Rafael Teixeira Ramos
Coordenador regional do IBDD para o Estado do Ceará
INTRODUÇÃO
O trabalho do atleta profissional de futebol é regido por regime jurídico próprio (lei especial) desde a edição da Lei n. 6.354 de 1976. A Lei n. 9.615 de 1998 (nomeada Lei Pelé) detém capitulação específica sobre o trabalho desportivo em geral, embora suas disposições sejam mais direcionadas ao jogador de futebol e haja uma dificuldade de regulação quanto aos trabalhadores das demais modalidades esportivas.
Desde a publicação da Lei Pelé em 1998, o contrato de trabalho dos atletas profissionais de futebol restou regido por duas leis especiais: Lei n. 6.354 de 1976 parcialmente recepcionada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e derrogada pela própria Lei n. 9.615 de 1998 até o advento da Lei n. 12.395 de 2011 que abrrogou expressamente toda a Lei n. 6.354/76 (também conhecida como Lei do Passe).
1 A APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA
A Legislação Geral Trabalhista sempre foi aplicada ao contrato de trabalho desportivo em pontos vitais e ordinários de uma relação laboral, tais como: assinatura da CTPS, FGTS, higiene, saúde e segurança no trabalho, etc. Maiores dificuldades da aplicação subsidiária sempre ocorreu em temas que são realmente peculiares à atividade trabalhista dos jogadores. Com a recente Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467 de 2017), induvidosamente, algumas de suas disposições serão pautas discutíveis de subsidiariedade às especificidades do contrato laboral dos atletas profissionais.
Assim como o revogado art. 28 da Lei n. 6.354/76 (Lei do Passe), o art. 28, § 4º da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé) descreve: “Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:…” (grifos do autor).
Mesmo que a Lei Pelé não previsse a aplicação subsidiária da legislação trabalhista, na ausência de norma específica, o operador do direito deve buscar a solução no regime jurídico mais próximo da realidade concreta daquela relação que a lei lacunosa regula. Como o contrato de trabalho desportivo regula uma relação trabalhista, ainda que seja especial, o diploma paradigma para reparar a situação lacônica normativa deve ser a legislação comum trabalhista ou as demais leis especiais trabalhistas, a menos que estas sejam inoperantes, superadas, não efetivas ou desprovidas de justa medida.
Depois de analisadas as normas gerais e especiais laborais, permanecendo a dificuldade de aplicá-las por graus ontológicos ou axiológicos, é que se deve perseguir os demais ramos do direito para o encontro de uma solução mais adequada. (A respeito deste tema, de maneira lapidar e sucinta, aborda SCHIAVI, Mauro. A aplicação supletiva e subsidiária do código de processo civil ao processo do trabalho. In: MIESSA, Élisson (org.). O novo código de processo civil e seus reflexos no processo do trabalho. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 87.)
2 CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE E CONTRATO ESPECIAL DE TRABALHO DESPORTIVO
A Reforma Trabalhista introduziu em nosso ordenamento jurídico a figura do contrato de trabalho intermitente. O novo § 3º, do art. 443, da CLT dispõe: “Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.” (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017).
Adita o neófito art. 452-A, caput, da reformada CLT: “O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.” (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017).
Depreende-se das disposições normativas acima, que o contrato de trabalho intermitente foi adotado no Brasil sem maiores restrições quanto à atividade empresarial e laboral, excluindo apenas a profissão dos aeronautas. A partir disso, pode surgir a seguinte indagação: já que não houve delimitações específicas quanto ao tipo de empresa e de trabalho, o contrato de trabalho intermitente poderia ser utilizado para reger o contrato de trabalho dos atletas?
A Lei Pelé regulamenta a atividade laboral dos atletas como regime especialíssimo, até denomina “Contrato Especial de Trabalho Desportivo” (art. 28, caput, Lei n. 9.615/98). Partindo do citado art. 28, § 4º, é incompatível a aplicação subsidiária do contrato de trabalho intermitente ao trabalho esportivo, que possui espécie contratual sui generis com prazo determinado, cláusulas próprias de rescisão, formulário padrão de dados expedidos pela entidade de administração do desporto (no caso do futebol, CBF), não pode ser acumulável com outro da mesma espécie (trabalho desportivo), está sob a dualidade normativa (a trabalhista e a desportiva), pode albergar em seu bojo a cessão temporária e é submetido a registro nas federações que organizam a modalidade esportiva (arts. 28, 30, 34, I, 38 a 40, da Lei n. 9.615/98). (Apoio em BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho: peculiaridades, aspectos controvertidos e tendências. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 97-110). Sustenta João Leal Amado:
O regime jurídico do contrato de trabalho desportivo deverá, por conseguinte, adequar-se aos fins de ambos os ordenamentos, buscando a melhor combinação possível entre a tutela do trabalho e a tutela do jogo, entre a promoção dos interesses do trabalhador e a preservação do interesse da competição, entre a proteção da pessoa do fator produtivo/praticante desportivo e a salvaguarda da qualidade do produto/espectáculo desportivo. (AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 77-78.)
