 1º deste artigo.

§4º Serão desconsideradas as partidas disputadas pela entidade de prática desportiva que não tenham atendido ao critério técnico previamente definido, inclusive para efeito de pontuação na competição”.

Em síntese, pode ocorrer: (1) a queda dos clubes de uma divisão para outra em razão de não-obtenção de CND, e (2) troca de atletas entre clubes, à sua revelia, no correr do campeonato.

Imaginem só as possibilidades — todas hipotéticas e que uso apenas para ilustrar o que poderá acontecer se a norma acima for implementada em sua inteireza. O artilheiro do campeonato, Ricardo Oliveira, poderia alegar que seu clube atual, o Santos, está descumprindo o contrato por três meses, e, de imediato e com amparo legal, trocar de clube no correr do campeonato, passando a defender o Vasco, atual lanterna da série A. Ainda assim, três meses depois, poderia alegar novamente que o clube carioca não cumpriu com o contrato e passar a defender o São Paulo. Imaginem a bagunça. Considerando que a série A inicia em maio e termina em dezembro, quantas vezes um atleta poderia trocar de clube sob a alegação de que seu contrato está sendo descumprido por três meses? Acho que dá pelo menos umas 3 vezes… Como ficariam os torcedores vendo os ídolos de seus times mudarem de camisa consoante o sabor das alegações jurídicas de descumprimento contratual, que envolvem cifras complexas e variáveis.

Confusão semelhante pode vir a ocorrer se um Clube não conseguir obter a Certidão Negativa de Débitos (CND) com a Receita Federal ou com o FGTS, pois, nessa hipótese, poderá ser rebaixado para a divisão inferior. Assim, um time que tenha vencido o campeonato na série A, o que, em tese, permite que seja considerado o melhor time do Brasil, poderá jogar o torneio do ano seguinte, na série B. Dá para imaginar essa bagunça? Desta forma, o Vasco poderia vir a cair para a série B em 2015 em razão do futebol praticado, mas vir a disputar a série A em 2016, caso algum dos outros times venha a receber cartão vermelho na CND. Pensando bem, talvez seja a chance do meu Clube do Remo se tornar campeão da série A, em vez de apenas ascender à série C, como acabou de ocorrer…

Parece-me que atrelar critérios financeiros à qualidade desportiva, estabelecendo ascensões e descensos por falta de recolhimento de tributos e encargos, ou, simplificando, de CND, é algo que viola a Constituição e desnatura a lógica do sistema desportivo, criando regras extracampo para qualificar uma disputa desportiva.

A regra mais adequada para essa função seria o impedimento de registro de novos atletas, caso o pagamento do atual plantel não esteja em dia, o mesmo ocorrendo com as demais obrigações financeiras com a Receita Federal, o INSS e o FGTS. Afinal, se o clube não consegue manter a equipe atual, como contratar novos atletas? Tal possibilidade consta como atribuição da entidade de administração do desporto ou liga que organizar competição profissional de futebol, que deverá prever em seu regulamento, no mínimo, esse tipo de sanção (art. 5º, V, b, Lei 13.155/15). Porém, mesmo nesse caso, deve-se considerar a possibilidade de downsizing, quando um atleta de salário mais alto poderia ser trocado por dois ou três atletas mais baratos — o que não implica necessariamente em pior qualidade.

Penso que isso deverá ser corrigido urgentemente, seja pelo Judiciário, através de alguma Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou por alteração normativa, a ser realizada pelo Congresso ou pelo Executivo, este por intermédio de Medida Provisória.

Não me parece ser essa a trilha para reorganizar o futebol profissional brasileiro. A seguir esse caminho, e considerando que as normas acima estão em pleno vigor e devem ser aplicadas nos campeonatos do próximo ano, nos recordaremos com saudades de termos perdido apenas de 7 a 1 da Alemanha na Copa de 2014. O que era impensável se tornará a regra. Vamos levar vários olés

 

Fonte: Conjur

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