Manipulação de Resultados e sua Previsão Normativa

Gustavo Normanton Delbin¹ e Mariana Chamelette²

Membros filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

O principal fator que diferencia o esporte de outras formas de entretenimento é a sua imprevisibilidade. Embora em uma partida esportiva possa haver um atleta ou plantel favoritos à vitória, sempre haverá a possibilidade de um placar inesperado. É justamente esse fator do “imponderável” que mantém o esporte vivo.

No entanto, cada vez mais, esse elemento tem sido ameaçado pela manipulação de resultados.

A expressão manipulação de resultados refere-se a um arranjo, ato ou omissão intencional que visa a alteração indevida do resultado ou do curso de uma disputa esportiva, removendo do desporto de maneira parcial, ou por completo, a sua imprevisibilidade, visando, a obtenção de vantagem indevida para si ou para outrem³.

Embora diversas questões permeem o assunto, na presente coluna pretende-se apontar a tutela jurídica da imprevisibilidade desportiva, por meio da tipificação de determinadas condutas em âmbito penal, desportivo e de entidades de administração do desporto em nível internacional.

Inicialmente, no que se refere à tipificação em âmbito penal, há de se ter em vista que, em 2010, foram incluídos no Estatuto do Torcedor os artigos 41-C, 41-D e 41-E, por meio dos quais restaram criminalizadas as condutas dos indivíduos que participam de esquemas de manipulação de resultados.

A relevância dos bens jurídicos tutelados pelos dispositivos em referência, quais sejam: a integridade e a imprevisibilidade, elementos inerentes ao desporto, prevalecem em relação ao princípio da intervenção penal mínima, justificando a intervenção do Estado por meio do Direito Penal.

O tipo penal previsto no art. 41-C guarda relação com o crime de corrupção passiva e criminaliza a conduta daquele que solicita ou aceita, para si ou terceiro, “vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”.

Trata-se de crime próprio, que pode ser cometido por qualquer ator do universo esportivo que tenha a possibilidade de, a partir de um ato pessoal, alterar ou falsear o resultado de competição ou evento desportivo.

É um crime doloso, cujo tipo subjetivo é constituído pela vontade consciente do agente de “solicitar ou aceitar” a vantagem ou promessa de vantagem.

É, ainda, crime formal, que se consuma com a mera solicitação ou aceite da vantagem indevida, sendo que o efetivo recebimento representa mero exaurimento da conduta delitiva.

Em sentido oposto, no art. 41-D, que pode ser relacionado com o crime de corrupção ativa, criminalizou-se a conduta daquele que dá ou promete “vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva ou evento a ela associado”.

É crime comum, que pode ser cometido por qualquer indivíduo que pratique qualquer um dos verbos-núcleo do tipo penal em referência. O autor imediato do delito é o aliciador, o sujeito que entra em contato com o indivíduo que atuará para alterar ou falsear o resultado esportivo. Caberá, notadamente, a imputação, ainda, ao autor mediato: o mentor intelectual que possui domínio do fato e em favor de quem age o autor imediato, que poderá ser, por exemplo, um apostador que encomendou a manipulação do resultado de uma partida a fim de se beneficiar economicamente.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo de dar ou prometer vantagem patrimonial visando a manipulação de um evento esportivo.

O delito previsto no art. 41-D é um crime comissivo, de mera conduta e instantâneo, que se consuma no momento em que a promessa de vantagem é levada ao conhecimento do agente que poderá atuar para alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva ou evento a ela associado. Ou seja, para a consumação do delito, não é necessário que o atleta, treinador ou árbitro aceite o quanto prometido ou, ainda, que o resultado seja efetivamente manipulado.

Finalmente, no art. 41-E, tipificou-se a ação daquele que frauda ou contribui para que se fraude, por qualquer meio ou qualquer forma o resultado de competição esportiva ou evento associado, a despeito da ausência de obtenção ou de promessa de vantagem pelos agentes.

Consoante registra Cezar Roberto Bitencourt, fraudar significa “usar artifício, ardil ou qualquer meio enganoso a fim de induzir ou manter alguém em erro[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]. Nesse esteio, trata-se de delito que pode ser cometido por qualquer pessoa que tenha a possibilidade de atuar para, por meio da utilização de elemento de dissimulação, fraudar o resultado de competição esportiva ou evento associado.

