INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE NA ARBITRAGEM ESPORTIVA

Pedro Henrique Bandeira Sousa[1]

[1] Árbitro e Professor.  Doutorando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica Portuguesa – Lisboa/Portugal. Fellow da Chartered Institute of Arbitrators – CIArb/United Kingdom. Membro da Comissão Nacional de Direito Desportivo – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Presidente do laboratório de pesquisas da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD-Lab. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/SC. Membro da Comissão de Direito Desportivo OAB/SC. Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr. Membro da Comissão de Direito Desportivo do Instituto de Advogados de Santa Catarina – IASC. Membro da Associação Portuguesa de Direito Desportivo.

 

 

Recentemente, viu-se um alarmante aumento do número de ações anulatórias pleiteadas no judiciário brasileiro, especificamente em relação à independência e imparcialidade dos membros dos tribunais arbitrais.

As ações são ajuizadas com base no artigo 32, inciso II da Lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”), que dispõe ser nula a sentença arbitral se emanou de quem não podia ser árbitro. E, por “não poder ser árbitro”, em grande parte quer se dizer que o árbitro não apresentava os requisitos de independência e imparcialidade necessários para compor o tribunal arbitral.

Dispõe o artigo 14 da Lei de Arbitragem que:

“Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil”

Oportuno, portanto, trazer ao debate as disposições do Código de Processo Civil, antes de se adentrar à discussão em si. Nesse sentido, cuida-se destacar os artigos 144 e 145 da lei processual, que apresenta as hipóteses de impedimento e suspeição do magistrado que, por determinação da Lei de Arbitragem, igualmente se aplicam aos árbitros.

Além do Código de Processo Civil, é comum a utilização na arbitragem das diretrizes da International Bar Association  (“IBA”) que, embora não se tratem de normas cogentes, servem como ferramenta para harmonizar comportamentos e perspectivas na arbitragem. Carmona[1] explica que a IBA foi responsável por apresentar diversas diretrizes de suma importância para a arbitragem, tratando do comportamento ético dos árbitros, de conflitos de interesse e revelações, de produção de provas, todas de ampla utilização no âmbito da arbitragem internacional. Para o escopo do presente ensaio, as Diretrizes relativas a Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional[2] têm maior importância.

O guia da IBA mostra-se importante por apresentar, em três Listas – Vermelha, Laranja e Verde – situações comumente vivenciadas pelos árbitros em relação às partes e seus patronos, indicando as situações que devem ser reveladas, as que devem ser avaliadas quanto à sua revelação e as que não necessitam revelação; situações essas que podem influenciar,  ou não, na independência e imparcialidade do árbitro.

Em breve resumo, esse é o conjunto de normas que deverão ser observadas para averiguação da independência e imparcialidade, e o conflito de interesses, dos árbitros indicados para compor um tribunal arbitral. Contudo, para efetiva avaliação da independência e imparcialidade do árbitro, seja ela feita pelo próprio, através do dever de revelação, ou pelas partes, através de impugnação específica, o caso concreto e a peculiaridade do tipo de arbitragem devem ser levados em consideração.

No Brasil, o instituto da arbitragem tem como nicho predominante o direito empresarial e societário e, ao longo dos anos, outras áreas do direito vêm utilizando esse método de solução de disputas como alternativa ao judiciário. Em recente pesquisa, Selma Lemes[3] apurou que, no ano de 2021, a arbitragem societária era responsável pela maioria dos procedimentos em quatro das oito principais instituições brasileiras. Em 2022, societário e empresarial foram predominantes em cinco das oito instituições. Essas áreas são apontadas pela comunidade simplesmente como “arbitragem comercial”.

A relevância desses dados para o ensaio é demonstrar que essas áreas do direito, por terem o maior número de procedimentos, têm o maior número de profissionais envolvidos e, consequentemente, de árbitros. O direito esportivo, por outro lado, iniciou a utilização da arbitragem como método de resolução de disputas mais recentemente. No âmbito do futebol, com a criação da Câmara Nacional de Resolução de Disputas em 2016, após a extinção da Comitê de Resolução de Litígios[4], os procedimentos do esporte passaram a ser resolvidos pela Câmara nos termos da Lei de Arbitragem. O Comitê Olímpico Brasileiro já previa em seu estatuto que toda e qualquer disputa que derive ou tenha relação do COB deveria ser resolvida pela arbitragem, mas somente em 2020 que o COB elegeu o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (“CBMA”) como instituição responsável por resolver essas disputas. Posteriormente, confederações de outros esportes seguiram o modelo adotado pelo COB, inserindo em seus estatutos que as disputas deveriam ser resolvidas, por arbitragem, no CBMA.

