O CONSELHO FISCAL NA SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL

O CONSELHO FISCAL NA SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL

Dilson Pereira Junior[1]

 

  1. Introdução.

 

A crise financeira enfrentada por clubes de futebol no Brasil ao longo das últimas décadas evidenciou as limitações do modelo associativo tradicional. O descontrole orçamentário, a fragilidade na gestão administrativa e a falta de mecanismos eficazes de fiscalização contribuíram para que muitos clubes acumulassem dívidas impagáveis, comprometendo sua competitividade e, em alguns casos, sua própria sobrevivência.

Foi nesse cenário que surgiu a Lei nº 14.193/2021, conhecida como Lei da SAF (Sociedade Anônima do Futebol). Inspirada por modelos internacionais de gestão esportiva, a legislação visa atrair investidores, profissionalizar os clubes, os quais vivem recheados de funções exercidas por abnegados, e oferecer um ambiente mais estável e transparente para a prática esportiva.

A Lei da SAF não cria o Conselho Fiscal, ela traz o órgão com outra roupagem: funcionamento permanente.

  1. Comparação com o Modelo Associativo.

 

A presença do Conselho Fiscal ganha ainda mais relevância ao se comparar com o modelo associativo tradicional, no qual a fiscalização frequentemente ocorria de forma espaçada – p. ex. reuniões trimestrais do Conselho Fiscal – e com caráter meramente reativo. Nesse modelo, a ausência de profissionais qualificados e de uma postura proativa levaram os Clubes à celebração de contratos de alto risco, descumprimento orçamentário e aumento exponencial do endividamento.

De fato, a Lei da SAF busca corrigir essas fragilidades por meio de uma governança mais robusta e disciplinada, promovendo transparência e controle. Por isso, tornou-se obrigatório o funcionamento do Conselho Fiscal nos termos do art. 5º.

O Conselho Fiscal, enquanto pilar desse novo modelo, assume um papel essencial na prevenção de subterfúgios administrativos, na identificação de situações de risco e na proteção dos interesses dos acionistas e da própria Companhia. Essa estrutura não apenas beneficia os investidores, mas também os torcedores, ao trazer maior estabilidade esportiva e financeira.

  1. Obrigatoriedade e Composição.

 

A Lei das S/A exige que toda sociedade anônima tenha a possibilidade de instituir um Conselho Fiscal com composição mínima de três membros efetivos e igual número de suplentes (artigo 161, § 1º, da Lei das S/A). Tal configuração mínima também deve ser observada pelas Sociedades Anônimas do Futebol.

Ao contrário de determinados tipos de Sociedades Anônimas, nas quais o Conselho Fiscal não tem funcionamento permanente, nas SAFs isso é regra. Ou seja, seu funcionamento é permanente (art. 5º, caput da Lei 14.193/21), ressaltando o papel dinâmico e preventivo que deverão ter os fiscais. Os membros do Conselho Fiscal devem agir nos limites das suas funções, emitindo pareceres e opiniões, sobretudo em situações de riscos, tais como: contratação de jogadores de alto valor, ajustes contratuais de longo prazo por altos valores com os atletas, celebração de contratos de alta repercussão financeira.

Bom ressaltar que o Conselho Fiscal, no exercício de suas funções, tem como responsabilidade exclusiva a análise dos aspectos financeiros das operações e decisões do Clube. Os membros do Conselho Fiscal não têm competência para intervir no juízo de oportunidade ou no mérito das questões tratadas, devendo se limitar à avaliação dos riscos financeiros envolvidos nas decisões e operações em curso. O Conselho Fiscal poderá, entretanto, sugerir medidas que visem mitigar os riscos financeiros identificados, auxiliando os demais órgãos do Clube na tomada de decisão informada, sem ultrapassar a sua esfera de competência.

Ademais, uma situação que muito aflige os torcedores é sobre o papel dos clubes numa SAF cuja maioria do capital social seja de investidores. Com efeito, os acionistas minoritários têm o direito de participar ativamente da fiscalização da gestão empresarial, assegurando transparência e controle.

Na prática, esse dispositivo ganha ainda mais relevância nas SAFs, especialmente em clubes tradicionais que passaram a adotar esse modelo, como Bahia, Vasco da Gama e Cruzeiro. Em operações estruturadas com investidores, esses clubes mantêm-se como acionistas minoritários com participações de, ao menos, 10% do capital social.

