Por Rafael Teixeira Ramos¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
A mala preta é o envio de uma quantia pecuniária a um dos clubes contendores (atletas ou dirigentes que a distribua aos jogadores do time) para perder o jogo, mediante falsa participação (conhecido corpo mole no mundo esportivo).
A entrega dessa mala pode ser realizada pelo próprio adversário ou terceiro (pessoa física ou pessoa jurídica) interessado no resultado da partida, desfecho, prosseguimento de uma competição com a finalidade de garantir, manipular o resultado esportivo.
Já a mala branca é o envio de uma quantia pecuniária a um dos clubes contendores (atletas ou dirigentes que a distribua aos integrantes do time) para reforçar o seu dever de vencer o jogo, um incentivo externo, alheio ao empregador.
A entrega dessa mala pode ser realizada pelo próprio adversário (incomum de ocorrer) ou terceiro (pessoa física ou pessoa jurídica) interessado no resultado da partida, desfecho, prosseguimento de uma competição com a finalidade de garantir, manipular o resultado esportivo.
A mala branca é direcionada para a equipe receptora vencer, enquanto que a mala preta é destinada para o time recebedor perder, porém, figura-se irrelevante que o resultado prático seja de empate, pois de alguma forma falseia a regular contenda esportiva, constituindo-se o vício no ato do oferecimento e aceite das malas, não somente no resultado em si.
Os dois tipos de malas, combustíveis manipulativos dos resultados, malferem o principal embrião da atividade desportiva (profissional ou não profissional), a ética desportiva, fair play, o espírito esportivo, de onde se irradia duas pilastras de sustentação do jogo limpo (honesto): a incerteza do resultado (incertitude sportive) e o equilíbrio competitivo, a conhecida par conditio dos competidores, igualdade de condições nas competições, verdade na realização da partida ou competição, elementos de atração e existência do desporto.
Da ética desportiva e seus corolários, equilíbrio competitivo e incerteza dos resultados, dimanam todas as demais normas do jogo, regras de prática, regulamentação das competições e outras espécies normativas do desporto.
Por ambas as malas transgredirem toda essa gama de princípios e normatividades desportivas figuram-se em ilícitos desportivos, tipificados nos artigos 237, 238, 241, 242, 243-A do Código Brasileiro de Justiça Desportivo (CBJD)².
Há corrente doutrinária que sustenta a licitude da mala branca, porém, diante das tipificações solidificadas no CBJD, abrangendo as duas malas, pensa-se pacífica na seara jurídica desportiva a ilicitude de qualquer das malas.
Na esfera penal, o ordenamento jurídico brasileiro pareceu adotar a mesma ratio normativa ao tipificar especificamente nos artigos 41-C, 41-D, 41-E do Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.671/03 e alterações) como crime quaisquer malas.
No plano trabalhista desportivo, o legislador corporificou, juridificou laboralmente a ética e disciplina desportivas, bem como as regras da respectiva modalidade esportiva praticadas como um dos conteúdos obrigacionais principais do contrato de trabalho desportivo (artigo 35, III, Lei nº 9.615/98).
Nesse prisma, a antijuridicidade na execução das malas, tanto preta como branca, transcendem as matérias desportiva e penal, também configurando ilicitude laboral desportiva.
A propósito, é induvidosa a ilicitude trabalhista desportiva da mala branca que também promove uma alteração diversificada dos meios legais de exercício da profissão atlética, refletindo no resultado da partida, no transcurso ou desfecho da competição, maculando, falseando de alguma forma a pretensa verdade competitiva (uncertainty of outcome), estiolando o equilíbrio esportivo (competitive balance), núcleos da disciplina e ética desportivas.
No ramo do trabalho desportivo, além do efetivo recebimento ou entrega das malas, situação mais fácil de comprovação, se houver apenas a promessa de suas entregas que de algum modo alterem o espírito competidor, desde que devidamente provado, já perfaz os contornos da ilicitude, podendo incorrer em justa causa trabalhista desportiva os atletas ou dirigentes empregados que se comprometerem a negociar partida ou competição (artigo 35, III, Lei nº 9. 615/98 c/c artigo 482, a), h), k), CLT).
