O CASO LASSANA DIARRA

ALEXANDRE DIAS BORTOLATO1

VITOR SILVA MUNIZ2

 

DA SÍNTESE DO CASO LASSANA DIARRA

De tempos em tempos, decisões judiciais são capazes de alterar paradigmas dentro da lex sportiva e das relações laborais em âmbito internacional. Há pouco menos de trinta anos, o caso do jogador belga Jean-Marc Bosman foi palco de um importantíssimo precedente na consolidação da livre circulação dos atletas no mercado europeu.

Recentemente, a livre circulação laboral envolvendo atletas na Europa voltou a ser tema. No dia 4 de outubro de 2024, foi o francês Lassana Diarra o atleta a protagonizar uma grande mudança, desta vez no Regulations on the Status and Transfer of Players (RSTP)3 da Federação Internacional de Futebol (FIFA), que deve impor um novo padrão às relações de trabalho sob o sistema associativo da entidade.

Desta feita, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), aplicando o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia4, julgou as disposições da FIFA quanto aos casos em que o atleta rescinde seu contrato sem justa causa.

Após reclamações públicas de Diarra sobre uma redução salarial na vigência de seu contrato com o Lokomotiv Moscou (alcunha do Futbolniy Klub Lokomotiv), o clube foi à Câmara de Resolução e Disputas da FIFA, que condenou o francês a pagar 10,5 milhões de euros ao clube, em decisão ratificada pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS).

Ocorre que nenhum clube quis assumir o débito e o atleta passou uma temporada sem exercer sua profissão, tendo inclusive deixado de ser contratado por um time belga, Sporting du Pays de Charleroi, já que a entidade máxima do futebol não isentou o clube do pagamento da multa.

Entendendo-se lesado, Diarra processou a FIFA e a Pro League, primeira divisão belga, pelo ocorrido, apresentando seu pedido perante o Tribunal de Comércio de Hainaut, tendo seu êxito questionado no Tribunal de Recurso de Mons, que, por sua vez, enviou o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

Em seu acórdão no processo C-650/225, a ser destrinchado nesta coluna, o TJUE deu razão a Lassana Diarra e deixou clara a contrariedade entre RSTP da FIFA e Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia:

“Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1) O artigo 45.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a regras adotadas por uma entidade de direito privado que têm como objetivos, designadamente, regulamentar , organizar e supervisionar o futebol ao nível mundial, e que preveem:

– primeiro, que o jogador profissional que é parte num contrato de trabalho, ao qual é imputada a resolução sem justa causa desse contrato, e o novo clube que o contrata na sequência desta resolução são solidária e conjuntamente responsáveis pelo pagamento da indemnização devida ao anterior clube que esse jogador representava e que deve ser fixada com base em critérios ora imprecisos ou discricionários, ora sem ligação objetiva à relação de trabalho em causa, ora desproporcionados;

– segundo, que, no caso de a contratação do jogador profissional ocorrer durante um período protegido ao abrigo do contrato de trabalho que foi resolvido, o novo clube incorre numa sanção desportiva que consiste na proibição de inscrever novos jogadores durante um determinado período, salvo se demonstrar que não incitou esse jogador a resolver o contrato em causa, e

– terceiro, que a existência de um litígio relacionado com essa resolução do contrato obsta a que a entidade nacional de futebol de que o anterior clube é membro emita o certificado internacional de transferência necessário à inscrição do jogador no novo clube, com a consequência de esse jogador não poder participar em competições de futebol em representação desse novo clube, a menos que se demonstre que essas regras, conforme interpretadas e aplicadas no território da União Europeia, não vão além do necessário para a prossecução do objetivo que consiste em assegurar a regularidade das competições de futebol interclubes, mantendo um certo grau de estabilidade nos plantéis dos clubes de futebol profissional.

2) O artigo 101. ° TFUE deve ser interpretado no sentido de que essas regras constituem uma decisão de uma associação de empresas que é proibida pelo n.° 1 deste artigo e que só pode beneficiar de uma isenção ao abrigo do n.° 3 do referido artigo se se demonstrar , através de argumentos e elementos de prova convincentes, que estão preenchidos todos os requisitos exigidos para esse efeito.”

