Negócios do futebol: TMS, Clearing House, transparência e outros mecanismos contra a lavagem de capitais

Gustavo Normanton Delbin¹

Mariana Chamelette²

Membros Filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

Desde o final do século XX, o esporte, em especial o futebol, vem experimentando, com cada vez mais intensidade, o fenômeno da globalização. A transformação nas relações internacionais desportivas não apenas trouxe vantagens ao esporte, mas também o expôs as fragilidades sociológicas e humanas, dentre as quais, a possibilidade de sua utilização para o cometimento de delitos.

Nesse contexto, que implica inexoravelmente em maior facilidade na circulação de valores, pretende-se destacar no presente artigo o fato de que as transações de atletas no futebol podem ser utilizadas por organizações criminosas, ao redor do mundo, para a lavagem de dinheiro[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][3], bem como se almeja, ainda, apontar o que tem sido feito a fim de que tal prática seja coibida.

Inicialmente, como premissa, há de se ter em vista que a lavagem de dinheiro é delito previsto no art. 1º da Lei nº 9.613/98, que tipifica a conduta daquele que oculta ou dissimula “a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Ou seja, a lavagem de dinheiro é o mecanismo ilícito por meio do qual os valores resultantes de um crime antecedente têm a sua origem dissimulada de modo a serem reintegrados à economia formal com aparente licitude.

O futebol, conforme estudo realizado pelo Grupo de Ação Financeira – GAFI, organização intergovernamental instituída com a finalidade de promover políticas globais contra a lavagem de dinheiro, é apontado como um dos setores mais vulneráveis à utilização por organizações criminosas para a lavagem de dinheiro[4].

Na citada pesquisa, tal entidade destacou que essa circunstância decorreria dos seguintes fatores: (i) o futebol é um mercado de fácil penetração; (ii) há complicadas relações entre os stakeholders; (iii) a gestão, no geral, carece de profissionalismo; (iv) a legislação sobre a estruturação do esporte é heterogênea entre diferente nações; (v) há vultuosas quantias em circulação no mercado; (vi) não há razoabilidade na avaliação das quantias envolvidas; e (vii) muitos clubes e atletas encontram-se em situação de vulnerabilidade econômica.

Dentre outros contextos de risco, o GAFI salientou que as transações de atletas fazem parte da vulnerabilidade do esporte. Isso porque, não apenas grande parte das operações financeiras ocorrem em países nos quais não há rigorosa fiscalização sobre transações financeiras, mas também, conforme registramos em artigo anterior, “estimar o valor exatamente adequado para a comercialização dos direitos de um esportista – assim como aferir o preço de uma obra de arte ou de uma performance artística – é algo inexequível[5].

Ainda no estudo do GAFI, foram descritos casos concretos de lavagem de dinheiro e as tipologias inerentes a eles, como investidores anônimos dispostos a alocar recursos, mantidos em paraísos fiscais, em clubes de futebol com dívidas ou em situação irregular para adquirir jogadores de futebol; e agentes de atletas que agem como cúmplices em atividades de lavagem de capitais.

A entidade destacou, ainda, que à época da realização do estudo, haveria ausência de transparência nos acordos de transações de atletas e que os pagamentos de tais valores, em regra, eram efetuados em diversas parcelas por meio de transferências bancárias internacionais em favor de diferentes beneficiários, o que também favoreceria a lavagem de dinheiro.

No entanto, há que se notar que desde a realização do estudo, muitos foram os esforços empreendidos pelas entidades do futebol com a finalidade de transformar esse cenário e tornar a indústria deste esporte um terreno infértil para a lavagem de capitais.

Nessa toada, há de se verificar que, atualmente, em que pesem as transferências profissionais de atletas sejam reguladas por um conjunto complexo de regulamentos estabelecidos pelos entes desportivos nacionais e internacionais, tais regras estão sujeitas a um alto grau de padronização estabelecido pela FIFA – Fédération Internationale de Football Association – em seus regulamentos (Regulations on the Status and Transfer of Players – RSTP)[6].

Ademais, há de se ter em vista que, há aproximadamente uma década, todas as transferências internacionais de atletas do futebol devem ser registradas por meio de um programa eletrônico da FIFA denominado Transfer Matching System – TMS[7]. O Transfer Matching System foi projetado para assegurar que as autoridades do futebol recebam maiores informações e detalhes sobre as transferências internacionais de atletas, de modo a aumentar a transparência de cada uma das transações[8].

Cada uma das transações financeiras deve ser inserida no sistema, de forma a assegurar transparência e rastreabilidade do dinheiro movimentado. Ao mesmo tempo, o sistema exige que os players envolvidos garantam que a transação inserida seja entre clubes filiados, com agentes registrados, referente a um contrato de atleta real e não a um jogador fictício, que está meramente sendo utilizado para o cometimento de atividades ilícitas, como a lavagem de dinheiro[9].

Outro relevante (e excelente) sinal de que a entidade máxima do futebol tem atuado de forma a prevenir a ocorrência de lavagem de dinheiro no futebol, refere-se ao fato de que, mais recentemente, a FIFA deu os primeiros passos na constituição de sua Clearing House (em tradução livre, Câmara de Compensação), por meio da qual a entidade pretende centralizar e cruzar dados de todas as transações de atletas, identificando os fluxos financeiros envolvidos.

Esta Clearing House funcionará como uma entidade apartada, mas sob controle da FIFA e, por meio dela, serão processados os pagamentos referentes aos mecanismos de solidariedade, a título de indenização por formação e do valor da transferência em si[10].

