Caio Medauar¹ e Raquel Lima²
Membros Filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
Em 1º de janeiro de 2021, entrou em vigor uma nova versão do Código Mundial Antidopagem³, e consequentemente, um novo Código Brasileiro Antidopagem[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], trazendo algumas novidades, dentre elas a classificação das substâncias de abuso e a aplicação de períodos de inelegibilidade mais brandos.
É comum ouvir nos fóruns de direito desportivo que o novo CMA é uma “novatio legis in mellius”, sob o argumento de ser mais favorável ao atleta infrator que sua versão anterior, especialmente nos casos envolvendo substâncias de abuso, e ainda prever possibilidades de aplicação da lei mais suave, sob a égide do princípio “lex mitior, o que abordaremos mais adiante. Mas será que a norma é realmente mais benéfica?
A criação do “sistema WADA-AMA[5]”, em 1999, buscava a implementação de um programa de combate ao doping bastante específico, baseado em um Código comum para todos, com padrões internacionais de testes, laboratórios e normas de boas práticas, êxito o qual sempre dependeu da conscientização de que tais normas compõem a lexsportiva internacional, ou seja, as normas próprias do desporto, não estando sujeitas a interferências de outras áreas do direito.
Por tal razão, temos a adoção do termo “substância de abuso” e não “droga social”, como decantado em defesas nos casos de dopagem, em clara intenção de se criar institutos específicos de direito desportivo e do ordenamento antidopagem, não susceptível a interpretações diversas.
O novo CMA define no artigo 4.2.3 as substâncias de abuso, para fins de aplicação do Artigo 10, que estabelece sanções a atletas de esportes individuais, como as substâncias proibidas[6] identificadas especificamente como de Abuso na Lista Proibida[7] devido ao frequente abuso delas na sociedade, fora do contexto esportivo.
O primeiro ponto de destaque é que não será qualquer droga social considerada como substância de abuso, sendo prerrogativa da WADA, conforme disposto no artigo 4.3.3[8], através de seu comitê responsável pela elaboração da Lista Proibida, determinar quais serão dentre as substâncias proibidas, consideradas de abuso e, se for o caso, a estipulação de limite de quantidade na amostra.
Neste sentido a Lista Proibida de 2021[9], publicada anualmente, enquadrou apenas quatro substâncias proibidas em competição[10] como de abuso: Cocaína (Classe S.6a: Estimulantes Não-Especificados);Metilenedioximetanfetamina–“MDMA/Ecstasy” (classe S.6B: Estimulantes Especificados), Diamorfina – “Heroína” (S.7: Narcóticos) e Tetrahidrocanabinol – “THC´S” (classe S.8: Canabinóides), não enquadrando uma categoria específica, mas a “qualidade” da substância nas eventuais possibilidades de redução de pena com a comprovação da circunstância de abuso.
A WADA, para a aplicação do Artigo 4.2.3 do Código, através da NOTA DE ORIENTAÇÃO ÀS ORGANIZAÇÕES ANTIDOPAGEM[11] estabeleceu as concentrações analíticas mais propensas a corresponder ao uso In-Competition para as substâncias cocaína e tetrahidrocanabinóis.
Assim dispôs: “Para Cocaína: Presença de composto pai de cocaína em uma concentração urinária estimada acima (>)10 ng/mL; ou Presença de benzoylecgonina (metabólito principal da cocaína) em uma concentração urinária acima (>) 1000 ng/mL combinado com a presença de composto pai de cocaína entre(≥) 1 ng/mL e (≤) 10 ng/mL.
Notas:1. Composto pai da cocaína pode degradar significativamente a benzolecgonina na urina básica (pH= 8 ou superior), e a presença de altas concentrações urinárias de benzoylecgonina em tais urinas básicas devem ser consideradas pela Autoridade de Gestão de Resultados como um sinal de possível uso in-competition de cocaína, em particular quando tomado em conjunto com resultados anteriores ou futuros de cocaína do mesmo atleta.
2. Consumo de chá de Coca, como observado em algumas partes restritas do mundo, pouco antes a uma competição, poderia levar a um Achado Analítico Adverso para cocaína.
• Para Tetrahidrocanabinol (THC): Presença de carboxy-THC em uma concentração acima (>) do Limite de Decisão (DL)(1) de 180 ng/mL devem ser considerados mais propensos a corresponder a um uso in-competition de Cannabis.