Com efeito, o direito esportivo é uma área do direito que dispõe de uma gama consideravelmente menor de advogados atuantes, o que representa um desafio para a condução dos procedimentos arbitrais, especialmente no tocante aos conflitos entre partes, advogados e árbitros. Em uma análise contrario sensu da arbitragem comercial, em que pese o grande número de procedimentos arbitrais no mundo do esporte, há uma menor disponibilidade de profissionais envolvidos e, consequentemente, de árbitros.

Justamente em razão desse cenário, as Diretrizes da IBA trazem uma ressalva quanto ao direito esportivo e o número de procedimentos em que um árbitro participa e, por esse motivo, deve revelar sempre que for indicado para um novo painel. Assim é a disposição do item 3 das Diretrizes, que abre alas para a Lista Laranja – ou seja, enumeração não-taxativa de situações específicas que (à luz dos fatos pertinentes a uma determinada controvérsia) possam, aos olhos das partes, suscitar dúvidas justificáveis quanto à imparcialidade ou independência do árbitro[5]:

“3.1. Serviços anteriores prestados a uma das partes ou outro envolvimento no caso:

3.1.3. O árbitro foi nomeado, nos três últimos anos, como árbitro em duas ou mais ocasiões por uma das partes ou por uma afiliada de uma das partes.

Nota de Rodapé n.5: Pode ser prática corrente em alguns tipos de arbitragem, como sucede no caso da arbitragem marítima, sobre desporto ou sobre ‘commodities’, selecionar os árbitros a partir de um grupo restrito e especializado. Se, nessas áreas, o costume for o de as partes nomearem frequentemente o mesmo árbitro para litígios distintos, a revelação de tal facto não será necessária desde que todas as partes no processo arbitral devam estar familiarizadas com tais usos e costumes.”

A definição da IBA parece ser irretocável: grupo restrito e especializado. Diante de um reduzido número de advogados atuantes no mercado esportivo que se mostram, contudo, altamente especializados, tem-se uma situação comum de repetição das partes, advogados e árbitros, não pela preferência somente desses profissionais, mas pela indisponibilidade de mercado.

Quanto às partes, os jurisdicionados do esporte mostram-se quase sempre os mesmos: há uma indiscutível rotatividade em relação aos atletas, diante das modificações geracionais, mas há uma constante em relação aos demais litigantes, uma vez que as entidades de gestão e prática esportiva são, quase sempre, as mesmas. Os mesmos clubes, os mesmos órgãos, os mesmos agentes de atletas e as mesmas matérias.

Sob o escopo do Código de Processo Civil e das Diretrizes da IBA, é de se ressaltar que muitas das situações em que os árbitros teriam o dever de revelar ou até mesmo de se escusar da participação do tribunal arbitral devem ser mitigadas quando se analisa as questões no direito esportivo. Isso porque, diferentemente da arbitragem comercial, é muito comum que os advogados e árbitros no direito esportivo tenham uma proximidade maior, motivada por seus clientes e da própria formação acadêmica, bem como participem de diversos eventos dividindo painéis, além de obras literárias e entidades jurídicas do meio esportivo e, ainda assim, não seja propriamente um caso de parcialidade e conflito. Destacam-se a Academia Nacional de Direito Desportivo, o Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, a Sociedade Brasileira de Direito Desportivo, o Instituto Iberoamericano de Derecho Deportivo, onde encontramos a vasta maioria dos militantes do direito desportivo, confrades nestas entidades mas em partes opostas – além de integrantes de tribunais arbitrais – sem que haja uma situação de conflito.

            Outra questão deveras importante no esporte é, justamente, a opção esportiva de cada advogado e árbitro. Sendo o futebol a paixão nacional, é perfeitamente aceitável que cada um desses advogados e árbitros tenha o seu clube de preferência e a grande questão é até que ponto isso poderia influenciar, ou seria um ponto de impugnação das partes. Tome-se como exemplo os clubes tradicionais do Rio Grande do Sul e a rivalidade existente entre o Sport Club Internacional e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Numa demanda em que um dos clubes fosse parte litigante, seria um dever de revelação dos árbitros informar ser torcedor do outro clube? Ou, sentindo-se o mesmo imparcial, seria uma causa razoável para a parte alegar conflito ou apresentar impugnação?

