O Direito e os direitos dos agentes desportivos

O Direito e os direitos dos agentes desportivos

por José Manuel Meirim – Assistente da Faculdade de Motricidade Humana e assessor do gabinete do Procurador-Geral da República.

No passado dia 7 de Fevereiro iniciou-se em Lisboa o julgamento relativo ao despedimento do treinador de futebol, Manuel José.
Os factos remontam a 1997 quando, na sequência de um resultado desportivo negativo, o Sport Lisboa e Benfica entendeu dispensar os serviços desse técnico desportivo.
A «chicotada psicológica», expressão comummente utilizada no futebol e que mais não representa, bem vistas as coisas, do que um despedimento, ficou a dever-se – rezavam as crónicas jornalísticas subsequentes ao acto rescisório do contrato – à incapacidade técnica do treinador Manuel José.
Em suma, o treinador do Benfica terá sido despedido com a invocação de justa causa (?) por parte do clube desportivo, fundamento esse suportado, por assim dizer, na insuficiência técnica, na “inaptidão” do treinador, razão directa dos maus resultados desportivos alcançados.
Independentemente do percurso processual do caso agora em tribunal, este episódio habilita-nos a trazer ao conhecimento do leitor (ou a relembrar-lhe) um pequeno número de reflexões.
É este, pois, e bem modesto, o objecto do espaço que agora ocupamos.
Já vai bem longe o tempo em que a ligação entre o Desporto e Direito nos surgia como algo de estranho, como um binómio que aparentemente não tinha justificação.
Hoje, mesmo em Portugal, já não questiona essa conjugação.
Tenha-se a visão que se tiver sobre o verdadeiro alcance do que poderemos designar – aqui apenas por facilidade de expressão – por Direito do Desporto, são já apreciáveis, em número e em qualidade, os contributos que a doutrina e a jurisprudência têm dado para o aprofundar do estudo das relações jurídicas que se estabelecem, directa ou indirectamente, a partir da multiplicidade de facetas de que se reveste o fenómeno desportivo.
E nem se julgue que essas reflexões remontam a um passado recente. Relembremos, desde logo, o trabalho de Constantino Fernandes que, em 1946, publicou o seu livro ” O Direito e os Desportos”.
Ora, uma das razões que mais influenciaram o desenvolvimento desta leitura jurídica do desporto, tem a ver precisamente com a situação de debilidade em que se encontravam os diversos agentes desportivos, quando confrontados com as organizações desportivas em que se encontravam inseridos, maxime com as federações desportivas.
Os agentes desportivos são, desde logo, cidadãos de corpo inteiro, não devendo ver diminuídos drasticamente os seus direitos, só por que se realizam enquanto pessoas ou profissionais no domínio da actividade desportiva.
As relações, de diferente índole, que se estabelecem na vivência desportiva, encontram-se, pois, protegidas pelo Direito, não sendo mais possível, nos tempos que correm, o uso e abuso de práticas discricionárias.
E se aos tribunais não é ainda solicitada uma intervenção, mais frequente e decisiva no apurar de direitos e deveres, tal deve-se em grande parte ao facto da consciência – da existência de direitos – ainda se encontrar a ganhar um espaço cultural.
Alexandre Peics treinava o Portimonense quando, por motivo de doença, teve de ausentar-se para Lisboa, tendo-se feito substituir com o consentimento do clube.
Em finais de Setembro de 1953 ( tão longe e tão perto, como se verá), dado como clinicamente apto para o desempenho das funções de treinador, regressou a Portimão e ao «comando técnico» da equipa.
O Portimonense veio a despedir Alexandre Peics a 31 de Dezembro de 1953 (três meses após o seu retorno), invocando justa causa, em particular, que o treinador ” após o seu regresso de Lisboa, não exerceu satisfatoriamente as suas funções, tendo revelado manifesta inaptidão para os serviços que se obriga a prestar”.
Tendo claudicado na primeira instância, o Portimonense recorreu.
O Supremo Tribunal Administrativo (que na altura tinha uma secção social), contudo, veio a negar provimento a este recurso do clube. Na apreciação da prova, formou a convicção necessária para não alterar a decisão da primeira instância.
Transcrevam-se algumas considerações tecidas a respeito da prova testemunhal:
“Quanto ao depoimento da maior parte das testemunhas inquiridas na comarca de Portimão, no que respeita à aptidão profissional do Treinador Peics, além de se revelarem divergentes, constituem apenas uma apreciação de jogadores e adeptos do Portimonense sobre a conduta técnica do autor, que, a ter-se revelado pela forma como se pretende fazer crer, teria tornado completamente impossível a manutenção, durante mais de três meses, de um contrato cuja execução não poderia deixar de se reflectir perniciosamente na preparação dos jogadores e no justo desejo de o clube ascender no campeonato nacional de futebol a uma categoria superior”.
De resto, dificilmente se poderia compreender que o autor tivesse revelado como treinador do Portimonense uma manifesta inaptidão para o exercício do cargo quando testemunhas categorizadas, como o Dr. Constantino Fernandes, antigo presidente do Belenenses, o treinador Augusto Silva e quase a totalidade dos clubes nacionais onde prestou serviço depuseram ou fizeram declarações escritas no sentido da sua competência profissional.”
O legislador tem dado sucessivos passos para a obtenção de respostas que levem em linha de conta a especialidades do fenómeno desportivo.
Esse actuar legislativo levanta mesmo a dúvida se estamos perante uma crescente intervenção do Estado no viver desportivo ou se, pelo contrário, essa postura dos poderes públicos, não representa por si mesma, o reconhecimento de uma individualidade normativa própria do desporto.
Seja como for, incontestável é o facto de assistirmos a uma inflação normativa pública sem precedentes no domínio da actividade desportiva.
As relações laborais, face ao patente profissionalismo desportivo, não podem ficar alheias a esse movimento.
É assim, que contamos com um regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, constante da Lei nº 28/98, de 26 de Junho.
Mas para os treinadores, que normas regem os seus contratos de trabalho com os clubes ou sociedades desportivas?
Existe algum regime especial, ou aplica-se o regime laboral comum?
A esta e outras questões com ela relacionadas, pretende dar resposta o artigo de Albino Mendes Baptista, recentemente publicado na Revista do Ministério Público, Ano 20º, Outubro- Dezembro de 1999, nº 80, pp.129-139.
O autor, nesta oportuna reflexão, chega à conclusão que o regime aplicável aos contratos entre treinadores e clubes terá de ser o regime laboral comum, embora entenda que o mesmo se revela desadequado e pouco compatível com a natureza específica dessa relação contratual.
Pressente-se, pois, a necessidade de uma intervenção legislativa, que à semelhança do ocorrido com os praticantes desportivos, dote o universo jurídico-desportivo público de uma resposta que corresponda a uma exigência social já claramente sentida.
Desporto, tribunais, doutrina jurídica e legislação, tópicos de um espaço crescente de reflexão que não deve deixar indiferentes, por mero efeito de preconceitos desajustados à mutação social, os homens do Direito.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *