Fernando Barbalho Martins¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
A estrutura piramidal vigente em quase todo o mundo esportivo, pela qual as diversas agremiações ou indivíduos praticantes de determinada modalidade se filiam a uma cadeia única de entidades de administração desportiva, que ascende do nível local até o âmbito mundial, assegura a tais organizações um efetivo monopólio na organização, desenvolvimento e promoção do esporte.
Diante de tal situação privilegiada, a perplexidade com a reduzida transparência e a falta de democracia na gestão das entidades de administração desportiva é uma constante não só no Brasil, mas ao redor do planeta.
Um exemplo radical de tal percepção é dado por Pedro Trengrouse:
As organizações esportivas nasceram para promover iniciativa amadora que nos últimos 30 anos se transformou num negócio multibilionário, sem qualquer evolução significativa nos estatutos que as governam, tampouco na legislação que as regulam.
Faltam democracia, transparência e controle social.
(…)
O que a seleção brasileira, cujos jogadores são formados e mantidos pelos clubes, tem que ver com as 27 federações estaduais que compõem sua Assembleia Geral, aprovam suas contas e estatutos? Por que o diminuto quadro social dos clubes ainda dá as cartas na gestão do patrimônio das suas torcidas? Pode o presidente do Flamengo, que representa 40 milhões de torcedores e administra quase R$ 400 milhões/ano, ser eleito com apenas 1.414 votos?²
Obviamente, as ideias expressadas acima são extremas. Uma tentativa de reconhecer o direito a voto para cada torcedor de cada clube de futebol do Brasil é um conceito impraticável, especialmente considerando a natureza privada das entidades desportivas. Mas quando Trengrouse critica o sistema de governança da Confederação Brasileira de Futebol ou aquele que vigorava no Clube de Regatas do Flamengo no momento da edição do referido texto, ele toca o ponto central relativo à relação entre democracia e esporte.
O efetivo monopólio assegurado às entidades de administração desportiva exige uma estrutura mais democrática, permitindo que todos os stakeholders tenham voz na gestão de suas respectivas modalidades, especialmente quando se consideram as enormes cifras envolvidas nos eventos esportivos profissionais.
Como o esporte, especialmente o brasileiro, desenvolveu seus modelos de governança fora do sistema legal ordinário, não havia, ao menos até a década de 1990, modelo reconhecido para avaliar as estruturas existentes em confederações, federações e clubes esportivos.
Inexistindo marco teórico estabelecido para a governança esportiva, este artigo tentará sugerir alguns elementos extraídos de lições de Ciência Política e Filosofia do Direito.
Para tanto, volte-se à proposta de assegurar direito de voto a todos os torcedores, para repetir: trata-se de ideia inviável. Quanto mais ampla a participação no debate, é mais difícil o tratamento de questões técnicas, justamente a natureza mais comum dos temas postos sob a deliberação de entidades de administração desportiva.
Desta forma, não é o “voto popular” que transformará as estruturas de governança desportiva num sistema democrático. Neste sentido, é importante a remissão à obra de Alain Touraine, que define democracia como um “processo ascendente” de formação da decisão política.³ Em outras palavras, um ambiente democrático produzirá decisões baseadas na oitiva das partes elementares daquele sistema, as quais, por meio de um debate aberto, formarão uma opinião institucional sobre um determinado assunto, de modo a que seus líderes possam tomar uma decisão devidamente informada.
Mas se a democracia não é uma questão de número de votos, quais elementos deveriam estar presentes numa estrutura de governança, de modo a atender exigências democráticas? Uma resposta pode ser encontrada nas lições de Simone Goyard-Fabre, que propõe que a democracia se baseia em três pilares: representação, consentimento e constituição.[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]
Adaptando os elementos da política em geral para o ambiente da governança desportiva, o primeiro pilar, a representação, exige que os “legisladores” de uma entidade de administração desportiva sejam oriundos de todos os grupos de stakeholders de uma determinada modalidade.
A segunda exigência para uma governança democrática é o consentimento das pessoas e organizações submetidas à autoridade de uma entidade de administração desportiva. Como o sistema de governança esportiva está estabelecido há muitas décadas, não há possibilidade de expressar tal consentimento, já que a escolha dada é de aderir ou não aos termos de filiação a uma organização previamente existente.
Todavia, a abertura dos procedimentos deliberativos numa entidade desportiva pode estabelecer um espaço mais amplo para o debate. Em outras palavras, embora as federações e confederações sejam beneficiárias de um monopólio legal, seus processos internos devem assegurar debate efetivo em torno de suas decisões mais relevantes. É, portanto, uma questão de grau de participação: enquanto a representação assegura a presença de todas as categorias de stakeholders, o consentimento se verifica quando todos esses representantes têm a possibilidade de efetivamente (e não só formalmente) influenciar o processo decisório.
Finalmente, a constituição engloba um regime estatutário que assegura a todos os atletas e organizações direitos fundamentais em determinada estrutura de governança, exigindo devido processo legal em tribunais disciplinares; publicidade nos processos gerenciais e deliberativos e padrões de responsabilização para os seus dirigentes.
Os elementos descritos acima são, de certa forma, confirmados pela doutrina jusdesportiva:
Autorregulação só deveria ser permitida com a instituição de um sistema de governança pautado no devido processo legal. Haveria três condições mínimas:
– Um, que haja uma obrigatória instância independente de resolução de conflitos para aqueles cujos interesses econômicos e esportivos sejam prejudicados pelas atividades das federações esportivas. Estas não podem continuar a agir como parte e juiz. Tal instância não precisa ser necessariamente judicial, podendo ser arbitral, embora o recurso ao Judiciário possa ser cabível, em caso de violação de direitos fundamentais.
