Luis Suárez e o Direito Penal

Leonardo Schmitt de Bem 1

O uruguaio Luis Suárez proferiu uma mordida em jogador adversário durante partida da Copa do Mundo no Brasil. A Comissão Disciplinar da FIFA puniu energicamente o atleta suspendendo-o pelos próximos nove jogos da seleção, desvinculando-o por quatro meses de atividades esportivas e do simples acesso aos estádios nesse período, além de multá-lo em milhares de francos suíços. Em síntese, a entidade entende que o futebol pressupõe certa ética e que o futebolista deixou de cumprir as regras desportivas e de preservar a chamada integridade desportiva.

A conduta antidesportiva do jogador celeste e a punição exagerada da entidade máxima do futebol contribuem, ao menos, em dois importantes debates no Direito Penal. Primeiro: a pena criminal é a mais grave das intervenções na liberdade humana? Segundo e, reflexamente, a incidência penal deverá ser realmente a última medida?

Luis Suárez, ao morder o ombro de Chiellini praticou, em tese, uma lesão corporal leve tipificada no caput do art. 129 do Código Penal com pena mínima cominada de três meses. Para ser possível sua incriminação, exige-se, legalmente, representação do ofendido (art. 88 da Lei n. 9.099/1995). A vítima italiana, que já entendeu excessiva a punição, certamente decairá deste direito uma vez que deixará transcorrer o prazo de seis meses para o seu exercício.

Vistas as coisas, algo anda muito mal quando se observa uma punição disciplinar mais grave que uma possível punição criminal. Seria como dizer, em outros termos, que o fair play (jogo limpo), um bem (valor) estritamente esportivo e sem um correspondente direito fundamental reconhecido constitucionalmente, teria uma proteção mais ampla que um legítimo bem jurídico penal.

Alguém pode se perguntar: como a pena disciplinar aplicada ao jogador que violou as regras do esporte poder ser mais grave que a sanção mínima cominada para o crime de lesão corporal leve? É surpreendente a atitude da FIFA e quem enaltece esse julgamento se esquece da função da pena criminal, ou seja, de ser a mais intimidante reprimenda estatal e, com efeito, possibilita que a pena imposta pela classe administrativa seja maior que a coação definida pela atuação jurisdicional[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][2].

Quando isso ocorre, seguramente há “algo mais” protegido no esporte. Mas esse “algo mais” deve ser algo distinto ao próprio objeto jurídico tutelado penalmente. É o mesmo que dizer que o bem jurídico penal protegido contra as ofensas físicas não pode estar encoberto na tutela do fair play. E por que não pode? Quando a conduta praticada não é coagida penalmente, porque no âmbito da violência física não está proibida ou está justificada ou depende do exercício de alguma condição, não resulta possível a punição disciplinar, salvo se o fundamento jurídico for diferente. Significa dizer que não pode haver identidade entre os interesses jurídicos tutelados pelas distintas normas sancionadoras. Porém, repetimos que um bem estritamente desportivo não pode estar protegido com sanções mais graves que as previstas para a proteção de bens jurídico-penais.

A FIFA não respeitou essa regra, quiçá, porque a ideia de prevenção não resulta suficiente com a previsão da sanção disciplinar somente para a tutela da integridade desportiva. Queremos afirmar, em termos mais simples, que a sanção disciplinar cominada exclusivamente para a proteção do espírito desportivo não cumpriria as finalidades de prevenção que derivam da pena criminal. Para mudar esse contexto, a FIFA termina por camuflar sob uma etiqueta jurídica indeterminada, pois as expressões citadas têm bela sonoridade, mas carecem de conteúdo – sendo este definido pelos membros de sua Comissão disciplinar – interesses jurídicos já protegidos penalmente. Contudo, em nosso entender, a FIFA, com esse procedimento velado, ofende a proibição de duplicidade de sanções por uma mesma conduta, como enuncia o princípio non bis in idem.

Assim, e na sequência do que defenderemos, a aplicação das sanções disciplinares poderá ocorrer em somente dois contextos: com o descumprimento das regras desportivas e com consequências ofensivas unicamente aos interesses desportivos; ou, nos casos de condutas de escassa gravidade aos objetos jurídico-penais, pois nesse contexto, primeiramente, é suficiente a instância desportiva para a devida tutela e, em segundo lugar, pois as ofensas insignificantes não concernem ao Direito Penal. Nesses casos, novamente reforçamos que a sanção disciplinar não poderá superar à penal, pois segundo expõe Cuchi Denia, “em um Estado Democrático de Direito, é difícil que predomine o decoro de uma organização antes da proteção à integridade de seus participantes” [3].

Diante desse contexto é possível aderir à doutrina de Tiedemann e Schünemann que acodem não ser sempre precisa a opinião majoritária que pressupõe que a reprimenda penal é a mais grave das intervenções na liberdade[4]. Explicamos detalhadamente.