Mesma análise deve ser realizada no caso do árbitro ser associado do clube e fazer parte de um tribunal arbitral onde o mesmo clube é parte litigante: onde se traça a linha da imparcialidade do árbitro? Deve ser ressaltado, ainda, que há diversas formas de se associar a um clube, tais como a figura do sócio-torcedor, sócio-proprietário, i.a..

Há, ainda, na arbitragem esportiva, a figura do recurso arbitral[6] e, diante dessa realidade, há situações completamente noveis em relação às Diretrizes da IBA, como a possiblidade do advogado que hoje é membro na CNRD vir a compor o tribunal arbitral no CBMA em instância recursal[7], não se adentrando ao mérito nesta oportunidade se a prática seria correta, ou não.

Tratam-se de algumas das situações peculiares do direito esportivo que demonstram a necessidade de se analisar o eventual conflito por uma ótica também esportiva. Assim, voltando-se à situação da quantidade de profissionais que militam do direito esportivo, é possível concluir que as causas de independência e imparcialidade, bem como as situações sobre o dever de revelação do árbitro, trazidas no bojo das Diretrizes da IBA, devem ser analisadas especificamente de acordo com a realidade do direito esportivo, não se permitindo, contudo, qualquer fuga do que se encontra disposto nos artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil.

Não realizando essa análise casuística, de acordo com a realidade do mercado, estar-se-á criando mais camadas impeditivas que reduziriam, ainda mais, a disponibilidade de profissionais atuantes e capazes de integrar um tribunal arbitral em procedimentos de arbitragem esportiva. Por fim, essa análise deve ter um escrutínio ainda maior do que o da arbitragem comercial, justamente pelo reduzido número de profissionais e pelo fato de que a arbitragem esportiva não pode sofrer baixas em seu plantel de advogados, sempre com a finalidade de apresentar um procedimento arbitral hígido, sólido e confiável, com o contínuo objetivo de crescimento do direito esportivo nacional.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do(a) Autor(a) deste texto.

[1] CARMONA, Carlos Alberto. Breves considerações críticas acerca das diretrizes da International Bar Association sobre a representação de parte na arbitragem internacional. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 40/2014, Jan / 2014, p. 23.

[2] Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional, de 23 de outubro de 2014. Disponível em https://www.ibanet.org/resources.

[3] LEMES, Selma Ferreira. Pesquisa: Arbitragem em números, pesquisa 2021/2022 realizada em 2023. No prelo.

[4] Não se pretende discutir neste momento se o procedimento havido no Comitê de Resolução de Litígios poderia ser considerado uma arbitragem, como se pode apontar sobre os procedimentos da Câmara Nacional de Resolução de Disputas. Para maior estudo sobre a matéria, escrevi um artigo que, embora defasado em razão das mudanças estruturais da CNRD, ainda permite trazer algumas conclusões da Câmara em relação ao instituto da Arbitragem. Sobre o assunto: A Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF: Instauração do Processo, Procedimento e Natureza das Decisões à Luz do Instituto da Arbitragem. Douglas Anderson Dal Monte; Rodrigo de Assis Horn. (Org.). ANUÁRIO MH 2019. 1ed.Florianópolis: Conceito Editorial, 2019, v. 1, p. 261-282.

[5] Referida definição é dada pela própria IBA, ao explicar a Aplicação Prática dos Princípios Gerais.

[6] Para maior estudos sobre a matéria, escrevi um artigo que fala especificamente da recorribilidade arbitral: Recorribilidade da Arbitragem: Discussão Sobre a Possibilidade de Interpor Recurso Quanto ao Mérito da Sentença Arbitral. Melina Bellaguarda Kotzias (Coord.). A Arbitragem e a Advocacia. Coleção Grandes Temas da Advocacia 7, coordenação geral: Pedro Miranda de Oliveira. São Paulo: Tirant lo Blanch 2021, 1ª ed., p. 229-246.

[7] Decerto, não se cogita a possibilidade de o advogado atuar como árbitro em um procedimento no qual o mesmo funcionou como membro. Ressalte-se que há diferentes divisões na CNRD e com diferentes membros e, assim, é possível que um procedimento que tenha surgido durante o seu mandato, em outra divisão na qual o mesmo não faz parte, venha a ser recorrido ao CBMA, oportunidade na qual o mesmo é indicado como árbitro.