Os três tipos penais referidos, que não podem ser imputados na modalidade culposa, preveem em si a pena privativa de liberdade de reclusão, de 2 a 6 anos. Os três dispositivos penais têm, ainda, em si, uma unicidade de sujeito passivo, eis que quaisquer uma das condutas vitimará a coletividade, que crê na imprevisibilidade inerente ao desporto.

Além da pena corpórea, aqueles que se envolvem em concertos de manipulação de resultados também estão sujeitos às penalidades previstas nas normas desportivas.

Sobre as infrações e sanções desportivas, o saudoso professor Marcílio Krieger ensina que a “infração é, pois, qualquer violação ou desobediência aos bens jurídico-desportivos”[5]. O autor destaca, dentre os bens jurídico-desportivos tutelados pelas infrações previstas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o fair play e o respeito ao adversário e ao público, princípios protegidos pelos tipos infracionais sobre os quais discorreremos a seguir.

Pois bem. No art. 240 do CBJD tipificou-se a infração daquele que alicia “atleta autônomo ou pertencente a qualquer entidade desportiva”.

Aliciar, segundo o dicionário Michaelis[6], significa seduzir, subornar. À vista disso, é possível concluir que na seara jus desportiva, o verbo “aliciar” abrange a conduta daquele que seduz um atleta visando persuadi-lo a atuar de maneira contrária à normativa desportiva vigente.

O autor da prática estará sujeito às penas de “multa, de R$100,00 (cem reais) a R$100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de sessenta a cento e oitenta dias”. Ademais, previu-se no parágrafo único que a entidade desportiva coautora também estará sujeita à penalidade pecuniária de multa de cem a cem mil reais.

No art. 241 do CBJD previu-se a penalidade de “multa, de R$100,00 (cem reais) a R$100.000,00 (cem mil reais), e eliminação” àquele que dá ou promete “qualquer vantagem a árbitro ou auxiliar de arbitragem para que influa no resultado da partida, prova ou equivalente”, bem como ao intermediário (parágrafo único, inciso I), que facilita a ação, e ao árbitro e ao “auxiliar de arbitragem que aceitarem a vantagem”.

Por sua vez, no art. 242 do CBJD está prevista sanção a quem direta ou indiretamente dá ou promete “vantagem indevida a membro de entidade desportiva, dirigente, técnico, atleta” ou a qualquer indivíduo que exerça emprego, cargo ou função, “diretivos ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva”, em entidades de administração do desporto ou ligas, “tais como, dirigentes, administradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica”.

Da leitura do dispositivo, verifica-se que de maneira ampla pretendeu-se abarcar a conduta daquele que promete vantagem indevida a qualquer pessoa natural que possa afetar o resultado de uma disputa esportiva.

Ademais, também está tipificada a conduta daquele que atua “de modo prejudicial à equipe que defende”,deliberadamente. A utilização da expressão “deliberadamente” visa proteger aquele que, ainda que atue de boa-fé acabe por prejudicar a sua equipe, por exemplo, conferindo pontuação à equipe adversária ou cometendo um pênalti.

Conforme estabelecido no art. 243 do CBJD, o autor da infração está sujeito a pena de “multa, de R$100,00 (cem reais) a R$100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias”.

No § 1º previu-se a figura qualificada do tipo infracional, que impõe penalidade mais gravosa nas hipóteses em que a conduta é praticada “mediante pagamento ou promessa de qualquer vantagem”.

No § 2º anteviu-se a tipificação da conduta do “autor da promessa ou da vantagem” que ficará sujeito à penalidade de eliminação, além de multa de cem a cem mil reais.

Finalmente, no art. 243-A, estabeleceu-se, especificamente, como infração disciplinar a atuação “de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente”, determinando-se a penalidade de multa de cem a cem mil reais, além de “suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação”.

Verifica-se que o caput não impõe como condicionante para punição a concreta manipulação do resultado da partida, mas a mera atuação contrária à ética desportiva. Caso o resultado da partida seja, efetivamente, falseado, a disputa poderá ser anulada e as penas serão agravadas, nos termos do parágrafo único do dispositivo normativo.

