por Milton Jordão**.
Os recentes processos que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD) envolvendo os clubes Portuguesa e Flamengo tem demonstrado um “interesse” maçico pelo direito desportivo. Ou melhor, tem revelado por parte das pessoas interesse no peculiar caso que, por força das punições se aplicariam a qualquer destes, produziria como consequência a manutenção do Fluminense da Série A.
Tenho lido, visto e ouvido bastante coisa. São novas teses, críticas ao julgamento do Tribunal, ataques à honra dos seus membros, etc. Por haver sido um dos Procuradores que atuou diretamente neste caso, sou questionado, seja em tom de brincadeira, por vezes, ou de indignação mesmo, por pessoas (próximas a mim ou distantes também), que, em suma, desejariam ver “paga a Série B“.
Isso tudo me tem feito refletir um pouco sobre algumas questões, uma delas (a última), em especial, foi trazida a lume pelo querido amigo Cláudio Figueroa, um dos mais destacados advogado laboralista do meu Estado e competentíssimo Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia. Ei-las: (a) para que o esporte precisa do direito?; (b) poderia o STJD decidir de outra forma?; (c) porque os “especialistas” em direito desportivo pensam diferente dos demais?; (d) é possível existir a divergência no direito desportivo?
Pois bem.
Ainda que em breve linhas, eis minha sincera e direta análise.
O Esporte precisa do direito. Isso é um axioma que nem sempre percebemos com clareza. Se alguns amigos forem disputar uma partida de futsal será preciso fixar regras para que cada um sabia o que é possível fazer em quadra. Até mesmo se eles desejarem que não haja regras, não deixará de ser uma regra! Assim, as balizas sobre tempo de jogo, tamanho da quadra, faltas, validade do gol se impõe para que cada um sabia o que poderá fazer ali.
No esporte de alto rendimento as regras são fundamentais para o sucesso da modalidade. Inafastável a certeza de que entre competidores que, além do certame, percebem bônus de clubes ou patrocinadores em dinheiro, faz com que o esporte reclame maior dose e grau de organização e preparação. Deixe de ser mero deleite para o atleta se tornando uma profissão (muito lucrativa, por sinal). Clubes e demais agremiações desportivas em campeonatos de alto rendimento funcionam, em verdade, como empresas, apesar da legislação nacional exigir (melhor, permitir) sejam associações sem fins lucrativos (enfim, este ponto é outra história a ser contada…).
Então, o esporte e o direito nutrem entre si relação intríseca e eterna.
À medida que o esporte se organiza e aglutina em seu derredor grandes somas de dinheiro, naturalmente, que surjam federações nacionais, continentais e mundiais. E, claro, os tribunais e comitês de disciplina. Afinal, nem tudo se resolverá no campo!
A existência de cortes desportivas é consectário lógico de um princípio de check and balance, onde o órgão executivo não concentrará os poderes de organizar as competições e, ao mesmo, decidir sobre existência de infrações e/ou outras questões que nascem numa disputa esportiva organizada.
Diria que no âmbito do desporto organizado a segurança jurídica é um reclame de todos os que competem, é imprescindível e infastável de um ideal de paridade de armas (par conditio). Assim, a garantia de que as regras estatuídas serão fielmente respeitadas tranquiliza e permiti os atletas, insividualmente ou em equipe, possam bem disputar um certame sob égide de fair play (o jogo limpo).
Nos mencionados casos Lusa e Flamengo o STJD se viu lançado contra a parede por boa parcela da imprensa e fãs do esporte que gostariam de ver a realização de uma “justiça material”, consistindo na desconsideração das infrações perpetradas por ambas agremiações sob pálidos argumentos, unicamente, para que o “resultado de campo fosse mantido”. Malgrado, este se demonstrasse eivado de ilicitade consubstanciada na escalação de atletas irregulares.
Poderia, apesar disso, o STJD do Futebol, seguramente o tribunal esportivo de maior envergadura e expressão, decidir em sentido oposto ao reconhecimento das infrações e aplicação das respectivas penas?
Não.
Caso o Tribunal assim o fizesse violaria a maior garantia que os seus jurisdicionados têm: a segurança jurídica. Destruiria, assim, toda a lógica do sistema judicante desportivo, porquanto se autorizaria, por meio de precedentes, que outros clubes ao sabor dos seus interesses de momento violassem além de normas regulamentares, o próprio espírito esportivo, o fair play e o par conditio.
Ao contrário de outros ramos jurídicos, o desportivo disciplinar é extremamente dependente dos valores inerentes ao ideal de segurança jurídica, pois se revala como amalgama indispensável à higidez das competições desportivas, principalmente as profissionais.