 

DO REGULATIONS ON THE STATUS AND TRANSFER OF PLAYER (RSTP)

No centro da controvérsia que culminou no entendimento do TJUE de que a FIFA estaria violando as normas da União Europeia, estão o art. 17, nº 1, 2 e 4, o art. 9º, nº 1 e o ponto 8.2.7 do anexo 3, todos estes do RSTP .

O art. 17, nº 1 dispõe que, sendo um contrato resolvido sem justa causa, a parte que resolver o contrato deverá indenizar o outro polo do vínculo, sendo o valor baseado na legislação do país em questão, na especificidade do desporto e em critérios objetivos, como a remuneração e os benefícios devidos ao atleta, o tempo restante de vínculo, custos e despesas do clube e a vigência do período protegido.

O nº 2 do mesmo artigo prevê que o novo clube de um jogador condenado na indenização é solidária e conjuntamente responsável pelo adimplemento do valor . O dispositivo aponta que o crédito não pode ser cedido a terceiros.

O nº 4 estipula, para além da indenização, que “são aplicadas sanções desportivas a qualquer clube que se considere ter incorrido em incumprimento do contrato ou que se considere ter incitado o jogador a resolver um contrato durante o período protegido.”

Delicada é a previsão de que, salvo prova em contrário, presume-se que o novo clube tenha incitado a resolução, culminando na punição de impedimento da equipe de inscrever novos jogadores por dois períodos completos e consecutivos de inscrição, sendo inaplicáveis exceções e medidas provisórias para permitir tais inscrições.

É evidente que as determinações criam entraves para a livre circulação do atleta profissional de futebol.

O art. 9º, nº 1 do RSTP prevê que um jogador inscrito em uma federação somente migrará para outra com o recebimento de um certificado internacional de transferência(CIT), emitido pela federação anterior , sendo o procedimento de emissão descrito no ponto 8 do anexo 3. Ocorre que o ponto 8.2.7 estipula o que segue:

“A federação anterior não emitirá o CIT se o anterior clube e o jogador profissional estiverem em litígio contratual com base nas circunstâncias estipuladas no [ponto] 8.2, [n.°] 4b) do presente anexo. Neste caso, a pedido da nova federação, a FIFA pode adotar medidas provisórias em caso de circunstâncias excepcionais. […] Além disso, o jogador profissional, o anterior clube e/ou o novo clube têm direito a apresentar queixa junto da FIFA, em conformidade com o [artigo] 22. ° A FIFA decide então sobre a emissão do CIT e sobre eventuais sanções desportivas no prazo de sessenta dias. Em todo o caso, a decisão sobre sanções desportivas é tomada antes da emissão do CIT . A emissão do CIT não prejudica o direito à indemnização por resolução do contrato.”

É o CIT o instrumento que, no plano concreto, acaba por inviabilizar qualquer negociação transfronteiriça referente a um atleta que esteja lidando com um rompimento sem justa causa, especialmente sendo este litigioso. O dispositivo transcrito prevê a não emissão do CIT caso haja litígio contratual, de modo que a equipe que teve o contrato rescindido pode opor resistência à emissão do certificado. Portanto, o regulamento da FIFA rompe com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, como segue

 

DO TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA

Julgando a demanda de Lassana Diarra, o TJUE se baseou no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. O TFUE é um dos dois tratados que constituem o direito primário da União Europeia, conjuntamente com o Tratado da União Europeia.

Extrapolando as matérias econômicas, os tratados mencionados buscam imprimir um caráter político à integração europeia. Em trecho do preâmbulo do TFUE, afirma-se que os chefes de estado qualificados no início do documento estariam “FIXANDO como objetivo essencial dos seus esforços a melhoria constante das condições de vida e de trabalho dos seus povos”.

Neste contexto é que são redigidas as determinações dos arts. 45 e 101 do TFUE, que dão base à decisão referente ao caso Lassana Diarra.

O art. 45 do Tratado apresenta as garantias que seguem:

“Artigo 45.º(ex-artigo 39. º TCE)

1. A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na União.

2. A livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.

3. A livre circulação dos trabalhadores compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, o direito de:

a) Responder a ofertas de emprego efetivamente feitas;

b) Deslocar-se livremente, para o efeito, no território dos Estados-Membros;

c) Residir num dos Estados-Membros a fim de nele exercer uma atividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais;

d) Permanecer no território de um Estado-Membro depois de nele ter exercido uma atividade laboral, nas condições que serão objeto de regulamentos a estabelecer pela Comissão.