Nas palavras do eminente e saudoso professor Álvaro Melo Filho, são duas das funções da Justiça Desportiva: “contribuir para a integridade, equilíbrio e regularidade nas competições desportivas, salvaguardando a correta disputa sem manipulações[7] e “resguardar a imprevisibilidade ou imponderabilidade do resultado das partidas (‘incertitude sportive’) pela necessidade de preservar o caráter aleatório das disputas, sem comprometer a pureza e autenticidade dos resultados[8].

É, pois, irrefutável a possibilidade e a necessidade da Justiça Desportiva resguardar a integridade desportiva, tipificando, investigando, processando e punindo os indivíduos que perpetram as infrações mencionadas.

Para além do quanto previsto nas searas da Justiça Penal e da Justiça Desportiva, há de se destacar que os regramentos específicos de Comitês e Federações Internacionais preveem graves sanções ao indivíduo que se envolva na prática nefasta da manipulação de resultados.

É o que está previsto, por exemplo, no âmbito do Movimento Olímpico, no Código do Movimento Olímpico para a Prevenção da Manipulação de Resultados[9]; do futebol (art. 18 do Código Disciplinar da FIFA[10] e no art. 29 do Código de Ética da entidade[11]); do voleibol (art. 21 das Regulações Disciplinares da FIVB[12]); do tênis (Tennis Anti-Corruption Program 2020[13]); dentre outros.

Todas essas previsões normativas institucionais têm em comum a pena máxima, qual seja, a gravíssima sanção de banimento vitalício do esporte.

Embora trate-se de penalidade de relevante magnitude, a seriedade da violação justifica a medida. Isso porque, ao se retirar o fator “imponderável” de uma partida esportiva, perde-se, por completo, a essência do esporte. Afinal, conforme leciona Álvaro Melo Filho, o desporto tem como postulados inafastáveis: a “integridade, o equilíbrio e a regularidade das competições” e a “imprevisibilidade ou imponderabilidade do resultado[14].

Finalmente, é mister salientar que a manipulação de resultados adquiriu status de matéria de direito público internacional[15], desde que foi objeto da Convenção do Conselho da Europa sobre a manipulação de competições esportivas (Council of Europe Convention on the Manipulation of Sports Competitions)[16], também conhecida como Convenção de Macolin, vigente desde 1º de setembro de 2019.

A Convenção Internacional, que já foi ratificada pela Itália, Noruega, Suíça, Ucrânia, Moldova e Portugal, tem a finalidade de prevenir, detectar e sancionar a manipulação nacional ou transnacional de competições esportivas internacionais; assim como de promover a cooperação nacional e internacional entre as autoridades públicas interessadas.

Trata-se do único instrumento internacional vinculativo que recomenda a instituição de programas preventivos e a obrigatoriedade de se reportarem casos de manipulação de competições desportivas.

O brevíssimo panorama normativo traçado demonstra a relevância que tem sido dedicada à matéria em âmbito internacional.

É irrefutável que a transparência, o jogo limpo e imprevisível, não apenas resguardam os atletas, as entidades desportivas e as competições, mas asseguram a própria existência do desporto. Afinal, o jogo manipulado esvazia por completo a ideia do esporte, de modo que a relevância da prevenção da manipulação de resultados, em vetor oposto, iguala-se à importância do desporto em si.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos Autores deste texto.


¹ Advogado, Mestre em Direito Desportivo pela Universidade de Lérida e INEFC de Barcelona, Vice-presidente da Federação Paulista de Futebol, Presidente do Conselho Fiscal do Comitê Paralímpico Brasileiro.

² Advogada especializada em Direito Penal Econômico e Compliance. Procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol/SP.

³ Disponível em <https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016801cdd7e>.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte especial 5. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 279.

[5] KRIEGER, Marcilio Cesar Ramos. A Justiça Desportiva e os Princípios Disciplinares – Infrações e seus tipos. In. Brasil. Ministério do Esporte. Código Brasileiro de Justiça Desportiva: comentários e legislação: em defesa da ética e da qualidade do esporte. Brasília: Assessoria de Comunicação, 2004, p. 80.

[6] Disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=aliciar.