Por determinação da Lei das S/A (art. 161), em vista da omissão da Lei das SAFS, os acionistas minoritários que possuem ao menos 10% do capital votante ou 5% do capital total, têm a prerrogativa de indicar pelo menos um representante no Conselho Fiscal.

Não podemos olvidar que embora a Lei da SAF não estabeleça a remuneração, a Lei de S/A trata de que os fiscais sejam remunerados, estabelecendo limite pelo qual a remuneração não pode ser inferior a 10% da média da remuneração dos diretores, visando garantir a autonomia e independência do Conselho Fiscal.

Tal regra é de observância na Lei da SAF que prevê expressamente a aplicação subsidiária da Lei das S/A (art. 1º da Lei 14.931/2021).

  1. Atribuições e Deveres.

 

Na ausência de regulamentação específica pela Lei da SAF, as atribuições do Conselho Fiscal são regidas pelo artigo 163 da Lei das S/A, que lista as principais competências, incluindo: (a) fiscalizar os atos dos administradores e verificar o cumprimento dos deveres legais e estatutários, (b) emitir pareceres sobre balanços patrimoniais e demonstrações financeiras, (c) denunciar erros, fraudes ou crimes de que tiverem conhecimento ao Conselho de Administração ou à Assembleia Geral.

Essas competências tornam o Conselho Fiscal uma peça-chave para assegurar o cumprimento das obrigações financeiras e legais da SAF.

  1. Independência dos Membros.

 

Um ponto importantíssimo sobre a atuação dos membros do Conselho Fiscal é a independência de seus membros. Embora seja um órgão de deliberação colegiada, nada impede que, dentro das atribuições legais e estatutárias, o membro aja de forma isolada, sobretudo diante da inércia do colegiado, notadamente de seu presidente.

Assim, tal como dispõe o Código Civil e a Lei das S/A, cada membro do Conselho Fiscal atua como um sub-órgão. Isso reforça seu papel institucional e evita mecanismos de bloqueios sobretudo por uma maioria que tem opinião dissonante.

Em razão disso, bom esclarecer dois aspectos importantes:

O primeiro quanto ao voto dissidente. A independência dos membros do Conselho Fiscal é de tal forma que qualquer deles pode emiti voto dissidente para apreciação das contas e das demonstrações financeiras, e levar tal voto para apreciação da assembleia. Como esta não fica adstrita ao parecer do Conselho Fiscal, é perfeitamente cabível a existência de dois pareceres, cabendo a assembleia geral optar por qual delas, de acordo com  suas práticas e experiências; qual dos pareceres se extrai a melhor opinião conforme os interesses da Companhia. Podendo, ainda, ignorar os dois.

Isso porque a Assembleia Geral não está adstrita ao parecer do Conselho Fiscal, que serve de orientação e subsídio a votação, mas não é vinculante.

O segundo aspecto diz respeito a não vinculação dos membros do Conselho Fiscal aos acionistas que os indicaram, visto que não se trata de cargo de confiança, ao contrário do que ocorre nos demais órgãos. Os fiscais como não possuem qualquer subordinação os acionistas que os elegeram, devendo agir com imparcialidade e nos interesses da Companhia.

Em razão deste segundo aspecto, o magistral FABIO ULHOA COELHO sinaliza que “os fiscais não podem, por isso, ser substituídos ad nutum[2]. São causas de interrupção a renúncia, morte ou incapacidade do fiscal e a destituição pela Assembleia Geral, por descumprimento do dever. Assim é para que os membros do Conselho Fiscal possam desfrutar da indispensável autonomia no cumprimento de suas funções fiscalizatórias”[3].

 A Lei da SAF determina que os conselheiros fiscais não podem ter vínculo de subordinação com a diretoria ou os administradores, o que reforça sua independência na atuação (artigo 162, § 2º, da Lei das S/A).

Além disso, membros do Conselho Fiscal devem atender a critérios de idoneidade e não podem ser membros do Conselho de Administração da SAF, evitando conflitos de interesse.