4. O disposto no presente artigo não é aplicável aos empregos na administração pública.”

Embora a Rússia, país do Lokomotiv Moscou, não seja um país-membro da União Europeia, o jogador é natural da França, Estado membro do grupo, sendo que o impasse envolveu sua ida ao Charleroi, clube belga igualmente submetido ao TJUE.

Assim, é evidente que a estipulação de uma multa rescisória de forma arbitrária e potencialmente desproporcional ao atleta que rescinde o contrato sem justa causa, a partir do momento em que esta se torna condicionante para que o profissional volte a laborar , ofende a teleologia exposta no preâmbulo da norma.

O art. 101, por sua vez, dispõe do seguinte modo:

“1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir , restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em:

a) Fixar , de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transação;

b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;

c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;

d) Aplicar , relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;

e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.

2. São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo.

3. As disposições no n. o 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis:

— a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas,

— a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e

— a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que:

a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objetivos;

b) Nem deem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa.”

Sob as premissas do art. 101, o TJUE entendeu que as disposições do RSTP , para além de atingirem a liberdade do atleta, violam o princípio de livre concorrência que rege a União Europeia, gerando nos entraves contratuais uma ferramenta nociva para que a concorrência transfronteiriça entre clubes se dê de forma saudável.

De acordo com o Tribunal, os jogadores de futebol representam recursos essenciais para a prática econômica dos clubes, de modo que não seria adequado privar tais equipes de acessar estes recursos, gerando um desequilíbrio técnico em favor dos times beneficiados pela situação de represamento dos recursos que são os jogadores.

 

DOS DESDOBRAMENTOS

Perante a posição adotada pelo TJUE, ainda que limitada a reconhecer ou afastar a legalidade das cláusulas impugnadas por Lassana Diarra, a FIFA se pronunciou oficialmente em seus meios de comunicação, comprometendo-se a rever as previsões do art. 17 do RSTP , o qual impõe a indenização pelo jogador quando da rescisão unilateral sem justa causa.

Além da previsão basilar mencionada, as apreciações referentes ao RSTP tratam também: (i) da estipulação arbitrária do valor indenizatório; (ii) da solidariedade do novo clube no pagamento do débito do jogador; e (iii) da suspensão de inscrição de atletas por duas janelas, especificamente quando a equipe incitar o profissional a encerrar seu contrato durante o período protegido de dois a três anos da assinatura.

No sentido de discutir tais disposições, a FIFA abriu uma plataforma para a colheita da opinião pública. A entidade máxima do futebol declarou estar aberta a ideias construtivas, nas palavras do diretor jurídico e de compliance da instituição, Emilio García Silvero.6

Assim, a comunidade jurídica internacional aguarda por inovações no RSTP em relação aos aspectos abordados pelo TJUE, tendo em vista o debate aberto pela FIFA acerca dos critérios para a estipulação das multas indenizatórias, bem como da circulação de atletas atletas na União Europeia.

1Alexandre Dias Bortolato é membro filiado do IBDD, titular do escritório Bortolato Advogados, formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (Municipal), pós-graduado em Direito Desportivo (IIDD/Unifieo).

2Vitor Silva Muniz é membro filiado do IBDD, advogado de Direito Desportivo do escritório Bortolato Advogados, formado em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, egresso do GEDiDe – UNESP e pós-graduando em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia da OAB.

3FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players (March 2023). Disponível em: <https://digitalhub.fifa.com/m/153157b40ca1dfd/original/Regulations-on-the-Status-and- Transfer-of-Pl ayers-March-2023-edition.pdf>. Acesso em: 18 de novembro de 2024.

4UNIÃO EUROPEIA. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A12016ME%2FTXT>. Acesso em: 18 de novembro de 2024.

5UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Segunda Seção. Acórdão. Processo C-650/22. Disponível em <https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsftext=&docid=290690&pageIndex=0&doclang=P T&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=961115>. Acesso em: 18 de novembro de 2024.

6 FIFA. FIFA opens global dialogue on article 17 of the Regulations on the Status and Transfer of Players. Disponível em: <https://inside.fifa.com/legal/football-regulatory/news/fifa-opens-global-dialogue-on-article-17-of-the-regulations-on-the-status-and-transfer-of-players>. Acesso em: 19 de novembro de 2024.

 

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos Autores deste texto.