Nota:1. Para carboxy-THC, um Limite de Decisão já está estabelecido (código pré-2021), portanto, nenhum adverso a Constatação Analítica deve ser relatada para concentrações abaixo do Limite de Decisão. O acima deve ser usado como orientação apenas porque não pode ser aplicado em cada caso. Cada matéria deve ser revista com base nos fatos específicos do caso para fazer uma determinação.”
E o Código disciplinou as condições passíveis de redução de pena:
(…)
“10.2.4 Não obstante outra disposição prevista no Artigo 10.2, quando a violação de regra antidopagem envolver uma Substância de Abuso:
10.2.4.1 Se o Atleta puder demonstrar que qualquer ingestão ou Uso ocorreu Fora de Competição e não era relacionado ao desempenho esportivo, então o período de Inelegibilidade será de três meses.
Além disso, o período de Inelegibilidade calculado nos termos deste Artigo 10.2.4.1 poderá ser reduzido a um mês se o Atleta ou outra Pessoa concluir de forma satisfatória um programa de tratamento de Substância de Abuso, que for aprovado pela Organização Antidopagem responsável pela Gestão de Resultados. O período de Inelegibilidade definido neste Artigo 10.2.4.1 não está sujeito a qualquer redução com base no Artigo 10.6.
10.2.4.2 Se a ingestão, o Uso ou a Posse tiver ocorrido Em Competição, e o Atleta puder demonstrar que o contexto da ingestão, do Uso ou da Posse não era relacionado ao desempenho esportivo, então a ingestão, o Uso ou a Posse não será considerado intencional para efeitos do Artigo 10.2.1 e não servirá de fundamento para Agravantes nos termos do Artigo 10.4.”
Inicialmente, temos a hipótese do artigo 10.2.4.1, no qual o atleta tem que provar que não usou a substância em competição, embora tenha sido testado positivo em competição; que a substância foi utilizada em situação de abuso e que não foi utilizada para melhora do rendimento esportivo.
Por outro lado, o artigo 10.2.4.2 deixa claro que o uso em competição ou a simples presença da droga nos fluidos do atleta não serão tolerados, permitindo ao atleta demonstrar que não fez uso da substância com a finalidade de melhorar seu rendimento, não sendo no caso o uso tratado como intencional. Portanto, a hipótese de se alegar e provar que o uso se deu fora de competição, não gerará absolvição do atleta.
Especial atenção merece o caso do atleta viciado em cocaína, em razão de tal substância não ser especificada, e lhe competir a comprovação da não intencionalidade. Já as demais substâncias de abuso, por serem especificadas, não demandam prova, por parte do atleta, de que o uso não foi intencional, muito embora seja requisito para qualquer redução de pena, nos casos de dopagem, a prova de como a substância entrou no organismo do atleta, o que inclui o contexto de abuso.
Reitera-se que não há margem para presunções, sendo demandada prova corroborativa das circunstâncias, ou seja, dos requisitos do Código, para que o atleta faça jus a uma pena de 3 (três) meses de inelegibilidade, devendo, igualmente, comprovar que se submete a tratamento em programa aprovado[12] para reduzir a pena para 1 (um) mês, sendo, ônus do atleta a prova de tais circunstâncias atenuantes.
Tal constatação é inafastável e já foi trazida, inclusive, em artigo publicado por Paulo Schmitt, Fernando Solera e Octávio da Silveira Neto[13], que, igualmente, concluíram que o simples fato de uma substância ser considerada de abuso, ou a mera alegação do atleta, não geram a redução automática. Ao contrário, são transferidos para o atleta inúmeros ônus para sua defesa.
Em outras palavras, caso não haja a comprovação das circunstâncias de abuso, não terá o atleta o direito a redução de 1 (um) a 3 (três) meses, sendo necessária a avaliação do grau de culpa do atleta, nos termos do artigo 10.6., não se podendo aplicar o artigo 10.5., uma vez que a ausência de culpa prevista neste artigo não tem ligação direta com a circunstância de abuso, mas sim com outros elementos, tais como consumo involuntário ou sabotagem.
Seria, ainda, estranho aplicar penas inferiores a 3 (três) meses para o uso realizado em competição, razão pela qual, neste tocante, é evidente que não houve benefício para o atleta, a não ser maior critério para a aplicação das penas.
