Por Fernanda Chamusca
Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Ao longo de muitos anos a mulher foi vista como um apoio do homem, como a predestinada dona de casa, sendo essa a representação pura e simples da feminilidade. O que muitos não aceitavam é que a mulher podia e queria ir além, alcançar novos espaços, mesmo os considerados por muitos inapropriados para sua natureza.
Por anos a voz do machismo falou mais alto e, tendo como exemplo a história do Brasil, o direito á prática do futebol feminino organizado foi cerceado em 1941 através do Decreto-Lei n. 3.199, que proibiu o futebol feminino. O veto perdurou por, aproximadamente, 40 anos e até hoje é um dos principais prejuízos à profissionalização da modalidade feminina no Brasil.
Para os que tiveram a oportunidade de vivenciar a Copa do Mundo de Futebol Feminino em 2019, sediada na França, o futebol feminino é uma potência. Um evento digno de todos os elogios, emoções e técnica. Com audiência alcançada em mais de 1 (um) bilhão de pessoas, o evento alcançou números de transmissão 106% (cento e seis por cento) maior que a última copa do mundo no Canadá, em 2015.
Jogos transmitidos para mais de 206 (duzentos e seis) países, conquistando resultados comerciais importantes para aquecer o mercado da modalidade. Cabe falar que foi a grande virada de chave para o desenvolvimento do Futebol Feminino em âmbito mundial.
O caminho para esse sucesso, todavia, começou através de toda uma estruturação anterior que reflete exatamente o momento mercadológico e regulamentar que o Futebol Feminino se encontra atualmente, desde a evolução global até a hodierna realidade brasileira.
Mesmo diante do crescimento da modalidade, a Federação Internacional de Futebol (“FIFA”) acreditava que era necessário impulsionar a profissionalização do futebol feminino e, nesse ínterim, lançou o documento “Estratégia Global para o Futebol Feminino”. O material elencou pilares fundamentais para desenvolvimento da modalidade: crescimento dentro e fora de campo; aprimoramento das competições femininas; programa comercial para o futebol feminino; Igualdade de gênero e liderança feminina; campanhas de incentivo ao empoderamento feminino.
Sob a ótica da estrutura piramidal do esporte e a subordinação de todos os filiados, nos termos dos arts. 14 e 22 do Estatuto da FIFA, todas as confederações continentais e federações nacionais são obrigadas a seguir e projetar, através dos seus sistemas domésticos, as regulamentações e planos estratégicos de implementação dos temas elencados.
Como não poderia ser diferente, o futebol sul-americano reagiu a estratégia lançada pela FIFA. A Confederação Sul-americana de Futebol (“CONMEBOL”) implementou novo critério para participação dos clubes nos seus campeonatos, conforme define o Regulamento de Licenciamento de Clubes da CONMEBOL:
“CAPÍTULO IV – D.04: O solicitante deverá ter uma equipe principal feminina ou associar-se a um clube que a tenha. Além disso, deverá ter pelo menos uma categoria juvenil feminina ou associar-se a um clube que a tenha. Em ambos os casos, o solicitante deverá providenciar suporte técnico e todo o equipamento e infraestrutura (campo de jogo para a disputa de jogos e treinamento) necessários para o desenvolvimento de ambas equipes em condições adequadas. Finalmente, é exigido que ambas equipes participem de competições nacionais e/ou regionais autorizadas pela respectiva Associação Membro.”
A partir de 2019, para participarem dos campeonatos, os clubes de futebol deveriam obrigatoriamente manter uma equipe feminina. Essa determinação foi adotada, também, nas regulamentações da Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”), que determinou no seu Regulamento de Licença de Clubes:
“D.11 – Equipe principal feminina: O Clube Requerente deverá contar com uma equipe principal feminina ou manter acordo de parceria ou associação com um clube que mantenha uma equipe feminina principal estruturada, da melhor forma que puder desenvolver o esporte. Nesse sentido, o Clube Requerente idealmente proverá as condições necessárias para o desenvolvimento adequado de referida equipe principal feminina, como, por exemplo, suporte técnico, seguro saúde, equipamentos e infraestrutura (campo para treinamento e local para disputa das partidas oficiais etc.), devendo informar à CBF o orçamento anual destinado ao futebol feminino. O Clube Requerente deverá demonstrar que a equipe principal feminina efetivamente disputa competições oficiais autorizadas pela CBF ou por Federações Estaduais.”
A obrigatoriedade foi, em verdade, uma das mudanças mais significativas para o desenvolvimento do futebol feminino, ademais, tamanha é a importância da marca dos grandes clubes, já sacramentados no futebol, para alavancar o crescimento do futebol feminino. Não somente devem os clubes ter a equipe, mas também fomentar todo o crescimento da modalidade e fornecer condições técnicas adequadas para que os times possam disputar os campeonatos.
O mercado reagiu, inicialmente, com certo receio sobre esse novo investimento, mas pode-se dizer que mudança veio em boa hora. O futebol feminino evoluiu de forma exponencial, gerando resultados positivos com relação aos Direitos de Transmissão, interesse do público e engajamento nas redes sociais. Um boom que ganhou novos rumos após a Copa do Mundo de 2019.
