Honra na Justiça Desportiva

Caio Medauar ¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

A Justiça Desportiva no Brasil ganhou uma grande relevância a partir da CR/88, quando teve sua autonomia e competência reconhecidas para julgar as demandas relativas a disciplina e competições.

No mesmo sentido, os entusiastas do esporte, e do futebol exaltam o princípio do “fair play”, como valor fundamental da organização e da prática esportiva, assim definido pela Fifa:

“O fair play é um elemento essencial do futebol. Ele representa os benefícios de cumprir as regras, ter bom senso e respeitar jogadores, árbitros, adversários e torcedores.(fifa.com)”

O “fair play” é uma das faces da defesa do espírito esportivo, princípio consagrado na Carta Olímpica, e positivado no inciso XVIII do artigo 2o do CBJD, no mesmo sentido do inciso XI do artigo 2o da Lei nº 9615/88, que determina a preservação da integridade física e mental dos participantes das competições esportivas.

“Art. 2º- O desporto, como direito individual, tem como base os princípios:

(…)

XI – da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade desportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial;”

Mesmo com tais dispositivos, não raros são os casos em que atletas, membros  de comissão técnica e dirigentes são denunciados por ofender o árbitro – autoridade da partida – momento em que se instala a discussão se as palavras proferidas são ofensas (art. 243-F)[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][2], ou se são simples atos contrários à disciplina e à ética desportiva, no caso, simples infração ao artigo 258 do CBJD, que abarcou a infração contida no revogado artigo 188[3] do mesmo código, e que vigeu até 2009.

Ocorre que na redação antiga, tanto o artigo 188 (reclamação desrespeitosa), como o artigo 189 (ofensa à honra) tinham a mesma pena mínima, qual seja 30 (trinta) dias de suspensão.

Já na redação atual do CBJD, o § 1º do artigo 243-F, torna a ofensa à honra ao árbitro uma infração qualificada, com pena mínima de 4 (quatro) partidas, problema semelhante acomete as agressões físicas sofridas por membro de equipe de arbitragem, em que a qualificadora faz com que a pena mínima seja de 180 (cento e oitenta) dias.

As penas pesadas acabam por constranger os auditores das cortes esportivas, não sendo raros os casos em que ofensas graves são consideradas como reclamação desrespeitosa ou ato hostil, figuras que não possuem a qualificadora, aplicando, muitas vezes penas baixas, que incentivam novas infrações.

Primeiramente, temos que entender que eventuais qualificadoras, comuns em inúmeros códigos disciplinares de todas as modalidades, visam a preservar a autoridade e a imparcialidade do árbitro, e não somente sua honra subjetiva. A norma desportiva disciplinar busca sempre preservar a disciplina e as competições no âmbito esportivo, e não na esfera pessoal do ofendido.

Ora. Quando um árbitro é xingado de “ladrão, safado, vagabundo”, e todos os palavrões que se possa imaginar, não é a pessoa do árbitro somente que está recebendo a ofensa, mas toda a equipe de arbitragem. Afinal, na maior parte das modalidades esportivas o árbitro é a autoridade desportiva no jogo, como, por exemplo, definido na regra 5 do Livro de Regras do Futebol[4]:

“1. A autoridade do árbitro

O jogo é disputado sob o controle de um árbitro, que tem total autoridade para cumprir as regras do jogo.”

Neste sentido, o árbitro é o representante e guardião das regras do jogo – autoridade esportiva.

Ademais, é inegável que o tipo do artigo 243-F, §1º do CBJD – contido no Capítulo das Infrações à Ética Desportiva – é claro ao remeter a ofensas morais os atos praticados contra os integrantes da equipe de arbitragem, sendo infração desportiva de mera conduta, que visa a preservar a moralidade e a ordem esportiva, exigindo dos atletas e demais participantes do evento esportivo, uma conduta decente e ética. É evidente que se o árbitro não se sentisse ofendido na sua honra objetiva ou subjetiva, sequer teria perdido tempo relatando a infração.

Assim, pouco importa se o árbitro viu, ouviu ou se sentiu ofendido com os gestos ou os xingamentos, pois tais atos não deixam de ser reprováveis, configurando em ilícito desportivo, devendo sempre ser tomado no contexto da partida, e na preservação da autoridade do árbitro.

O ato não é dirigido somente à pessoa do árbitro ou seus assistentes, mas sim à arbitragem e a lisura do campeonato. Chamar o árbitro de idiota, ladrão, safado, “veio aqui para nos prejudicar”, se utilizar de palavrões pesados, equivale a chamá-lo de desonesto, parcial, incompetente, o que transcende a mera reclamação. Como já dito, é infração contra a moral e a ética desportiva e que atinge tanto a honra subjetiva da pessoa do árbitro ou seus assistentes, como a honra objetiva da equipe de arbitragem.

Tomando mais uma vez o Futebol como exemplo, a regra 12 é bastante clara ao diferenciar a reclamação desrespeitosa – passível de cartão amarelo – da ofensa – punida com cartão vermelho:

“Livro de regras3 – Página 116:

“Infrações puníveis com advertência – cartão amarelo

Um jogador deve ser advertido com cartão amarelo por:

(…)

• discordar das decisões da arbitragem com palavras ou ações;

(…)

• praticar atitude antidesportiva;

Livro de regras3 – Página 118/119:

Infrações puníveis com expulsão

Um jogador, um substituto ou um jogador substituído deve ser expulso quando

cometer uma das seguintes infrações:

(…)

• usar linguagem ou gestos ofensivos, injuriosos ou grosseiros;”