Contudo, não apenas ela servirá a garantir que o dinheiro pago pelo novo clube seja distribuído corretamente aos clubes, mas servirá para assegurar que as transações se deem em conformidade com os regulamentos financeiros nacionais e internacionais, incluindo, notadamente, as normas de combate à lavagem de dinheiro[11].

Em âmbito nacional, há de se salientar que, na relevante reforma legislativa à Lei de Lavagem de Dinheiro levada a efeito por meio da Lei nº 12.683/2012, o Brasil incluiu no rol de gatekeepers[12] com os quais o Estado compartilha a tarefa de coibir tal prática criminosa as “pessoas físicas ou jurídicas que atuem na promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transferência de atletas[13].

A fim de regulamentar tal dispositivo, em 2018, o, à época denominado Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, publicou a Resolução nº 30, por meio da qual se estabeleceram os procedimentos a serem observados por tais pessoas físicas e jurídicas e sobre as quais falamos detalhadamente em artigo publicado na última edição da Revista da Academia Nacional de Direito Desportivo[14].

Ademais, a própria Confederação Brasileira de Futebol possui um sistema centralizado de registros de transferências, que é acompanhado e utilizado pelos Clubes e pelas Federações Estaduais. Nele, o clube contratante ou os clubes envolvidos na transação[15] devem informar os valores envolvidos nos contratos, a forma de transferência e o meio de pagamento. Por essa medida, torna-se possível a transparência e rastreabilidade do montante circulado, o que se mostra medida salutar a obstaculizar a circulação de capital de origem ilícita.

Outro fator que também impõe óbices às negociações fraudulentas no futebol é o controle, interno e externo, exercido pelos próprios órgãos de fiscalização dos clubes, tais como os conselhos de administração ou de gestão, os comitês de finanças e de orçamento, os conselhos fiscais, além de seus próprios associados, que tem conhecimento das movimentações, das entradas e saídas contábeis, aprovam contas e balanços, observando o cumprimento dos princípios de transparência financeira e administrativa, de moralidade na gestão e da responsabilidade social além do acompanhamento externo exercido pela APFUT por exemplo, e nos termos das Leis nºs 9.615/1998, 10.671/2003 e 13.155/2015.    

Nesse sentido, não obstante existam notórios casos em todo o mundo[16], nos quais os negócios do esporte tenham sido associados à lavagem de dinheiro, não se pode deixar de enaltecer que esforços vêm sendo empreendidos no futebol a fim de se refreá-la. Afinal, à luz do interesse público inerente ao futebol, é interesse de todos que o esporte seja cada vez mais limpo.


¹ Advogado, Mestre em Direito Desportivo pelo INEFC Barcelona e Universidade de Lérida, Vice-Presidente de Registros, Transferências, Filiação e Licenciamento da Federação Paulista de Futebol, Presidente do Conselho Fiscal do Comitê Paralímpico Brasileiro, Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo, da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP e Coordenador da Revista Brasileira de Direito Desportivo.

² Advogada especializada em Direito Penal Econômico, Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, do Conselho Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, da Comissão de Prerrogativas e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Coordenadora do projeto Educação para Cidadania no Cárcere do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD.

³ Disponível em <http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/ML%20through%20the%20Football%20Sector.pdf>.

[4] Idem.

[5] DELBIN, Gustavo Normanton; CHAMELETTE, Mariana. O combate à lavagem de dinheiro na transação de atletas à luz da Resolução nº 30 emanada pelo COAF. In Revista Academia Nacional de Direito Desportivo, ano 3, nº 5, jan-jun/2018, p. 156-163.

[6] HARRINGTON, Peter; ANDREWS, Matt. Off Pitch: Football’s financial integrity weaknesses, and how to strengthen them. HARVARD, 2016. Disponível em <https://bsc.cid.harvard.edu/files/bsc/files/cid_wp_311.pdf>.

[7] Disponível em < https://www.lawinsport.com/topics/regulation-a-governance/item/your-guide-to-fifa-s-transfer-matching-system>.

[8] Idem.

[9] Disponível em < https://www.fifa.com/about-fifa/who-we-are/legal/tms/>.

[10] SICA, André; MIRANDA, Alexandre. Os novos rumos no sistema de transferências no futebol. Disponível em <http://www.csmv.com.br/advogados-do-escritorio-estiveram-presentes-no-maior-congresso-anual-juridico-da-fifa-e-trazem-as-principais-mudancas-para-o-futebol-mundial-nos-proximos-anos/>

[11] Disponível em <https://img.fifa.com/image/upload/nwa4pef272hssbgcefpo.pdf>

[12] Rol de particulares com os quais o Estado compartilha a tarefa de coibir a reinserção na economia formal de valores oriundos de práticas criminosas com aparente licitude.

[13] Art. 9º, inciso XV, da Lei nº 9613/98.

[14] Op. cit. DELBIN, Gustavo Normanton; CHAMELETTE, Mariana.

[15] Evidentemente, na hipótese da existência de contrato prévio em vigor.

[16] A título exemplificativo, colacionam-se links para acesso a recentes matérias de periódicos internacionais nos quais se relatam casos concretos de suspeita de ocorrência de lavagem de dinheiro no universo do futebol: https://www.bbc.com/news/uk-england-northamptonshire-50951621 e https://www.bbc.com/news/world-europe-49662132.

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