O contrato de trabalho intermitente não pode ser utilizado subsidiariamente para o trabalho esportivo, exatamente porque não há lacuna normativa, ao contrário, a Lei Pelé regulamenta pormenorizadamente a espécie contratual adequada, que só permite ao atleta competir nos campeonatos oficiais da modalidade se cumpridas as formalidades especiais, registrado nas federações e inscritos nas competições.
Também não há lacuna ontológica e axiológica, uma vez que os termos normativos atendem ao resguardo mínimo do trabalhador desportista e da atividade desportiva. Ao inverso, se adotado o contrato intermitente para a seara laboral desportiva, se poderia minar o objeto maior da atividade esportiva, que é a integridade da competição e na dimensão econômica as cláusulas rescisórias dificilmente funcionariam como fluxo de capital dos clubes.
Interessante notar que, pela natureza temporal das competições, poderia ser presumível a possibilidade de aplicação subsidiária, porém, os próprios empregadores desportivos não aceitariam perder seus principais jogadores a “custo zero”, sem os abonos das cláusulas rescisórias, por menores que fossem os clubes e as competições profissionais que eles participassem.
As federações esportivas não consentiriam assistir à degradação das suas competições, desequilíbrios com fluxos de transferências de jogadores em qualquer instante da temporada, violando suas “janelas de inscrições”, a perda da força e a qualificação mínimas de seus certames competitivos, afastando o seu principal consumidor, os torcedores.
Consoante a Reforma Trabalhista ser bem explicita ao subscrever “… independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador…” (art. 443, § 3º, CLT), é possível interpretar pela utilização do contrato de trabalho intermitente em algumas profissões regulamentadas ou categorias diferenciadas que sejam precariamente regidas por leis especiais laborais.
No entanto, não se concebe permitido extrair hermenêutica subsidiária de aplicação do contrato de trabalho intermitente ao contrato de trabalho dos atletas, sendo este uma espécie contratual bem complexa, submetida a especificidades de uma legislação particular que envolve a imbricação da Lei Laboral com a Lex Sportiva.
Acentua João Leal Amado: “Trata-se, então, de articular a tradicional protecção do trabalhor/desportista com a adequada tutela do desporto/competição desportiva, visto que, para o ordenamento jurídico estadual, estes são dois valores de extrema importância, cuja conciliação se mostra indispensável.” (Id. Ibid., 2002, p. 80.)
A despeito da abertura geral contida no art. 443, § 3º, da CLT para o contrato de trabalho intermitente, excetuando a categoria dos aeronautas, recorde-se que a Lei n. 13.467/17, no ponto do trabalho intermitente, altera o texto consolidado que trata de normas gerais sobre trabalho, continuando a incidir o art. 2º, § 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”.
Portanto, para o trabalho dos jogadores, a Lei Pelé permanece vigorando e por ser a Lei Especial afasta o contrato de trabalho intermitente que é inaplicável ao regimento específico do contrato de trabalho dos atletas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, o contrato de trabalho intermitente é inviável para reger o trabalho dos atletas, pois há Lei Especial que conjuga normas complexas laborais e a lex sportiva, não restando lacuna normativa. Também inexiste lacuna ontológica ou axiológica, já que a fórmula contratual adotada na Lei Pelé se amolda bem ao objeto principal da atividade esportiva, a preservação das competições, sem descurar dos direitos trabalhistas dos desportistas.
O contrato de trabalho intermitente provocaria uma corrosão na atividade esportiva, a ameaça sobre o controle da imparcialidade, equilíbrio competitivo, retratado nos limites de prazos para transferências, exigências de inscrições, fragilidade econômica sem a regência das cláusulas de rescisão. Ademais, não faria sentido aplicar subsidiariamente uma espécie contratual intermitente a outra espécie contratual que já permite uma contratação mínima de três meses (art. 30 da Lei n. 9.615/98) e uma contínua renovação a prazo determinado.
Rafael Teixeira Ramos
Mestre em Ciências Jurídico-Laborais e pós-graduação em Direito do Desporto Profissional, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal; membro efetivo titular da cadeira n. 48 da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD); Coordenador Regional do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD); professor de pós-graduação em Direito; advogado.
REFERÊNCIAS
AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho: peculiaridades, aspectos controvertidos e tendências. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008.
SCHIAVI, Mauro. A aplicação supletiva e subsidiária do código de processo civil ao processo do trabalho. In: MIESSA, Élisson (org.). O novo código de processo civil e seus reflexos no processo do trabalho. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.