O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NO ÂMBITO DO STJD DO FUTEBOL: “PODE ISSO, ARNALDO”?

Gustavo Favero Vaughn[1]

.I.

Este artigo, como seu título sugere, busca responder a seguinte pergunta: cabe aos auditores do STJD do Futebol exercer o controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos dos processos desportivos? Naturalmente, não se pretende aqui esgotar o exame de tal tema neste curto espaço, mas, sim, apresentar considerações introdutórias a esse respeito, com o intuito de incentivar o debate acerca da relação entre a Justiça Desportiva e a jurisdição constitucional, no específico contexto dos processos julgados pelo STJD do Futebol. Ao que consta, essa abordagem (sem dúvidas mais acadêmica do que prática) é inédita até o momento.

.II.

A Justiça Desportiva insere-se no contexto dos métodos alternativos (ou adequados) de resolução de controvérsias.[2] Essa forma de justiça privada, que tem previsão expressa no art. 217 da Constituição Federal, é regulamentada por lei, a exemplo da Lei Pelé,[3] e pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (“CBJD”), do qual se extrai a estrutura da Justiça Desportiva (art. 3º), consubstanciada no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (“STJD”), nos Tribunais de Justiça Desportiva e nas Comissões Disciplinares constituídas perante esses órgãos julgadores.

O STJD do Futebol, em particular, é formado por um Tribunal Pleno e, atualmente, por seis Comissões Disciplinares, além da Procuradoria. Tanto o Tribunal Pleno quanto as Comissões Disciplinares são compostas por auditores que julgam os processos submetidos à Justiça Desportiva, aplicando o direito aos casos concretos, sempre “empenha[ndo]-se no sentido da estrita observância das leis”, conforme disposto no art. 19, II, do CBJD.

Os auditores funcionam como juízes privados, por assim dizer: eles avaliam os fatos e as provas juntadas aos autos e subsomem esses fatos e essas provas às normas cabíveis, sendo a Constituição Federal a lei maior que impera nesse contexto (princípio da supremacia constitucional)[4], com eficácia normativa (princípio da força normativa da Constituição)[5], como diferente não poderia ser. Disso decorre que o processo desportivo submetido à competência do STJD do Futebol, consoante o art. 24 do CBJD, ainda que pertença a uma justiça privada, desvinculada da estrutura do Poder Judiciário, deve observar o regramento constitucional vigente.

Com efeito, os auditores têm ampla liberdade para aplicar as disposições do CBJD e resolver conflitos desportivos à luz de princípios constitucionais muito caros ao ordenamento jurídico nacional, tais como os princípios do contraditório, da ampla defesa, da motivação, do devido processo legal, da proporcionalidade, da razoabilidade, da imparcialidade, da independência, da legalidade, entre outros listados no rol exemplificativo do art. 2º do CBJD.[6]

É certo que os auditores têm autoridade para decidir controvérsias desportivas de maneira vinculante às partes, em caráter definitivo – por exemplo, não há necessidade de homologação judicial das decisões proferidas pelo STJD do Futebol. Às infrações disciplinares que forem reconhecidas pelos auditores, após a realização do processo decisório referenciado acima, serão aplicadas as penas previstas no art. 170 do CBJD, que vão de mera advertência até a exclusão de campeonato ou torneio. Por sinal, vale destacar que o não cumprimento (ou a demora no cumprimento) das decisões da Justiça Desportiva é passível de punição, inclusive pecuniária, nos termos do art. 223 do CBJD.

Assim, é lícito dizer que os auditores do STJD do Futebol, tal como os árbitros na arbitragem comercial,[7] exercem jurisdição.

.III.

Para responder à pergunta indicada no título deste artigo, não se pode deixar de examinar, ainda que brevemente, o modelo de controle de constitucionalidade adotado pelo direito brasileiro.

Do ponto de vista subjetivo, o Brasil encampa apenas o modelo difuso de controle de constitucionalidade, no qual a questão constitucional é uma prejudicial lógica,[8] dado que não se admite que o objeto do processo desportivo seja a constitucionalidade em si de uma norma. Já se disse que o “sistema brasileiro não é de controle concentrado, pois admite que qualquer juiz de primeiro grau deixe de aplicar a lei que reputa inconstitucional diante de qualquer ação,” de modo que o “controle de constitucionalidade brasileiro é difuso, mas, além de poder ocorrer na forma incidental no caso concreto, pode ser realizado via ação direta proposta no Supremo Tribunal Federal.”[9]

O controle difuso pode ser exercido por todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro, inferiores ou superiores, municipais, estaduais ou federais, por ocasião do julgamento das causas de suas respectivas competências. Nesse caso, “a inconstitucionalidade não é declarada em tese e, sim, em processo regularmente instaurado, ao ser decidida uma pretensão.”[10]

No que toca à forma, o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade pode ser considerado misto, na medida em que prevê os controles por via incidental e por via principal. O controle incidental é desempenhado por juízes em geral no julgamento de casos concretos. A declaração incidental de inconstitucionalidade dá-se no exercício normal da função jurisdicional. Trata-se do controle “exercido quando o pronunciamento acerca da constitucionalidade ou não de uma norma faz parte do itinerário lógico do raciocínio jurídico a ser desenvolvido.”[11]

À primeira vista, os conceitos de controle difuso e controle por via incidental podem ser confundidos, mas são distintos: o controle difuso é exercível por qualquer juiz ou tribunal ao decidir lides (aspecto subjetivo); por seu turno, o controle por via incidental é realizado na apreciação de casos concretos (aspecto modal). A ressalva tem razão de ser, pois, no Brasil, tais conceitos “se superpõem, sendo que desde o início da República o controle incidente é exercido de modo difuso.”[12]

.IV.

Feitas essas considerações, entende-se que os auditores do STJD do Futebol, no exercício de sua função adjudicatória na esfera privada, têm poderes para exercer o controle difuso de constitucionalidade, de forma incidental nos processos desportivos por eles julgados. Se os árbitros podem proceder dessa maneira na arbitragem comercial, como amplamente já se defendeu,[13] não há motivos, salvo melhor juízo, para afastar esse poder dos auditores. Porque os auditores são dotados de jurisdição e aplicam o direito à espécie mediante a interpretação do direito brasileiro, inclusive da Constituição Federal, é imperioso que eles possam controlar a constitucionalidade de normas – em casos excepcionais, é claro.

Admitir que os auditores exerçam controle difuso de constitucionalidade, declarando a inconstitucionalidade quando assim for necessário, como aqui se propõe, insere-se na concepção de multiplicidade de intérpretes da Constituição, que se impõe no atual estágio do constitucionalismo brasileiro.

Essa concepção foi idealizada por Peter Häberle, para quem o juiz constitucional não mais interpreta isoladamente no processo constitucional, pois são muitos os participantes do processo. Häberle ensina que “todas as forças pluralistas públicas são, potencialmente, intérpretes da Constituição”, com antecedência à “interpretação constitucional ‘jurídica’ dos juízes.[14]

Nessa ordem de ideias, os auditores da Justiça Desportiva devem ser vistos como mais um intérprete da Constituição, competindo-lhes zelar e dar concretude à força normativa e à supremacia constitucional no curso do processo desportivo. Do contrário, novamente aqui invocando a lição de Peter Häberle, “significaria um empobrecimento ou um autoengodo” restringir a hermenêutica constitucional “aos intérpretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado”, excluindo os auditores de tal mister.[15]

No âmbito da Justiça Desportiva, os auditores não só podem, como devem exercer o controle difuso de constitucionalidade quando as circunstâncias do caso assim determinarem. De fato, a realização do controle difuso – seja por provocação de um clube de futebol, por exemplo, seja ex officio por algum auditor, ainda que não seja o relator – é um poder-dever dos auditores, tendo em conta que a Justiça Desportiva está inexoravelmente ligada aos parâmetros constitucionais. Por isso, não há possibilidade de os auditores se escusarem de sobreporem as normas constitucionais a qualquer outra quando do julgamento de uma demanda desportiva.

À luz da Constituição Federal, a declaração de inconstitucionalidade na Justiça Desportiva, cuja eficácia será limitada às partes, deverá observar a regra da reserva de plenário constante de seu art. 97 (full bench), que tem a seguinte redação: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”[16]

Isso, em conjunto com a Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “[v]iola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte,” e em atenção aos arts. 948 a 950 do Código de Processo Civil, permite concluir que, no âmbito do STJD do Futebol, a declaração de inconstitucionalidade somente poderá ser realizada pelo Tribunal Pleno, desde que haja maioria absoluta de votos, a despeito de tal competência não estar presente no art. 25 do CBJD.

Ou seja: se a questão de inconstitucionalidade for suscitada na sessão de julgamento de uma Comissão Disciplinar, caberá ao relator do respectivo processo submeter tal questão ao Tribunal Pleno, que dará encaminhamento à apreciação da alegação de inconstitucionalidade como bem entender, podendo rejeitá-la ou acolhê-la. Em qualquer hipótese, o julgamento do processo será retomado na Comissão Disciplinar partindo da premissa de que a norma colocada em xeque é constitucional ou inconstitucional, a depender da posição do Tribunal Pleno do STJD do Futebol. A toda evidência, a palavra final sobre a questão da inconstitucionalidade, que caberá ao Tribunal Pleno, deverá ser respeitada pela Comissão Disciplinar e vinculará apenas as partes daquele específico processo, como é de praxe no modelo de controle difuso brasileiro.

