Nem negros, nem brancos: “les Bleus” O futebol das diferenças

Tatiana Mesquita Nunes

Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD

O esporte é o Esperanto das raças.

Jean Giraudoux

(Le Sport, 1928)

 

15 de julho de 2018. Meio-dia, horário de Brasília. Dezoito horas, horário de Moscou. Final da Copa do Mundo de 2018. França e Croácia. Em cada canto do planeta, torcedores escolhem um lado e vibram a cada lance. Primeiro tempo: 2×1 para a França. VAR, pênalti, lances duvidosos. Segundo tempo: 4×2 para a França. “Les bleus” vencem a Copa do Mundo. A França torna-se bicampeã mundial. “Que coisa linda é uma partida de futebol”, pensamos, lembrando os versos do Skank.

Horas depois, as manchetes inundam os meios de comunicação: França campeã? Não para todos. A África ganhou a Copa do Mundo, afirmaram alguns. Nicolas Maduro disse, em aparição na TV nacional, que “ganhou a África, os imigrantes africanos que chegaram à França”. Se nas ruas de Paris, “les bleus” eram recebidos como heróis do povo francês, ao redor do mundo suas origens passaram a ser mais debatidas do que suas habilidades. Afirmava-se que, se dos 23 jogadores franceses, 14 possuíam descendência africana, o time não seria propriamente francês. Barack Obama saiu em defesa dos jogadores franceses, afirmando – na oportunidade em que celebrava-se o centenário do nascimento de Nelson Mandela – que, embora não tenham todos a aparência de “gauleses”, certamente são franceses.

A final da Copa do Mundo nos apresentou discussões além da falta duvidosa marcada em favor da França que levou ao primeiro gol. Levou-nos a discutir a questão migratória e a inserção dos imigrantes de várias origens em sua nova nação. Será o esporte, assim, essencialmente apolítico, como defendia Pierre de Coubertin, sendo qualquer discussão política relacionada ao esporte sujeita a manchar-lhe a natural neutralidade?

O “apolitismo” do esporte, construído por Coubertin como base do movimento olímpico – e incluído já na primeira Carta Olímpica (2.10) – é, para Pascal Boniface, uma formidável ambiguidade e uma incontestável contradição (J.O. Politiques, 2016, p.13). Uma competição em que participam diferentes nações, cada qual buscando sagrar-se vencedora, teria algo de político em sua essência. Entre o apolitismo de Coubertin e a ideia do esporte como ópio do povo, tratada por Boomberg, prefiro a concepção do esporte como fenômeno social e, como tal, incluído no bojo das questões enfrentadas pela sociedade. Não se trata, pois, de dar-lhe uso político – a exemplo da indesejada instrumentalização realizada nos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936 –, mas de reconhecer-se que há uma ínsita influência do esporte na sociedade.

O esporte evoluiu e evolui juntamente com a própria sociedade. Se na Grécia Antiga, as pancraces (espécie de luta de solo) tinham um nível de violência autorizado compatível com a própria violência social então existente, atualmente as regras da luta livre contemporânea não permitem tamanha violência (ELIAS; DUNNING. Sport et Civilisation, 1994). O esporte é, pois, o espelho do mundo. Os jogadores defrontam-se no campo e defendem suas nações sem as mazelas de uma guerra; os torcedores libertam suas emoções, em um relaxamento do autocontrole social. O esporte produz e reproduz comportamentos sociais e, em consequência, proporciona reflexões políticas – dada a indissociável relação entre política e sociedade, que aqui não iremos tratar.

A visibilidade proporcionada por uma partida de futebol – mais ainda a final da Copa do Mundo – permite a discussão de questões que, muitas vezes, acabam ficando longe da mesa de jantar familiar. A Assembleia Nacional francesa votou, há apenas algumas semanas, a exclusão do termo “raça” de sua Constituição. A votação unânime baseou-se no fato de que a ideia de raça já se encontra cientificamente superada, inexistindo tal classificação entre os seres humanos. Essa notícia – tão importante para a causa dos direitos humanos – não teve, no entanto, a repercussão que teve a diversidade de descendência da seleção francesa.

O fato da diversidade de descendência da seleção francesa ter sido objeto de tantas polêmicas demonstra que a questão está longe de se assentar na sociedade. A inserção social dos migrantes – e mesmo de seus descendentes – é ainda uma questão social complexa, sendo comum encontrar-se verdadeiros “guetos” nos quais convivem, sem uma real interação social com a nação eleita como novo lar. Soma-se à questão migratória a questão dos refugiados, que tantas discussões tem ensejado principalmente em solo europeu. A sociedade esconde-se, muitas vezes, atrás dos preconceitos. O esporte pode, por outro lado, ajudar a desnudá-los.

Os Jogos Olímpicos de 2016 já carregaram mensagem similar. O Comitê Olímpico Internacional – COI e a Organização das Nações Unidas criaram  a “equipe de refugiados”, a qual representava não os Estados onde nasceram os atletas, e sim os mais de 60 milhões de refugiados ao redor do mundo. A ideia, segundo o Presidente do COI, Thomas Bach, era “mandar uma mensagem de esperança aos refugiados no mundo”. Se ali buscou-se efetivamente passar uma mensagem, no caso francês essa mensagem é decorrente de uma natural composição de sua equipe, reflexo da atual composição da sociedade francesa.

“Nos différences nous unissent” (nossas diferenças nos unem). Esta frase, escrita sob o escudo do uniforme francês desde 2011, relaciona-se com o sentido que a própria bandeira francesa carrega em suas cores. Os valores liberdade, igualdade e fraternidade, construídos pela Revolução, dão coesão a esta França de diferenças. Se nos jogos pan-helênicos a unidade do povo grego era o que lhes proporcionava significação – permitindo-se a participação apenas dos homens gregos nascidos livres –, a Copa do Mundo de 2018 apresentou uma diferente mensagem. O “Vive la Republique”, enunciado pelo Presidente Macron, relaciona-se com a ideia de meritocracia, esforço e reconhecimento de cada um conforme sua própria dedicação, independentemente de considerações de cor, gênero ou origem.

O poder de penetração do esporte – veja-se que, em alguns locais do mundo, Pelé é figura mais conhecida do que Jesus Cristo – permite-lhe exercer, na sociedade, relevante função simbólica. Os esportistas não são apenas ídolos, são verdadeiros heróis. E se estes heróis têm características pessoais e origens tão diversas, mas empunham a mesma bandeira e pertencem à mesma nação, o esporte pode dar à sociedade uma demonstração positiva da igualdade teoricamente tão defendida, mas concretamente não tão efetivada.

A vitória francesa não foi apenas uma vitória da seleção, mas uma vitória da diferença. Para Pascal Boniface (“Le Temps”), a equipe francesa carrega uma mutação positiva. A mensagem inscrita na parte de trás do escudo pôde ser visualizada pela ação em campo. Independentemente de origem, cor ou qualquer outra característica pessoal, os jogadores constituíam uma só equipe: “les bleus”. Foi, sim, a França a campeã, a França de diferenças, unida sob os valores da Revolução.

Voltemos à frase com a qual iniciei esta Coluna: o esporte é o Esperanto das raças. Retomo-a para fazer-lhe uma correção. Se em 1928, falava-se em raças, hoje pode-se afirmar – em coesão com a evolução deste conceito – que o esporte é o Esperanto da humanidade, comunicando-lhe símbolos e valores independente de sua origem étnica, territorial ou cultural.

Tatiana Mesquita Nunes

Advogada da União

Auditora do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem

Mestranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo