O ERRO DE FATO E O ERRO DE DIREITO APÓS A IMPLEMENTAÇÃO DO ‘VAR’

João Felipe Artioli

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Tema muito debatido é a possibilidade de anular uma partida oficial de futebol a partir de erros cometidos pela arbitragem. Já é pacífico que o erro de fato não dá essa possibilidade, diferentemente do erro de direito. E a grande questão é como demonstrar o erro de direito. Parece simples, mas não é.

Antes da implementação do VAR no futebol, especialmente no futebol brasileiro, a distinção entre os erros de fato e de direito eram relativamente tranquilas. Em janeiro de 2010, quase dez anos antes de obter êxito na anulação de uma partida oficial de futebol por erro de direito, publiquei sobre a questão.

De modo bem direto, o erro de fato consiste na interpretação equivocada do evento ou dos fatos que ocorram nele, sendo uma ideia errônea sobre o sentido exato de alguma coisa, o que leva a crer em uma realidade que não é verdadeira; o erro de direito, por sua vez, é a interpretação ou aplicação errada da regra.

Sendo exemplificativo, um carrinho dentro da área pode, ou não, resultar em pênalti. O árbitro da partida, ou quaisquer de seus assistentes, a partir de seu posicionamento em campo, de sua visão e em frações de segundo decidirá se aquele contato seria, ou não, suficiente para ensejar o tiro penal.

Supondo que a penalidade máxima não fosse assinalada, ainda que se verificasse após a partida que, de fato, houve o pênalti, esse erro não seria suficiente para anular a respectiva partida, pois decorreu da interpretação. Não significa que o árbitro não tinha conhecimento da regra ou que não a aplicou corretamente, mas apenas que aquela foi a sua interpretação do lance, a partir de diversos fatores de campo.

A exceção seria o erro de fato doloso, quando a decisão decorrer de ato malicioso ou fraudulento empregado com o objetivo de alcançar um resultado que sequer teria existido caso não fosse utilizado tal artifício astucioso. Aqui fica como exemplo os fatos ocorridos no Campeonato Brasileiro de 2005, com o árbitro Edilson Pereira de Carvalho.[2]

Como exemplo ao erro de direito, cito a anulação da partida disputada entre Aparecidense e Ponte Preta, válida pela primeira rodada da Copa do Brasil de 2019, quando o erro de direito foi reconhecido em razão de interferência externa que influenciou na decisão final do árbitro.[3]

Ocorre que a implementação do VAR pode, ou não, ter alterado a perspectiva dos erros de fato e de direito, no tocante a sua origem, mas não só.

A filosofia do VAR é a mínima interferência com o máximo benefício, o que está estampado no “Manual de implementação em competições oficiais”[4]. Em outras palavras, a decisão do árbitro só será alterada se a revisão do vídeo mostrar um erro claro, ou seja, “não se a decisão foi correta”, mas se “a decisão foi claramente errada”.

Se o vídeo mostrar um erro claro na interpretação do árbitro, se o VAR não o chamar ou se chamado o árbitro não responder, haveria erro de direito. Apesar de soar afirmativa esta conclusão, ela não é! A decisão que prevalece é aquela tomada dentro de campo, sendo o VAR um auxiliar que o árbitro poderá, ou não, utilizar.

Em razão da proximidade do ocorrido, tomemos como exemplo outra partida que envolve a Ponte Preta, desta vez disputada contra o Vila Nova, no sábado dia 02/10/2021, pelo Campeonato Brasileiro da Série B.

Na ocasião, no último minuto de jogo, quando a Ponte Preta vencia a partida por 1 a 0 e a bola estava rolando, o árbitro Adriano Barros Carneiro foi chamado pelo VAR para analisar uma jogada de um possível pênalti a favor do Vila Nova. Lançando mão de todos os recursos tecnológicos à disposição, o árbitro da partida entendeu que houve pênalti, resultando no gol de empate da equipe goiana.

Para esclarecer, o lance foi uma tentativa de cruzamento e a questão era se a bola teria batido na coxa ou no braço do jogador da Ponte Preta.

Pelas imagens ficou claro que a bola bateu na coxa do jogador alvinegro. Ainda que tivesse batido no braço, as mesmas imagens mostraram que o seu braço estava rente ao seu corpo e fora do curso da bola. Esse foi, inclusive, o entendimento de todas as análises feitas durante a partida, com as mesmas imagens.[5]

Por essa primeira análise, é certo que o VAR chamou o árbitro para analisar uma decisão correta, ou, quando muito, uma decisão que não foi claramente errada.

O Livro de Regras de 2021/2022[6] define alguns termos do futebol, dentre eles a “interferência indevida” como sendo a “ação, ato ou influência contrária às regras”. O VAR interfere na partida, resta saber de forma devida ou indevida e se houve contrariedade às regras.

Bem se sabe que será assinalado tiro livre direto se um jogador cometer, dentre outras infrações especificadas, a de tocar a bola com a mão/braço, conforme consta do capítulo das “Faltas e Incorreções” do Livro de Regras. No mesmo capítulo é destacado que “nem todo toque de bola na mão/braço de um jogador na bola é uma infração”, com destaque a dois pontos do item 1 da Regra 12:

Será uma infração se um jogador:

  • Tocar a bola com sua mão/braço deliberadamente. Por exemplo, deslocando a mão/braço na direção à bola;

 

  • Tocar a bola com sua mão/braço, quando sua mão/braço ampliar seu corpo de forma antinatural. Considera-se que um jogador amplia seu corpo de forma antinatural, quando a posição de sua mão/braço não é consequência do movimento ou quando a posição da mão/braço não pode ser justificada pelo movimento do corpo do jogador para aquela situação específica. Ao colocar a sua mão/braço em tal posição, o jogador assume o risco de sua mão/seu braço ser tocada pela bola e, portanto, deve ser punido;

A própria Regra 12 traz como explicações que “nem todo contato da bola com a mão/o braço é uma infração” e que “os árbitros devem avaliar a posição da mão/braço em relação ao que o jogador estiver fazendo na situação específica”.

Tomando como base a interpretação do árbitro naquela partida entre Ponte Preta e Vila Nova, a imagem deixou claro que o jogador da Ponte Preta não tocou a bola deliberadamente, assim como não ampliou seu corpo de forma antinatural.

Em um debate esclarecedor, o ex-árbitro, jornalista e comentarista Renato Marsiglia, ao responder uma postagem minha sobre o tema, destacou que se trataria de um erro de interpretação, o que caracterizaria unicamente se houve, ou não, erro de fato, fazendo referência aos  itens 1 e 2 da Regra 5:

  1. A autoridade do árbitro

O jogo é disputado sob o controle de um árbitro, que tem total autoridade para cumprir as regras do jogo.

2. Decisões do árbitro

O árbitro deve tomar as decisões do jogo com o máximo de sua capacidade, de acordo com as regras e o “espírito do jogo”, segundo sua opinião. Em razão disso, o árbitro possui poder discricionário para adotar as medidas adequadas para cumprir a essência das regras do jogo.

Ele prossegue esclarecendo que “posição antinatural” seria, por si só, matéria interpretativa. Uma abertura de braço pode ser “antinatural” para um e ser “natural” para outro, uma vez que os braços são parte importante no equilíbrio do jogador numa disputa de bola ou na tentativa de interceptá-la.

Temos, então, que o termo “posição antinatural” não seria taxativo, tanto que há exemplificação do que ela seria, conforme acima reproduzido. A princípio, não discordo disso. Mas vale lembrar que a mão/braço do atleta pontepretano, no caso do exemplo, estava rente ao corpo e, por isso, não configuraria “posição antinatural” de forma alguma.

Os itens 1 e 2 da Regra 5, transcritos anteriormente, também trazem pontos relevantes, como a autoridade do árbitro para cumprir e tomar as decisões do jogo de acordo as regras e sua essência. Apesar de no item 2 constar que as decisões serão segundo sua opinião, isso não seria suficiente para dar o caráter interpretativo a toda e qualquer situação, pois, se assim fosse, todos os erros seriam unicamente de fato.

Sem tirar qualquer conclusão sobre a existência de erro de direito, ou não, no caso fático entre Ponte Preta e Vila Nova, é possível concluir que os erros de fato e de direito ganharam novos contornos com o VAR, pois, a partir de uma interpretação equivocada (erro de fato), chamado para rever a decisão, o árbitro poderá aplicar equivocadamente a regra, o que significaria dizer que o erro de direito poderá decorrer de um erro de fato anterior.

É também possível concluir que a atuação do VAR que venha a provocar a revisão de um lance a partir de uma decisão foi correta ou que não tenha sido claramente errada, modificando o curso da partida, implicaria em erro de direito, na medida que implicaria em interferência indevida.

Tem-se, em casos como o exemplificado neste ensaio, que o VAR mais atrapalha do que ajuda, especialmente quando o protocolo da FIFA estabelece o chamado “erro claro e inquestionável” para entrar ação.

É notável que nos campeonatos europeus essa “interferência” do VAR não existe ou é muito menor, principalmente em razão de os profissionais serem treinados e orientais a cumprir rigorosamente o princípio estabelecido no protocolo do VAR, de “mínima interferência com máximo benefício”.

De toda sorte, a interpretação fática do erro de fato e do erro de direito não parecem mais ser a mesma de antes e os entendimentos serão consolidados caso a caso pela jurisprudência dos Tribunais Desportivos.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.


[1] Graduado em Direito pela FACAMP, Pós-graduado em “Direito Tributário” pelo IBET e em “Aprimoramento em Compliance” pela FACAMP, membro filiado e colunista do IBDD bem como da Comissão de Direito Desportivo da OAB/Campinas, sócio do escritório Ezarchi & Artioli Advogados Associados, que atua no Direito Desportivo desde 1996.

[2]https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas/2005/10/02/ult59u96691.jhtm

[3] STJD – Tribunal Pleno – Impugnação de Partida – Processo 027/2019 – Auditor Relator: Dr. Ronaldo Botelho Piacente – Auditor designado para o acórdão: Dr. Antônio Vanderler de Lima – julgado em 26/02/2019

[4] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201910/20191028183438_823.pdf

[5]https://ge.globo.com/sp/campinas-e-regiao/futebol/brasileirao-serie-b/noticia/video-central-do-apito-discorda-de-penalti-que-rendeu-empate-do-vila-nova-diante-da-ponte-assita.ghtml

[6] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202109/20210914183704_10.pdf