Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Sempre que se discute a gestão de clubes de futebol, desde uma mera entrevista de um dirigente até nos debates que antecedem a elaboração de um projeto de lei, as questões desportivo-trabalhistas figuram entre os principais temas.
De fato, passeando pelas demonstrações financeiras dos clubes brasileiros, mesmo aqueles que estão posicionados na elite do futebol, verifica-se que o passivo trabalhista é extremamente relevante e impacta, de maneira contundente, na operação da equipe. Há quem diga, sobre os conflitos desportivo-trabalhistas, que se trata de uma particularidade brasileira, mas isso não é verdade.
Os conflitos são inerentes à natureza humana, em qualquer esfera, incluindo no âmbito laboral, especialmente pelo bem jurídico envolvido, que possui o condão de prover o sustento dos atletas e de suas famílias, inserido no conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana. Não é só no Brasil que as relações desportivo-trabalhistas entre clubes e atletas ocupam espaço importante no que diz respeito aos problemas jurídicos existentes no esporte.
Esse breve introito tem o objetivo de situar o leitor no tema que se pretende discutir brevemente nestas linhas, a saber, o artigo 14bis do FIFA Regulations on the Status and Transfer of Players[2] (“FIFA RSTP”).
O cotidiano do Direito Desportivo convida o profissional do Direito a lidar com casos que ultrapassam as fronteiras do seu país, envolvendo partes de diferentes nacionalidades, como, por exemplo, quando um atleta brasileiro celebra contrato de trabalho com um clube tailandês, a partir da atuação de um intermediário espanhol. Pensando, especificamente, na relação entre laboral clube e atleta, o que faríamos, na condição de advogado do jogador, se o clube tailandês passasse a atrasar os seus salários?
Fosse uma relação entre atleta brasileiro e clube brasileiro, quando o atraso de salários ou direitos de imagem, total ou parcial, atingisse dois meses, o jogador poderia se recusar a competir, por força do artigo 32 da Lei nº 9.615/98, a Lei Pelé. Após três meses de atrasos, o trabalhador poderia se valer do artigo 31 da Lei Pelé para obter o reconhecimento da rescisão indireta do contrato especial de trabalho desportivo, ficando livre para se transferir para outro clube, do Brasil ou do exterior, além de cobrar as multas aplicáveis à espécie. Pelo artigo 114 da Constituição Federal, a judicialização de um caso como esse encontraria abrigo na Justiça do Trabalho.
E o que fazer, na condição de advogado daquele atleta brasileiro, do exemplo acima, se o clube tailandês começasse a atrasar os seus salários? Como se pode supor, não seria a Justiça do Trabalho do Brasil a ouvir os reclamos do trabalhador, e tampouco seria apropriado ter que se valer de um sistema de resolução de litígios tailandês. Realmente, a sistemática é outra.
Com 211 associações nacionais que a compõem, a FIFA não se sustentaria sem uma regulamentação que pudesse ser aplicável a todo futebol organizado, de maneira sistemática, oferecendo, ainda, um sistema de resolução de disputas. Aparece, então, o já mencionado FIFA RSTP, que disponibiliza regras para disciplinar as transferências internacionais e as relações contratuais entre clubes e atletas, além de outros diversos temas.
E, para seguirmos na análise do caso apresentado exemplificativamente, o dispositivo do FIFA RSTP aplicável em caso de atraso de salários pelo clube tailandês em relação ao atleta brasileiro seria o seguinte:
Art. 14bis – Terminating a Contract with Just Cause for Outstanding salaries
- In the case of a club unlawfully failing to pay a player at least two Monthly salaries on their due dates, the player will be deemed to have a just cause to terminate his contract, provided that he has put the debtor club in default in writing and has granted a deadline of at least 15 days for the debtor club to fully comply with its financial obligation(s). Alternative provisions in contracts existing at the time of this provision coming into force may be considered.
Enquanto a Lei Pelé exige que o atleta tenha atrasos salariais pelo período de três meses ou mais para que possa pleitear a rescisão indireta, o artigo 14bis do FIFA RSTP estipulou que dois meses são suficientes para que o jogador possa considerar o contrato de trabalho rescindido por justa causa e seguir a sua carreira da maneira que melhor lhe convier. O procedimento, entretanto, é diferente daquele que estamos habituados quando as partes são todas brasileiras, tanto atleta, quanto clube.
Aqui no Brasil, o caminho para obter a liberação do jogador que tem os seus salários ou direitos de imagem atrasados por, no mínimo, três meses, seria a Justiça do Trabalho, por meio de reclamação trabalhista com pedido de tutela provisória de urgência, para célere obtenção da liberação do vínculo desportivo.
No sistema FIFA, por outro lado, não há que se falar em obtenção de uma liminar para liberar o jogador, ao passo que, dentro da sua sistemática, existe um procedimento definido pelo qual o jogador deve notificar o clube devedor, concedendo-lhe prazo de 15 dias para efetuar o pagamento dos dois ou mais meses de salários atrasados, por meio dos contatos oficiais da equipe. Se, após o transcurso dos 15 dias, o clube não efetuar o pagamento, o atleta poderá, então, considerar rescindido o contrato, por justa causa, nos exatos termos do artigo 14bis do FIFA RSTP.
A rescisão por justa causa em decorrência de atrasos salariais em âmbito internacional e, portanto, no sistema FIFA, também enseja sanções financeiras e, eventualmente, sanções desportivas aos clubes inadimplentes, as quais deverão ser objeto de reclamação apresentada ao FIFA Football Tribunal.
A despeito das diferenças de conteúdo e forma, enquanto o artigo 31 da Lei Pelé e a Justiça do Trabalho estão à disposição para a solução de conflitos envolvendo atrasos de salário e direitos de imagem nas relações entre atletas brasileiros e clubes brasileiros, o artigo 14bis do FIFA RSTP e o FIFA Football Tribunal se apresentam como ferramentas a serem utilizadas para a solução de litígios da mesma natureza, mas em dimensão internacional, no contexto dos inescapáveis conflitos inerentes às relações humanas, que não escolhem origem ou nacionalidade.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
[1] Mestrando em Direito Desportivo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, Mestre em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto Superior de Derecho y Economia – ISDE (Espanha), Pós-Graduado em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, Pós-Graduado em Direito Empresarial pela FGV, graduado pela FACAMP – Faculdades de Campinas, Participante do Programa de Negociação da Harvard Law School Executive Education, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Seção São Paulo, Conselheiro, Filiado e Colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD e Membro da Association Internationale des Avocats du Football – AIAF. Advogado Sócio de Brocchi e Souza Sociedade de Advogados.
[2] https://digitalhub.fifa.com/m/cb37201b05fe8f7/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-July-2022-edition.pdf
Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/2zpCuT66eWBS8hrgkSVTX7?si=moY8af4OS9uKXNUQrBO4fA