Nesse sentido, além dos impedimentos previstos na Lei das S/A (art. 162, visto que se aplicam aos membros do Conselho Fiscal os mesmos impedimentos dos membros do Conselho de Administração)., a Lei da SAF é expressa sobre quem não pode figurar como membro do Conselho Fiscal: (a) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de outra Sociedade Anônima do Futebol; (b) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de clube ou pessoa jurídica original, salvo daquele que deu origem ou constituiu a Sociedade Anônima do Futebol; (c) membro de órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de entidade de administração; (d) atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente; (e) treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube, pessoa jurídica original ou Sociedade Anônima do Futebol; (f) árbitro de futebol em atividade; e (g) o empregado ou membro de qualquer órgão, eletivo ou não, de administração, deliberação ou fiscalização do clube ou pessoa jurídica original enquanto esse for acionista da respectiva Sociedade Anônima do Futebol.

  1. A Necessidade de um Regimento Interno.

Para garantir a eficiência de suas atividades, é indispensável que o Conselho Fiscal possua um regimento interno. Embora a Lei da SAF não faça referência, a Lei das S/A aborda sobre a sua elaboração. A sua falta não restringe ou impede a atuação dos fiscais, cuja competência e funções estão bem claras na Lei das Sociedades Anônimas.

Mas é de bom grado a sua elaboração, com previsões sobre periodicidade e condução das reuniões, forma de convocação, forma de realização, votos e forma de apuração, requisição de informações financeiras – possibilitando o exercício de fiscalização e investigação –, escolha e funções do presidente do órgão, dentre outras situações, que visam trazer organização interna e tornar o relacionamento entre os membros, e entre estes e os demais órgãos, mais saudável e profissional, evitando desencontros, tudo visando a governabilidade da Companhia.

Bom salientar que da Lei do PROFUT (Lei 13.155/15) – uma das normas que procuraram moralizar o futebol – obrigou a constituição de Conselho Fiscal e obrigatoriedade do seu regimento interno, com os mesmos objetivos já assinalados.

  1. Por que o Conselho Fiscal é um Órgão Obrigatório?

 

Como vimos, a obrigatoriedade do Conselho Fiscal está prevista na legislação como forma de assegurar a governança corporativa e a transparência das SAFs. Em um ambiente marcado por histórico de má gestão financeira nos clubes, sua presença contribui para: (a) reduzir riscos de fraudes e desvio de recursos; (b) proteger os direitos dos acionistas minoritários; (c) fortalecer a credibilidade das SAFs perante o mercado e os torcedores; (d) evitar a celebração de contratos fraudulentos ou simulados, prejudicando a reputação, transparência e finanças das SAFs dentre outras.

  1. Conclusão.

Dado o histórico de comportamento da indústria do futebol, principalmente no Brasil, o Conselho Fiscal é mais do que um requisito legal: é uma peça-chave para a governança e a transparência nas SAFs. Sua composição independente, o uso de regimentos internos e o direito de investigação fortalecem a confiança de acionistas e torcedores na administração do clube.

À medida que as SAFs se consolidam no cenário esportivo, o fortalecimento do Conselho Fiscal deve ser uma prioridade para garantir que o futebol brasileiro alcance um novo patamar de organização e profissionalismo.

Portanto, o Conselho Fiscal vai além de ser um mecanismo formal. Ele atua como um pilar da governança corporativa, promovendo a transparência e assegurando que as decisões estratégicas tomadas pela administração estejam alinhadas não apenas com os objetivos econômicos, mas também com os valores e os interesses da Companhia e de seus torcedores.

“*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do(a) Autor(a) deste texto.”

[1] Advogado (UFBA, 2003). Pós-Graduado em Processo Civil (2006, Podium/Jorge Amado/BA). Especialista em Direito Imobiliário (2012, Unifacs/BA) e Direito Desportivo (2014, Unifia/SP). Ex-Conselheiro e Diretor Jurídico/Advogado Esporte Clube Vitória. Membro Filiado ao IBDD.

[2] Demissão ad nutum significa destituição imotivada. Tal pode ocorrer com os membros da diretoria, os quais, portanto, a qualquer momento podem ser exonerados das suas funções. Ao contrário, como visto, os membros do Conselho Fiscal somente podem ser destituídos de forma justificada e mediante votação pela assembleia geral.

[3] Lei das Sociedades Anônimas Comentada. 2024: 752.