[7] MELO FILHO, Álvaro. Novo CBJD: marcos jurídicos e destaques. São Paulo, 2009, p. 8.

[8] Idem.

[9] https://stillmed.olympic.org/media/Document%20Library/OlympicOrg/IOC/What-We-Do/Protecting-Clean-Athletes/Competition-manipulation/Codigo-para-a-prevencao-da-manipulacao-de-resultados.pdf.

[10] 18 Manipulation of football matches and competitions

1. Anyone who directly or indirectly, by an act or an omission, unlawfully influences or manipulates the course, result or any other aspect of a match and/or competition or conspires or attempts to do so by any means shall be sanctioned with a minimum five-year ban on taking part in any football-related activity as well as a fi ne of at least CHF 100,000. In serious cases, a longer ban period, including a potential lifetime ban on taking part in any football-related activity, shall be imposed.

2. If a player or official engages in behaviour described in paragraph 1, the club or association to which the player or official belongs may be sanctioned with the forfeiting of the match in question or may be declared ineligible to participate in a different competition, provided the integrity of the competition is protected. Additional disciplinary measures may be imposed.

3. Persons bound by this Code must cooperate fully with FIFA at all times in its efforts to combat such behaviour and shall therefore immediately and voluntarily report to the secretariat of the Disciplinary Committee any approach in connection with activities and/or information directly or indirectly related to the possible manipulation of a football match or competition as described above. Any breach of this provision shall be sanctioned with a ban of at least two years on taking part in any football related activity and a fi ne of at least CHF 15,000.

4. The Disciplinary Committee shall be competent to investigate and adjudicate all conduct on and off the fi eld of play in connection with the manipulation of football matches and competitions.

[11] 29 Manipulation of football matches or competitions

1. Persons bound by this Code are forbidden from being involved in the manipulation of football matches and competitions. Such manipulation is defined as the unlawful influencing or alteration, directly or, by an act or an omission, of the course, result or any other aspect of a football match or competition, irrespective of whether the behaviour is committed for financial gain, sporting advantage or any other purpose. In particular, persons bound by this Code shall not accept, give, offer, promise, receive, request or solicit any pecuniary or other advantage, on behalf of himself or a third party, in relation to the manipulation of football matches and competitions.

2. Persons bound by this Code shall immediately report to the Ethics Committee any approach in connection with activities and/or information directly or indirectly related with the possible manipulation of a football match or competition as described above.

3. The Ethics Committee shall be competent to investigate and adjudicate all conduct within association football that has little or no connection with action on the field of play. The competence of the FIFA Disciplinary Committee remains reserved.

4. Violation of this article shall be sanctioned with an appropriate fine of at least CHF 100,000 as well as a ban on taking part in any football-related activity for a minimum of five years for a violation of par. 1 and a minimum of two years for a violation of par. 2. Any amount unduly received shall be included in the calculation of the fine.

[12] 21. BETTING AND MANIPULATION OF RESULTS

21.1 The conduct described in Appendix B, Articles B.2.1.1 and B.2.1.2, shall be sanctioned as a major offence, subject to the specific provisions set out below.

21.2 NFs are liable with respect to their official representatives, and clubs with respect to their teams, for any conduct of their members that damages or could damage the integrity of matches and competitions, or aims to provide any party with an unfair advantage in the ranking.

21.3 An NF or club declared responsible for such actions shall be sanctioned with forfeiture of the match results of their respective team, withdrawal of all ranking points earned through these matches and suspension for up to two (2) years from all national and international Competitions.

21.4 Individual persons found responsible for a violation under this Article shall be sanctioned with a fine of a minimum of CHF 50,000 and a suspension from participation in any official activity within the sphere of the FIVB at national, continental and world-wide level for a period between five (5) years and a life ban.

[13] https://www.tennisintegrityunit.com/storage/app/media/Education/Rules/TACP_Rules_English.pdf

[14] MELO FILHO, Nova Lei Pelé: Avanços e Impactos. Rio de Janeiro: Ed.Maquinária: 2010, p. 24.

[15] VILLOTE, Jean-François., KILLY, R. La manipulation des compétitions, objet du droit international public, Jurisport, 2014, 145, 41-44. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4834718.

[16] Disponível em https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016801cdd7e

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