Embora sejam substâncias proibidas em competição, o Código deixa claro que o atleta será processado e julgado mesmo que comprove que o uso se deu fora de competição. Isso porque, em geral, os laboratórios não “procuram” tais substâncias em amostras coletadas fora de competição, resultando estes em casos de RAA de amostras colhidas somente em competição.
Tal constatação se baseia nos objetivos do Código Mundial Antidopagem e do Programa Mundial Antidopagem que versam sobre: “proteger o direito fundamental dos Atletas de participar de esportes livres de dopagem e, assim, promover a saúde, justiça e igualdade para Atletas do mundo todo, eGarantir programas de antidopagem harmonizados, coordenados e eficazes nacional e internacionalmente no que diz respeito à prevenção de dopagem…”
Ou seja. Não devemos ter atletas com substâncias proibidas em competições, sendo aplicável o “strict liability” ou responsabilidade estrita[14] para todas as substâncias encontradas nos fluidos do atleta em competição, mesmo que tenham sido utilizadas fora de competição, algo, por vezes ignorado.
Diante de todos os elementos trazidos, no que tange as violações de regras antidopagem ocorridas antes da vigência do Código atual, dispõe o artigo 27.2 do CMA que para os processos em trâmite ou a serem distribuídos deverão ser aplicadas as regras materiais em vigor no momento que ocorreu a infração, com exceção não retroativa aos artigos 10.9.4 e 17, todavia prevê uma das possibilidades de aplicação da lei mais benéfica ao acusado, permitindo ao painel julgador a aplicação da “lex mitior”, no caso das substâncias de abuso, se convencido das circunstâncias de abuso pelas provas apresentadas pelo atleta.
Outra possibilidade de aplicação do princípio da “lex mitior” encontra fundamento no artigo 27.3do CMA, que prevê para os casos de decisões proferidas com fulcro na legislação anterior, nos quais o atleta ou outra pessoa ainda esteja cumprindo o período de inelegibilidade, a possibilidade de solicitar a redução do período à Organização Antidopagem responsável pela Gestão de Resultados, sendo referida decisão passível de interposição recursal, nos termos do artigo 13.2 do mesmo diploma legal.
Sendo ainda aplicada a lei mais benéfica ao atleta nos casos de violações múltiplas, nos termos do artigo 10.9., conforme previsto no artigo 27.4 do CMA, o qual estabelece que se a primeira violação for determinada com base no Código anterior o período de inelegibilidade a ser aplicado para a segunda deverá ser o inerente ao da primeira violação com base no novo Código.
Neste sentido, já temos casos de atletas requerendo a aplicação de tais institutos para revisar suas penas[15] ou ainda para ter benefícios em julgamentos em curso. Mas ainda resta a dúvida, será que a aplicação de tais institutos irá realmente “beneficiar” os atletas que testaram positivo? Somente aqueles que comprovarem, de forma efetiva, os requisitos previstos no Código terão direito à eventual redução de pena.
Nunca é demais ressaltar que deixar um usuário de substância, em contexto de abuso, sem punição, ao contrário do que alguns defendem, apenas irá incentivá-lo a continuar no vício e não buscar o devido tratamento, já que a maioria resiste em reconhecer seu problema e alega não necessitar de ajuda. A punição, com seu caráter pedagógico e disciplinar, é uma forma de alertar o atleta a respeito, e, sobretudo, ajudá-lo a se conscientizar da dependência.
Ao longo dos últimos 15 (quinze) anos, poucos foram os casos nos quais o atleta se submeteu a tratamento ou minimamente comprovou fazer algum acompanhamento, o que demonstra que as recentes alterações focam na saúde do atleta, sem afagá-lo pelo ocorrido ou afastar sua responsabilidade desportiva.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos Autores deste texto.”
¹Advogado especializado em Direito Desportivo pelo CEDIN, Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP, Procurador Geral do TJD-Antidopagem, ex-Sub-Procurador Geral do STJD do Futebol e Membro de diversos Tribunais Desportivos do país.
²Advogada; Coordenadora Geral do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD; Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP; Procuradora do TJD-Antidopagem; Representante (Suplente) do IBDD no Fórum Brasileiro Antidopagem (instituído pelo Decreto nº 10.510/2020); Diretora da Escola Nacional de Justiça Desportiva do Voleibol; Vice Presidente do Pleno do STJD de Vela e Membro de diversos Tribunais Desportivos do país.