O exercício de qualquer atividade transforma a vida humana. Entendendo-se o trabalho como uma atividade qualquer, como a prática desportiva profissional, a sua restrição, é dizer, a restrição da liberdade de seu exercício, afeta a vida humana. Sendo assim, a suspensão imposta pela FIFA ao uruguaio, ademais de excepcionar nossa Carta Fundamental no âmbito de seus direitos e garantias fundamentais, pois ademais da punição desportiva, proibiu-se Suárez de adentrar aos estádios da Copa e mesmo de permanecer nos locais oficiais junto com seus colegas de seleção, seguramente pode ser considerada mais grave que uma pena criminal[5].

Considerando o caso Suárez, a objeção dos penalistas é correta se o conceito de liberdade não contempla apenas o direito de ir e vir, é dizer, o direito de locomoção, porque não há dúvidas que a pena de privação de liberdade é a coação mais intrusiva para o ser humano. E isso, sem olvidar dos países que aderem à prisão perpétua. Porém, se o conceito de liberdade abarcar, mais além do direito de locomoção, o direito de exercer uma atividade (prática desportiva), determinadas penas disciplinares ou administrativas serão – se já não o são – realmente mais graves.

Com esse novo alcance conceitual, é possível observar que o castigo penal não é a pior resposta que um Estado pode atribuir às pessoas. Isso não significa, contudo, que o dogma da intervenção mínima do Direito Penal deva ser abandonado, mas nada impede uma revisão.

Nesse sentido, é muito interessante a proposta de Nils Jareborg que não segue a ideia de que o Direito penal atue somente quando os demais meios legais são insuficientes[6]. O penalista altera a forma de analisar o princípio da intervenção mínima tendo em consideração que as restrições ao legislador não são amplas[7], de sorte que passa a considerá-lo como uma condição favorável à criminalização e não mais como sendo uma condição contrária[8].

Esta análise destaca, inicialmente, que a intervenção mínima é tão-somente um princípio da ética legislativa que fundamenta a ideologia de um Estado de direito e que se presume existir em países governados democraticamente. Sem embargo, reconhecendo que a argumentação ética é também ampla, apresenta uma nova sistematização por ele chamada deequilíbrio reflexivo do legislador, valendo-se de uma expressão importada de John Rawls[9]. Destacaremos alguns detalhes.

O penalista pretende impedir o uso radical do Direito Penal. Para cumprir este objetivo converte o Direito Penal no meio extremo para casos extremos. Para demarcar sua tese elege terminologia muito interessante. Trabalha a intervenção mínima sob um amplo princípio in dubio pro libertateem oposição ao princípio in dubio pro lege. O conteúdo essencial daquele provem de argumentos favoráveis e contrários à criminalização que constituem elementos de três subprincípios: o valor penal, a utilidade e ahumanidade, sendo que, em casos extremos, o primeiro tem prioridade sobre os outros dois[10].

Interpretando sua doutrina concluímos que ações sem grau suficiente de desaprovação não devem ser sancionadas criminalmente. Logo, quanto maior seja o valor penal da conduta, mais provável será a sua criminalização. Verificado esse alto valor as dúvidas para a incriminação desaparecem. O princípio do valor penal reúne dois argumentos. O primeiro é a reprovação pela culpabilidade que é constituído pelo bem jurídico violado, pela criação de riscos ou danos ao interesse jurídico protegido, pela atuação intencional ou negligente do agente, entre outros. O segundo é a análise daproporcionalidade retrospectiva, é dizer, para que a sanção penal não pareça exagerada para certo tipo de conduta, será necessário compará-la com outras condutas com o fim de verificar sua suficiente gravidade. O segundo argumento constitui um freio do primeiro [11].

A interpretação se deve realizar no sentido de que o legislador apenas exalte como delituosas as condutas que afetem os bens jurídicos de modo relevante. Longe de advogar a eliminação penal do âmbito desportivo, deve-se valer de sua presença somente em última instância, porém não com a finalidade de examinar os demais instrumentos legais, senão em face de ações que apresentem, de maneira efetiva, um índice de lesividade ao bem jurídico. Exemplificando: se em uma partida, todos os insultos que jogadores dirigem ao árbitro fossem punidos criminalmente, o sistema da Justiça Penal entraria em colapso devido à sobrecarga de processos. Por isso, é necessário avaliar a ofensividade do insulto e apenas no caso de ofensas que possuam relevante carga de lesividade, como nas ofensas discriminatórias, incluir-se-iam entre as condutas merecedoras de sanção penal. O mesmo deverá ocorrer nos casos de violência corporal e nos que afetam interesses patrimoniais ou econômicos no esporte. Equivale a dizer que algumas condutas devem ser excluídas totalmente da incidência penal. Nessa linha, assinala Vicente Martínez que “a intervenção estatal deve seguir a alguns parâmetros contrários à criminalização de aqueles comportamentos carentes de um plus de lesividade que não legitimem a intervenção penal”[12]. Porém, a afirmação da conduta delituosa não constitui uma autorização para relegar a um plano secundário a proporcionalidade em sentido estrito, pois esta “orienta o legislador a que use as normas de modo cauteloso e reservado”[13].

Quais são as vantagens da construção de Nils Jareborg? Primeiramente, como destaca o próprio penalista, sua teoria implica que o princípio da necessidade penal adquire uma função normativa independente e, com efeito, tende a ser mais realista que na concepção tradicional [14]. Em segundo lugar, seguindo um Direito Penal constitucionalmente orientado, só as ofensas mais intoleráveis deverão ser abarcadas penalmente, porque do contrario haverá ofensa ao principio da dignidade humana e, no contexto desportivo, a paralização da atividade em si mesma [15]. Não é relevante, ademais, estabelecer o grau de eficácia das sanções alternativas, inclusive porque verificados os ataques mais graves em detrimento aos interesses jurídicos que assumam a dignidade de direitos fundamentais devera incidir a sanção penal[16]. Outro efeito de sua construção se refere ao princípio da legalidade, estando o legislador vinculado à precisão e à determinação na descrição das ações proibidas pelos tipos legais, pois a elas corresponderão as penas mais enérgicas. Em último lugar, as sanções cominadas às demais condutas, é dizer, as sanções disciplinares previstas para as ações menos ofensivas não poderão ser superiores à pena criminal sob pena de desvirtuar por completo a função e a própria existência penal[17].

Em síntese, a punição imposta pena FIFA a Luis Suárez não se adéqua ao “padrão” exigido para a realização da Copa do Mundo no Brasil.

 

 


[1] Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano e pela Universidad de Castilla-La Mancha. Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Penal em Santa Catarina. Autor do livro Responsabilidad penal en el deporte. Curitiba: Juruá, 2014; e cocoordenador e articulista na obra Direito Desportivo e Conexões com o Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2014.

[2] Portero Honares, Manuel. ¿Principio de efectiva protección de bienes jurídicos?: Derecho penal europeo y principio de proporcionalidad. In: Los Derechos Fundamentales en el Derecho Penal Europeo. Pamplona: Arazandi, 2010, p. 321, destaca que “a pena criminal tem uma importante função que é a de fixar o limite máximo da força que podem alcançar as demais intervenções”.     

[3] Cuchi Denia, Javier. La incidencia del Derecho penal en la asignatura deportiva: la aplicación del principio ne bis in idem. In: Revista Española de Derecho Deportivo, n. 8, 1997, p. 172 e ss.

[4] Apud Greco, Luís. Modernização do Direito Penal, Bens Jurídicos Coletivos e Crimes de Perigo Abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 58-59.

[5] Outro famoso caso que ilustra esse contexto foi o banimento de todos os esportes olímpicos da nadadora brasileira Rebeca Gusmão pela Corte Arbitral do Esporte pelo uso reiterado de substâncias proibidas. Essa sanção disciplinar supera as penas criminais previstas, por exemplo, nas leis belga e italiana que punem a prática da autodopagem.

[6] Andrade, Manuel da Costa. As lesões corporais (e a morte) no desporto, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra, 2003, p. 682, inclusive assinalando que o sistema sancionador desportivo “acrescenta uma força nada depreciável ao princípio da ultima ratio do Direito penal”.

[7] Tiedemann, Klaus. Constitución y Derecho penal. In: Revista Española de Derecho Constitucional, n. 33. Trad. Luiz Arroyo Zapatero. Madrid, 1991, p. 148, particularmente no contexto constitucional alemão destaca “a ampla margem de liberdade ao legislador para a configuração do ordenamento penal”.

[8] Jareborg, Nils. A criminalização como último recurso. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processo Penal, n. 77. Trad. Lucas Minorelli. Porto Alegre: Thomson, 2013, p. 58-74.

[9] Jareborg, Nils. A criminalização como último recurso, p. 60.

[10] Jareborg, Nils. A criminalização como último recurso, p. 67-68.

[11] Jareborg, Nils. A criminalização como último recurso, p. 67.

[12] Vicente Martínez, Rosario de. Derecho Penal del Deporte. Barcelona: Bosch, 2012, p. 98.

[13] Schwabe, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org. e Introd. Leonardo Martins. Montevideo: Fundación Konrad Adenauer, 2006, p. 271.

[14] Jareborg, Nils. A criminalização como último recurso, p. 71.

[15] Andrade, Manuel da Costa. As lesões corporais (e a morte) no desporto, p. 682.

[16] Angioni, Francesco. Beni costituzionale e criteri orientativi sull’area dell’illecito penale. In: Bene Giuridico e Riforma della Parte Speciale. Napoli: Jovene, 1985, p. 111, assinala que essa análise paralela é mais difícil do que aparenta, pois para ter um conhecimento exato da eficácia das outras medidas seria necessário substituir, ao menos provisoriamente, a sanção penal. algo que para o penalista italiano é pouco factível.    

[17] Portero Honares, Manuel. ¿Principio de efectiva protección de bienes jurídicos?: Derecho penal europeo y principio de proporcionalidad, p. 321, aduz que “o recurso à pena garante que outras medidas muito mais agressivas, como a vingança ou os sistemas de proteção privados, não ocupem seu lugar”. O professo espanhol também ressalta que “o aspecto central em torno ao princípio da ultima ratio se refere, precisamente, à condição que há de existir para que este possa efetivamente desempenhar sua função: sua aplicação exige que a sanção penal seja efetivamente a sanção que mais intimide as pessoas dentre todas que conta o Estado”.     

 

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