Evidente que tal comprometimento antidesportivo-trabalhista deve ocorrer sem o conhecimento do empregador desportivo, para que os empregados envolvidos sejam passíveis de despedida por justa causa, pois se houver consentimento ou determinação da ilicitude pela direção empregadora desportiva, afasta-se a justa causa pela aplicação do brocardo jurídico vedação à própria torpeza e pela vedação ao comportamento contraditório da boa-fé objetiva (venire contra factum proprium) também incidente nos pactos laborais desportivos.
Ante todo o esposado, a utilização da nomenclatura “bicho externo” para se referir a qualquer tipo de malas pode provocar uma confusão de entendimento jurídico entre a parcela salarial “bichos” e esses instrumentos ilícitos denominados como mala preta e mala branca.
Os bichos, que carregam esse codinome por costume da atividade esportiva, a partir da edição da Lei nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista), passou a ser parcela de natureza não salarial, indenizatória, pois se configura uma espécie de prêmio.
Os bichos se destacam como uma compensação financeira adicional no salário do atleta em virtude do alcance de resultados positivos nas partidas, competições, sendo montante associado à remuneração contratual, proveniente exclusivamente da entidade empregadora desportiva, que arca com os seus ônus laborais e tributários.
Os bichos não podem ser equiparados às malas, aqueles são parcelas trabalhistas lícitas, estas são parcelas indesejadas, ilícitas, mesmo que na sua versão branca, podendo ensejar justa causa quando descobertas. Como descreveu o professor Álvaro Melo Filho, “mala preta e mala branca são as duas faces da mesma moeda” (MELO FILHO, Álvaro. “Mala Preta” e “Mala Branca”: as duas faces dessa moeda desportiva. Disponível em: <http://listas.cev.org.br/cevleis/2008-December/045224.html>. Acesso em: 11 mai. 2016).
Os bichos não se repercutem mais nas demais verbas salarias, ainda que previstos no pacto laboral ou pagos com habitualidade, a mala branca jamais pode ter repercussão no contrato laboral desportivo, sob pena de se “lavar o dinheiro ilícito”, portanto, não deve ser nomeada de “bicho externo” ou “modalidade peculiar de bicho”.
Com o advento da MP nº 984/20, o legislador não legaliza, mas estimula a prática ilícita de oferta e pagamento de malas (pretas ou brancas), pois diante do artigo 1º, da Medida Provisória em pauta, o clube mandante é detentor exclusivo do recebimento das verbas quitadas pela transmissão e difusão da partida, sem descrever detalhadamente como se transfere as parcelas da arena dos jogadores do time adversário, podendo ser distribuída diretamente pela entidade empregadora mandante.
Além de poder estimular a oferta e pagamento das malas (preta e branca), imagine que, o atleta adversário vai disputar uma partida fora de casa; ao realizar um gol, uma falta, uma comemoração que desagrade a torcida e a direção do clube mandante, ou ainda, tenha qualquer outra atitude entendida como não querida pelo seu adversário mandante, pode sofrer uma possível retaliação no repasse direto ou indireto das suas verbas atinentes ao direito de arena. Se isto decorrer na prática, o jogador restará prejudicado no recebimento de sua remuneração e poderá ter dificuldades de reavê-la na Justiça do Trabalho, pois possivelmente a mora não passará pela culpa de seu clube empregador, que pode nem ser o repassador dessas verbas, segundo o vazio do artigo 1º da MP nº 984/20.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ Professor de Direito da Faculdade Luciano Feijão; Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD); Doutorando em Direito Empresarial, Mestre em Direito do Trabalho e Pós-Graduado em Direito do Desporto Profissional, todos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Titular da Cadeira n. 48 da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD); Advogado.
² Resolução CNE/ME n. 29/2009.