³https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/regras-antidopagem-legislacao-1/codigos/copy_of_codigos/codigo-mundial-antidopagem-2021.pdf acesso em 25/02/2021
[4]https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/regras-antidopagem-legislacao- acesso em 25/02/2021
1/codigos/copy_of_codigos/codigo_brasileiro_antidopagem_aprovado_cne_diagramado_jan_2021.pdf/view acesso em 25/02/2021
[5] CMA – Apêndice 1 – Definições – AMA: A Agência Mundial Antidopagem.
[6] CMA – Apêndice 1 – Definições –Substância Proibida: Qualquer substância, ou classe de substâncias, assim descrita na Lista Proibida.
[7] CMA – Apêndice 1 – Definições – Lista Proibida: A Lista que identifica as Substâncias Proibidas e os Métodos Proibidos.
[8] CMA: “4.3.3 A determinação da AMA sobre quais Substâncias Proibidas e Métodos Proibidos deverão ser incluídos na Lista Proibida, a classificação de substâncias em categorias na Lista Proibida, a classificação de uma substância como proibida em todo o tempo ou somente Em Competição e a classificação de uma substância ou de um método como Substância Especificada, Método Especificado ou Substância de Abuso é definitiva e não está sujeita a contestação por um Atleta ou outra Pessoa incluindo, entre outras, qualquer contestação com base no argumento de que a substância ou o método não era um agente mascarante ou não tinha o potencial de melhorar o desempenho, de representar um risco para a saúde ou de violar o espírito esportivo.
[9]https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/atletas/substancias-e-metodos-proibidos/arquivos-lista-de-substancias-proibidas/lista-2021v-4.pdf/ acesso em 25/02/2021
[10] CMA – Apêndice 1 – Definições – Em Competição: O período que tem início às 23h59 do dia antes de uma Competição na qual o Atleta deve participar e que termina ao final da Competição e que inclui o processo de coleta de Amostras relacionado a essa Competição; desde que, no entanto, a AMA possa aprovar, para um esporte específico, uma definição alternativa se uma Federação Internacional fornecer uma justificativa válida de que é necessária uma definição diferente para o seu esporte; mediante aprovação da AMA, a definição alternativa será adotada por todas as Organizações de Grande Evento para esse esporte específico.
[11]https://www.wada-ama.org/sites/default/files/resources/files/2020-01-11_guidance_note_on_substances_of_abuse_en_0.pdfacesso em 25/02/2021 acesso em 25/02/2021
[12] Nota 60 ao artigo 10.2.4.1 do CMAD: “60 [Comentário ao Artigo 10.2.4.1: As deliberações sobre se o programa de tratamento é aprovado e se o Atleta ou outra Pessoa concluiu o programa de forma satisfatória serão tomadas a critério exclusivo da Organização Antidopagem. O objetivo deste Artigo é fornecer às Organizações Antidopagem uma margem de apreciação a ser aplicada a suas próprias decisões a fim de identificar e aprovar programas de tratamento que sejam legítimos e idôneos, e não “de fachada”. No entanto, é provável que as características de programas de tratamento legítimos possam apresentar grande variação e possam mudar ao longo do tempo, de forma que não seria viável para a AMA desenvolver critérios obrigatórios para programas de tratamento aceitáveis.]
[13]http://www.cbc.esp.br/img/governanca/COCAINA_Substancia_de_Abuso_by_SOLERAeSCHMITTeTAVICO_versao_final.pdf
[14]CMA – Apêndice 1 – Definições – Responsabilidade Estrita: A regra que estabelece que, nos termos do Artigo 2.1 e do Artigo 2.2, não é necessário que a Organização Antidopagem demonstre intenção, Falha/Culpa, negligência ou Uso consciente por parte do Atleta para comprovar uma violação de regra antidopagem.
[15]https://oglobo.globo.com/esportes/conmebol-reduz-pena-goleiro-rodolfo-do-fluminense-fica-livre-para-jogar-apos-doping-24836193#:~:text=O%20goleiro%20foi%20flagrado%20no,benzoilecgonina%2C%20um%20metab%C3%B3lico%20da%20coca%C3%ADna.&text=O%20goleiro%20apelou%20contra%20a,e%20do%20controle%20de%20dopagem. Acesso em 25/02/2021
[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]