– Dois, os estatutos das federações esportivas serem reformados e democratizados, a fim de dar maior representatividade aos atletas.
– Três, que os interesses dos torcedores, como consumidores do esporte, sejam melhor protegidos.[5]
Na esteira dessa demanda por democratização do ambiente esportivo, a Lei Pelé (Lei nº 9.615, de 24/03/1998) foi sucessivamente reformada ao longo dos anos, tendo sido introduzido – e posteriormente alterado – o art.18-A, que pode ser considerado a sede legal da governança democrática do esporte brasileiro.
Nada obstante, como a estrutura de poder das entidades de administração desportiva ainda não são permeáveis à participação democrática de todos os seus stakeholders, suas decisões e regras vêm sendo contestadas de forma cada vez mais frequente, como é o exemplo da recentíssima eleição para a Federação de Volley-Ball do Estado Rio de Janeiro, a FEVERJ.
Há três décadas dirigida pelo mesmo Presidente e basicamente o mesmo grupo político, a FEVERJ tinha eleições marcadas para este ano de 2021, tendo uma aliança de oposição se formado sob a liderança de Franco Vieira Neto, atleta olímpico, medalhista pan-americano e bicampeão mundial de vôlei de praia.
O primeiro obstáculo ao livre debate democrático no processo eleitoral já era estabelecido pelo próprio estatuto, que exigia a inscrição das chapas até o último dia útil do mês de julho do ano imediatamente anterior ao sufrágio. Tamanha antecedência é claramente um fator de deliberado desestímulo a candidaturas de oposição e meio de desarticulação dos stakeholders da modalidade.
Lograda, não sem dificuldade, a inscrição da chapa de oposição, as demandas de publicação prévia de regras claras para a eleição, assim como divulgação dos pesos dos votos dos diversos filiados e da composição da Comissão Eleitoral foram todas ignoradas, culminando com uma manifestação que fixava o mês de janeiro de 2021, imediatamente anterior à data da eleição, como marco temporal para a publicação das regras para o pleito em questão.
Tal comportamento provocou a única reação possível, que foi a judicialização do processo eleitoral, tendo a chapa de oposição buscado junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro a tutela que garantisse a efetivação do que se pode chamar de princípio da democratização da gestão desportiva, desenvolvido pelo mencionado art.18-A da Lei Pelé, e violado pela então Direção da FEVERJ nos seguintes aspectos:
a) limitação dos mandatos dos seus dirigentes (inciso I do referido artigo);
b) transparência na gestão (inciso IV)
c) garantia de representação dos atletas (inciso V);
d) previsões estatutárias de gestão democrática, alternância na direção e limitação de exigências para apresentação de candidaturas (inciso VII);
e) acesso às informações de prestação de contas (inciso IX).
O mais relevante no trato de tal princípio de democratização foi o acolhimento, por parte do Juízo Cível, da assertiva no sentido de que, independentemente da sua previsão estatutária, assim como da eventual inexistência de percepção de recursos públicos por parte da entidade desportiva, a omissão das normas associativas quanto à regulamentação das garantias insculpidas no art.18-A pode atrair a incidência da norma estatal geral sobre o tema, qual seja, a Lei Pelé.
E tanto não se fez somente em relação ao referido art.18-A, mas também ao art.22, que estabelece as garantias dos processos eleitorais das entidades desportivas.
Neste sentido, são emblemáticas as duas decisões liminares que determinaram a formação de Comissão Eleitoral e, subsequentemente, sua dissolução e nova formação com membros independentes da Direção da FEVERJ.
Não bastasse tanto, provado que os membros pretensamente independentes trabalhavam em promíscua proximidade com o Presidente candidato à reeleição, o sufrágio foi suspenso na véspera de sua realização, só tendo a celeuma sido superada com a intervenção da Confederação Brasileira de Voleibol, que constituiu uma terceira Comissão Eleitoral e publicou regras claras e pormenorizadas para a realização do pleito.
O que se constata a partir do caso em tela, é que o Brasil já dispõe de recursos normativos que viabilizam a discussão das tradições autoritárias da gestão desportiva brasileira. O cotejo da proposta de parâmetros doutrinários com a disciplina legal do tema revela que a Lei Pelé efetivamente busca garantir a representatividade de todos os stakeholders do esporte (participação), e não só de maneira formal, mas assegurando-lhes voz e, eventualmente, voto efetivos nas deliberações (consentimento).
Cabe aos advogados militantes e aos estudiosos do Direito Desportivo desenvolver as teses e instrumentos que consolidarão tais direitos à gestão democrática no esporte, formando a constituição, ou seja, o arcabouço jurídico que dará concretude à aspiração social do abandono da cultura da politicagem associativa, em favor do estabelecimento de um moderno sistema de governança para o esporte.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ LLM in Sports Law and Practice pela De Monfort University (Reino Unido), MBA em Gestão e Marketing Esportivo pela Trevisan Escola de Negócios e Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. Professor convidado da FGV, EMERJ e ESAP. Autor de Futebol: Manual de (Re)Montagem (Rio de Janeiro: APERJ, 2015). Membro filiado ao IBDD.
² Prefácio a MARTINS, Fernando Barbalho. Futebol: Manual de (Re)Montagem. Rio de Janeiro: APERJ, 2015. p.26.
³ TOURAINE, Alain. O que é Democracia? Petrópolis: Vozes, 1996. p.64.
[4] GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.142.
[5] .FOSTER, Ken. Can sport be regulated by Europe? An analysis of alternative models. In: CAIGER, A. e GARDINER, S. Professional Sport in the EU: Regulation and re-regulation. Haia: TMC Asser Press, 2000. p.64.
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