De outra sorte, não haverá necessidade de o relator submeter a questão de inconstitucionalidade ao Tribunal Pleno se tal questão surgir em um julgamento do próprio Tribunal Pleno. Por óbvio, nessa circunstância caberá ao Tribunal Pleno apreciar diretamente a inconstitucionalidade alegada, declarando-a se houver maioria absoluta de seus membros votando nesse sentido. Do contrário, a inconstitucionalidade será rechaçada pelo Tribunal Pleno, que prosseguirá com o julgamento do processo.

A regra da reserva de plenário será dispensada se, e somente se, os auditores (neste caso, seja das Comissões Disciplinares, seja do Tribunal Pleno) realizarem a interpretação conforme a Constituição, pois, [q]uando se aplica a interpretação conforme, não existe uma decisão de inconstitucionalidade.”[17] De fato, [p]or não consistir numa decisão de inconstitucionalidade, uma vez que na interpretação conforme a norma não é declarada inconstitucional, e, por isso, não é uma lei inválida e, sim, constitucional, essa forma de decisão não acarreta a necessidade de se suscitar o incidente de inconstitucionalidade quando praticada pelos tribunais inferiores.”[18]

Também haverá dispensa da aludida regra na hipótese do parágrafo único do art. 949 do CPC, segundo o qual os “órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.” Na verdade, não caberá aos auditores do STJD exercerem controle difuso de constitucionalidade sobre uma norma a respeito da qual o STF já decidiu ser constitucional ou não.

[1] Auditor da 4ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol. Mestre em direito pela USP, com LL.M. pela Columbia Law School. Membro do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Advogado. O autor agradece as sugestões feitas pelo Professor Georges Abboud e a leitura do texto por Roberto Barracco e por Gabriel Teixeira. Eventuais erros e imprecisões são de responsabilidade exclusiva do autor.

[2] “A Justiça Desportiva instituída pela CF/88 é um meio extrajudicial de resolução de conflitos esportivos revestidos de natureza autônoma, através do qual os clubes, associações e demais partícipes do mundo associativo desportivo expõem seus anseios e litígios. Também fazem parte desses métodos a conciliação, a mediação e a arbitragem.” (SIMÕES, André Galdeano. Justiça desportiva: muito além do julgamento por mero esporte. São Paulo: Edições 70, 2023, p. 83).

[3] Lei n. 9.615/1998, Art. 50. A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidos nos Códigos de Justiça Desportiva, facultando-se às ligas constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições.

[4]Essa supremacia é que fundamenta a validade das normas infraconstitucionais e requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com eles. Exige mais, pois omitir providências necessárias à aplicação de normas constitucionais constitui também conduta desconforme com o princípio da supremacia”. (SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo brasileiro: evolução institucional. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 124).

[5]Ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia. Essa constatação leva a uma outra indagação, concernente às possibilidades e aos limites de sua realização no contexto amplo de interdependência no qual esta pretensão de eficácia encontra-se inserida”. (HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 15-16).

[6] RAMOS, Carlos Henrique. Direito processual desportivo: o uso da arbitragem para resolução de conflitos no futebol. Curitiba: Editora CRV, 2019, p. 22-23.

[7] VAUGHN, Gustavo Favero. Arbitragem comercial e controle de constitucionalidade. São Paulo: Almedina, 2022, capítulo 2.4.

[8] ROSSONI, Igor Bimkowski. Coisa julgada e controle de constitucionalidade. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 134.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme. A zona de penumbra entre o STJ e o STF: a função das Cortes Supremas e a delimitação do objeto dos recursos especial e extraordinário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 27.

[10] MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, vol. 1. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense,1962, p. 308.

[11] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 8 ed. São Paulo: Saraiva,2019, p. 72.

[12] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 72.

[13] Citem-se, por todos, os seguintes trabalhos nesse sentido: VAUGHN, Gustavo Favero. Arbitragem comercial e controle de constitucionalidade. São Paulo: Almedina, 2022, capítulo 3; ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 1.038; MALUF, Fernando Del Picchia. O controle de constitucionalidade na arbitragem: um estudo à luz da experiência no direito estrangeiro. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Econômicas Internacionais) – Faculdade de Direito, PUC-SP, São Paulo, 2020, p. 110; BONIZZI, Marcelo José Magalhães; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Declaração de inconstitucionalidade pelo árbitro: vedação ou dever? In: MUNIZ, Joaquim de Paiva et al. Arbitragem e administração pública: temas polêmicos. Ribeirão Preto: Migalhas, 2018, p. 400.

[14] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 41.

[15] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 34.

[16]1. A inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estatal só pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta da totalidade dos membros do tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob pena de absoluta nulidade da decisão emanada do órgão fracionário (turma, câmara ou seção), em respeito à previsão do art. 97 da Constituição Federal. 2. A cláusula de reserva de plenário atua como condição de eficácia jurídica da própria declaração jurisdicional de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público, aplicando-se para todos os tribunais, via difusa, e para o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, também no controle concentrado (CF, art. 97 e SV 10).” (STF, ARE 791932, rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 11/10/2018).

[17] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1.066.

[18] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1.066.