Até mesmo a quimérica vulneração ao art. 35 do Estatuto do Torcedor (hoje única dentre as inúmeras teses trazidas à baile desde o início que tem eco) não passou desapercebida pelo Tribunal, que bem êxpos o respeito e cumprimento da lei federal. Em síntese, este dispositivo diz que as decisões da Justiça Desportiva devem ser publicadas para ter validade. E, sem eira, nem beira, se alçou a tese de que esta publicação (que tem por função exclusiva INFORMAR o torcedor, SOMENTE e nada mais do que isso) seria marco para fruição de efeitos processuais e materiais. A bem da verdade, esta é mais uma tese sem esteio objetivo, afinal, o Estatuto não reclama prazo, como o fez com a entrega de súmulas e também a sua publicação na internet. E mais, o torcedor não é parte na lide disciplinar desportiva e nada poderá reclamar, concorde ou não com o teor e resultado de um julgamento. Exige-se apenas que exista publicação, sem qualquer vinculação a prazos. A inexistência da publicação tornará nula a decisão e seus efeitos, por conseguinte. Por outro lado, as partes no processo desportivo se regem pelo CBJD. Feita a publicação no dia do próprio julgamento ou logo após está o interesse da lei atingido.
Obviamente, que para aqueles que pretendem trasladar regras e valores de outros ramos do direito para o desportivo, desarrazoadamente, se adotará este como termo a quo, pouco importando, diga-se, as regras sobre o processo desportivo. Pouco importará, igualmente, a voluntas legis que foi fazer valer o princípio da transparência, tornando acessível aos torcedores as decisões proferidas nos processos desportivos. Só isss, nada mais.
Dito isso, se pergunta o porquê de especialistas (sem aspas mesmo) se manifestarem favoravelmente às decisões da Comissão Disciplinar Nacional e ao Pleno, ambos órgãos judicantes do STJD do Futebol.
O sistema esportivo é uma engrenagem de natureza privada que vive (e viverá) em permanente relação com Poder Público. Não raro os reclames para que o Estado passa a regular mais de perto estas atividades e não apenas traçar balizas mestras, como fez no Brasil. Porém, ele (Estado) sabe da sua incapacidade para gerir com a diligência que a velocidade e dinamismo próprios do Esporte. Logicamente, nunca deixará de tutelá-lo ou utilizá-lo, mas é cônscio de que sua gestão deve ser feita pelo particular.
É muito importante que se compreenda que os órgãos judicantes que integram o sistema de justiça desportiva nacional não se incumbem somente de processar e julgar o Campeonato Brasileiro ou torneios outros de visibilidade. Por exemplo, no âmbito de Tribunal Desportivo Regional além do campeonato estadual, deverá a corte apreciar TODAS as infrações ocorridas em certames oficiais, ou seja, aqueles chancelados pela Federação Esportiva, pouco importando se profissionais ou não profissionais. Voltando ao STJD do Futebol, veja-se se além do Campeonato Brasileiro da Séries A e B, tem-se as C e D, os torneios nacionais de futebol Feminino, os de divisões inferiores, além dos recursos contra decisões de todos os tribunais regionais.
Certamente, o Poder Judiciário não suportaria o ingresso destas demandas em suas hostes, visto que a celeridade é um comando constitucional no que tange à resolução de conflitos nesta seara.
Assim, é preciso se observar o efeito dominó que flexibilização do respeito e cumprimento das normas do CBJD e das regras de campeonato poderia causar em todo este sistema antes de se querer impor um anseio de ver “reparada uma virada de mesa do passado”. Mas, não se pode admitir uma excepcionalidade deste jaez. Se pretendia, sem meias palavras, uma nova virada de mesa.
Por fim, a última resposta, esta ao dileto amigo Cláudio Figueiroa: é possível haver divergência no direito desportivo disciplinar?
Claro que sim!
Porém, nos limitaremos ao mérito de algumas questões da prática judicante que quem me indagou bem sabe proceder. Uns serão mais flexíveis sobre enquadramentos num ou noutro tipo disciplinar, sobre aspectos técnicos diversos; entrementes, é defeso ao militante da Justiça Desportiva abrir mão de determinados valores fundamentais à própria existência do sistema judicante desportivo.
Flexibilizar em casos como o Lusa/Flamengo significa abrir mão de uma garantia que conferiu a Constituição Federal outorgou às entidades desportivas, uma vertente da sua autonomia esportiva. Esta porosidade pesará de deveras no sistema, fazendo-o ruir e oportunizando o caos e a anomia no mundo do esporte. Isso não se deve permitir.
Quanto a este aspecto, nobre e querido amigo, não se pode admitir ou existir divergência, é manu militare.
* Este pequeno e desponado nasceu no calor dos embates do Caso Lusa/Flamengo, ainda em 2013, em um virtual debate sobre a postura dos especialistas em direito desportivo, a sua forma dura e contumaz de defender o sistema judicante esportivo, e os aqueles juristas ou não, que passarama a ser “especialistas”, pregando o oposto.