Nesta linha, nunca é demais mencionar que o Código Disciplinar da Fifa qualifica qualquer infração cometida contra um oficial de partida, o que inclui o árbitro, conforme artigo 12[5]:

“Capítulo 2. Infracciones en partidos o competiciones

12. Conducta incorrecta de los jugadores y los oficiales

  1. Los jugadores y los oficiales serán suspendidos conforme se especifica a continuación, y se les podrán imponer las multas correspondientes:

(…)

g) al menos dos partidos o un periodo determinado por actuar con la intención clara de provocar que un oficial de partido tome una decisión incorrecta, o por reafirmarlo en un error de juicio, provocando así que tome una decisión incorrecta;

h) al menos tres partidos o un periodo de tiempo adecuado por agredir (propinar codazos, puñetazos, patadas o mordiscos; escupir, golpear, etc.) a un adversario u otra persona que no sea un oficial de partido;

i) al menos cuatro partidos o un periodo de tiempo adecuado por conducta antideportiva hacia un oficial de partido;

j) al menos diez partidos o un periodo de tiempo adecuado por intimidar o amenazar a un oficial de partido;

k) al menos quince partidos o un periodo de tiempo adecuado por agredir (propinar codazos, puñetazos, patadas o mordiscos; escupir, golpear, etc.) a un oficial de partido.”

Assim, a regra do jogo e as normas da Fifa não deixam dúvidas de que ofender o árbitro é grave e deve ser punido de forma rigorosa, não sendo demais ressaltar, que os termos utilizados nas ofensas, não são, e nem nunca deveriam ser, usuais e comuns no futebol, havendo claramente a intenção de atacar a integridade dos membros da equipe de arbitragem. Criar um ambiente de permissividade, minimizando graves xingamentos a quem tem autoridade pela regra, incentiva que outras infrações igualmente graves, sobretudo atos discriminatórios.

Em uma época em que se discute valores, fica evidente que o futebol de hoje, e o desporto de alto rendimento em geral, não se confundem com o jogado nas décadas de 70 e 80, pois se exige muito mais profissionalismo dos jogadores, assim como um nível de erro muito menor dos árbitros, vigiados por dezenas de câmeras, e que quando ofendidos tendem a errar mais.

Deve-se reiterar que a legislação não exige que o árbitro se declare expressamente ofendido, fato inexistente em qualquer norma desportiva. Mesmo porque o titular da ação desportiva disciplinar é a Procuradoria de Justiça Desportiva, não existindo qualquer necessidade de representação ou qualquer outra conduta, senão o conhecimento do “parquet” do fato, o que em regra, ocorre através da súmula.

Nota-se que o árbitro e seus auxiliares têm inúmeras atribuições durante a partida, estando sujeitos a pressão constante, sendo inadmissível se tolerar que os demais participantes do evento, insatisfeitos com as marcações da arbitragem, usem de palavrões e coloquem em dúvida a lisura da atuação do árbitro e considerem tais atos como normais ou decorrentes do calor da partida.

Ao contrário. Portanto a preservação da integridade mental e sensorial dos membros da equipe de arbitragem são formas de preservar a integridade da partida. Não se pode ter o mesmo peso uma ofensa ou desrespeito ao árbitro, que um desrespeito ou ofensa a qualquer outra pessoa, pois se trata de preservação da autoridade desportiva.

Desta forma, não merece crédito o argumento de que “a JD não tutela a honra do árbitro”. É evidente argumento de quem quer se omitir na aplicação da norma esportiva. Da mesma forma quem exige que o árbitro se declare ofendido, extrapola a exigência da norma, exatamente pelo fato de que, a defesa da honra no âmbito da JD está ligada diretamente à preservação do espetáculo, da moralidade, da honra objetiva.

Assim, evidente que a “Lex sportiva” protege as autoridades desportivas, sendo que esta proteção pressupõe que não se tolere qualquer ofensa aos oficiais, de modo que a JD deve ser mais rigorosa contra tais condutas que atingem diretamente a honra dos oficiais.


[1] Advogado especializado em Direito Desportivo, Diretor do IBDD, Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP, Procurador Geral do TJD-AD, ex-Sub-Procurador Geral do STJD do Futebol, Membro de diversos Tribunais Desportivos do país, Especialista em Direito Desportivo pelo CEDIN, Especialista em Gestão Esportiva pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-SP

[2] “Art. 243-F. Ofender alguém em sua honra, por fato relacionado diretamente ao desporto. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de uma a seis partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de quinze a noventa dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

§ 1º Se a ação for praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, contra árbitros, assistentes ou demais membros de equipe de arbitragem, a pena mínima será de suspensão por quatro partidas. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

§ 2º Para todos os efeitos, o árbitro e seus auxiliares são considerados em função desde a escalação até o término do prazo fixado para a entrega dos documentos da competição na entidade  (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).”

[3] CBJD – Redação original: “Art. 188 Manifestar-se de forma desrespeitosa, ou ofensiva, contra membros do Conselho Nacional de Esporte (CNE); dos poderes das entidades desportivas ou da Justiça Desportiva, e contra árbitro ou auxiliar em razão de suas atribuições, ou ameaçá-los.

PENA: suspensão de 30 (trinta) a 180 (cento e oitenta) dias.

Parágrafo único. Quando a manifestação for feita por meio da imprensa, rádio, televisão, internet ou qualquer meio eletrônico, a pena será de 60 (sessenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias.”

[4] https://www.cbf.com.br/a-cbf/arbitragem/aplicacao-regra-diretrizes-fifa/livro-de-regras-2019-2020-portugues

[5] https://resources.fifa.com/image/upload/fifa-disciplinary-code-2019-edition.pdf?cloudid=qnhsekzhmwqkyqpvznzm

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