IAAF & doping: Pagam os justos pelos pecadores?

Alexandre Miguel Mestre

“Por uns pagam os outros”, afirmou Jéssica Augusto. “Porque querem castigar os atletas que nunca usaram doping?”, perguntou Yevgeny Trofimov. “As sanções deverão ser individuais e não colectivas. Os atletas que nunca se doparam não devem pagar pelos outros”, defendeu Vladimir Putin. “Não nos podemos esquecer dos atletas limpos. Têm direito a competir. Não merecem ser castigados pelos erros dos outros”, alertou Sergei Bubka, contra “todas as formas de exclusão em massa”. “Estamos confiantes de que (…) os atletas russos que estejam limpos possam participar nos Jogos Olímpicos”, enfatizou Thomas Bach.

Eis algumas reacções convergentes à decisão da deliberação do Conselho da IAFF – federação internacional de atletismo -, do passado dia 13 de Novembro, que suspendeu provisoriamente, e com efeitos imediatos, a ARAF – federação russa de atletismo –, seu membro. Fundamentalmente tais reacções atêm-se a um dos principais efeitos da deliberação em causa: a proibição de os atletas russos participarem em competições internacionais, designadamente campeonatos do Mundo e Jogos Olímpicos.

Utilizando uma expressão da gíria popular, as reacções pretendem alertar que o “justo não deve pagar pelo pecador”. Nesse sentido, esta crónica pretende aferir se a sanção de suspensão provisória aplicada à ARAF tem efectivamente esse efeito e, em caso afirmativo, se estaria ao alcance da IAAF sanção igualmente dissuasora mas que evitasse tal efeito. Vejamos.

De acordo com o comunicado de 13 de Novembro, publicado no respectivo sítio de internet, a causa invocada foi a violação do objecto/dos objectivos da IAFF, entre os quais se insere o desenvolvimento e manutenção e programas destinados a erradicar a dopagem no desporto e a protecção da autenticidade e integridade do atletismo. A base jurídica da decisão foi a conjugação dos artigos 6.11 (b) e 14.7 da “Constituição da IAFF” – sem contudo se identificar expressamente qual ou quais as alíneas deste último preceito que fundaram essa decisão.

Diz-nos o artigo 6.11 (b) da “Constituição da IAFF” que o Conselho da IAFF tem o poder se suspender ou adoptar outras sanções contra um Membro, nos termos do Artigo 14.7. Conclui-se, pois, desde logo, que a suspensão é uma de entre várias sanções ao alcance do Conselho da IAFF, que não a única. E será o artigo 14.7 a esclarecer que tipo de outras sanções estará em causa.

O artigo 14 tem precisamente uma epígrafe clarificadora das diferentes vias ao alcance do Conselho da IAFF: “Suspensões e outras Sanções”. No n.º 7, para além de sanções menos gravosas – como aplicação de sanções pecuniárias, repreensões, retirada de bolsas/subsídios, ou retirada de acreditação a oficiais – e sem esquecer a alínea residual, em que se prevê a possibilidade de imposição de qualquer outra sanção que o Conselho considere apropriado – destaca-se, pela gravidade, a suspensão de um Membro, mediante condições, e num pressuposto de transitoriedade/ carácter provisório. Outra sanção merece atenção, com relevo para o presente artigo: a exclusão de atletas da participação em um ou mais tipos de competições internacionais definidas nas Regras.

Temos, pois, que a “Constituição da IAAF” encontra na suspensão de um Membro a sanção mais gravosa e que, por uma única vez, tipifica a possibilidade de sancionar os “atletas de um Membro” e não ” um Membro”, ou seja, uma federação desportiva sua filiada. Pode, portanto, sancionar-se apenas a federação, apenas os atletas filiados nessa federação ou, cumulativamente, sancionar uma e outros.

Recolhidos estes elementos olhemos para o que esteve na génese da sanção aplicada: um Relatório de uma Comissão Independente, de 9 de Novembro, que apresentou um conjunto de recomendações à Agência Mundial Antidopagem (WADA). O Relatório refere que foram identificados atletas-alvo, suspeitos em função de vários critérios, e que, por isso, foram inquiridos no curso da investigação. E elenca mesmo o nome de alguns renomados e medalhados atletas. No que se refere às recomendações, e concretamente no que respeita à IAFF, o Relatório requereu à IAFF que declarasse a ARAF, sua “organização membro” como “não cumpridora” do Código Mundial Antidopagem, sem qualquer referência expressa aos atletas russos [fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][esta abordagem mostra-se conforme com uma premissa expressa no relatório evidenciou – a “necessidade de proteger atletas inocentes” – e uma afirmação que o Presidente da WADA, Sir Craig Reedie, avançou sobre o mesmo: “o Relatório está focado, de forma construtiva, na protecção do atleta limpo.”]

Aqui chegados, podemos afirmar o seguinte: não parece haver dúvidas de que neste escândalo de práticas de dopagem e de corrupção há dezenas de atletas envolvidos e que há mesmo forte convicção, senão mesmo certeza, quanto à identidade (de grande parte) dos mesmos. Por sua vez, esta afirmação conduz-nos a outra: não foram todos os atletas russos que estiveram envolvidos, mas sim alguns – mesmo que o número seja expressivo.

Da referida segunda afirmação nasce uma pergunta: poderia o Conselho da IAFF ter sancionado a ARAF, sem prejudicar os atletas russos no activo que estão completamente limpos/não envolvidos no escândalo em apreço? A meu ver, sim, poderia.

Bem sei que a ARAF tem a responsabilidade de seleccionar os atletas que representam a Rússia e que nessa qualidade competem em eventos desportivos internacionais, pelo que suspender a ARAF tem sempre implicações na elegibilidade dos atletas russos para competirem internacionalmente. Mas também me parece que o artigo 14.º, n.º 7 da “Constituição da IAFF” não fecha a porta a que a suspensão de uma federação membro seja parcial na sua extensão material, pelo que o Conselho da IAFF poderia ter suspendido a ARAF provisoriamente no tempo e parcialmente no alcance. De igual modo me parece que quando esse mesmo artigo acautela a hipótese de apenas sancionar os atletas, tal deve ser interpretado em “dois sentidos”: viabilizando sancionar só os atletas quando a causa lhe for exclusivamente imputável e; viabilizando sancionar a federação, sem prejudicar os atletas que não tiverem cometido qualquer infracção.

Face ao exposto, parece-me que teria sido mais avisado e conforme com as normas aplicáveis que o Conselho da IAFF tivesse delimitado a suspensão da ARAF para não prejudicar todos os atletas e que, a sancionar atletas, tivesse circunscrito essa sanção àqueles sobre os quais já existissem fortes indícios de condutas infractoras. E se dúvidas porventura surgiram, o Conselho da IAFF dispôs da hipótese de recorrer à referida sanção residual, ou seja, a uma outra sanção, “à medida” do caso concreto (colocando aqui de lado as reservas que tenho quanto a eventual violação do princípio da tipicidade de uma norma residual deste tipo).

A opção do Conselho da IAFF foi, no entanto, outra. Por conseguinte, a não ser que, se lá se chegar, o Tribunal Arbitral do Desporto de Lausana reverta a situação, ou as autoridades estatais e desportivas russas cumpram as diligências propostas nos prazos indicados, poderemos ter atletas russos limpos a pagar pelos batoteiros. O que seria lamentável.

Corra-se, então, contra o tempo, para proteger os atletas limpos. E corra-se com os batoteiros, a bem de um desporto são, íntegro e verdadeiro.

Fonte: sabado.pt[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]

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