Os estudos da FIFA sobre as movimentações de transferências internacionais através do FIFA Transfer Matching System (“FIFA TMS”), posto que o sistema passou a ser também obrigatório para o futebol feminino a partir de 2018, evidenciam que o futebol feminino está em movimento extraordinariamente crescente, temporada após temporada: desde os números de federações nacionais envolvidas nas transferências, aos valores investidos nas transferências dessas atletas.
Para isso, coube ser necessário olhar as regulamentações e entender de que forma o sistema poderia se adequar à proteção dos direitos das mulheres. Afinal, a mulher atleta tem o direito de poder ser mãe, lactante, mulher em essência, ser respeitada dentro dos limites do seu corpo e do seu querer.
Nesse sentido, a FIFA lançou, no ano de 2020, os padrões mínimos trabalhistas para as atletas de futebol feminino, regulamentações que passariam a vigorar em 2021, como parte do Regulamento de Status e Transferências dos Atletas da FIFA (“FIFA RSTP”), e, consequentemente, refletir para todas as confederações e federações filiadas.
Através do art. 18quarter do FIFA RSTP, as mulheres atletas passaram a ter mínimas condições de trabalho, que compreendem as suas peculiaridades naturais e direitos inerentes à sua condição humana, como se pode observar:
“18quarter Disposições especiais relativas a jogadoras 1. A validade do contrato não pode estar condicionada à possibilidade de a jogadora estar grávida ou engravidar durante a sua vigência, estar em licença maternidade ou usufruir de direitos relativos à maternidade em geral. 2. Se um clube rescindir unilateralmente um contrato com base no fato de uma jogadora estar grávida ou engravidar, estar em licença maternidade ou utilizar direitos relacionados à maternidade em geral, será considerada rescisão do contrato sem justa causa ocasionada pelo clube. a) Presumir-se-á, salvo prova em contrário, que a rescisão unilateral de um contrato por um clube durante a gravidez ou licença-maternidade ocorreu em consequência de uma jogadora estar grávida ou engravidar.”
Nesses termos, o artigo primeiro determina que a validade de qualquer contrato relacionado às atletas de futebol jamais poderá estar condicionada ao seu estado gravídico, lactante, ou relacionado a sua maternidade em geral. Sequer pode ser aceita qualquer vedação à possibilidade da atleta engravidar futuramente.
Entende a federação internacional, tomando como espelho as normativas internacionais e trabalhistas de proteção à mulher, que na rescisão unilateral do contrato, sem justa causa, presume-se a responsabilidade objetiva do clube, sob a égide da hipótese de violação da estabilidade laboral da atleta em estado gravídico, em seu puerpério, como lactante, ou qualquer razão associada, exceto se o clube conseguir produzir prova em contrário. O ônus da prova caberá inteiramente ao clube, nesse caso.
O que se vê é a prevalência do princípio da estabilidade laboral da mulher quando configurada a sua gravidez ou qualquer relação ao seu direito de engravidar. A mulher em estado gravídico, em especial a mulher atleta, não poderá praticar em plenitude o esporte de alto rendimento, estando sujeita ao crivo do seu treinador e médico, escolhidos por ambas as partes, razão que, todavia, jamais poderá ser o motivo ou momento para encerramento do vínculo empregatício, estando sujeitos os clubes a pagarem indenizações pela dispensa imotivada e sofrerem demais sanções cumulativas pela ação desmedida (art. 18quarter, par. 3 do FIFA RSTP).
Assim, a FIFA idealizou a possibilidade de auxílio aos clubes diante da perda temporária da força de trabalho habitual da atleta grávida e determinou a exceção dos clubes poderem registrar atletas fora da janela de transferência previamente estabelecida, desde que seja para substituir temporariamente a atleta em estado gravídico que esteja em licença-maternidade ou afastada (Art. 6, par. 1, (a) do FIFA RSTP).
A licença-maternidade, pelas definições da FIFA, é entendida como um período mínimo de 14 semanas de licença para a mulher em estado gravídico ou puerpério, em que pelo menos 8 semanas precisam ser garantidas após o nascimento do infante.
O art. 18 do FIFA RSTP dispõe sobre as disposições especiais dos contratos entre atletas e clubes e, nessa toada, determinou em seu parágrafo 7o: “As jogadoras têm direito a licença-maternidade durante a vigência do contrato, com remuneração equivalente à dois terços do salário contratado. Quando as condições mais benéficas forem fornecidas por legislação nacional aplicável no país de domicílio do clube, ou em um acordo coletivo de trabalho aplicável, essas condições mais benéficas deverão prevalecer.” (Tradução livre)
A atleta detém o direito de também retornar ao clube após a licença- maternidade, garantidos todos os cuidados e o direito de amamentar o seu filho, devendo o clube prover as condições médicas para o retorno seguro aos treinos e gramados.
Ao analisar o cenário internacional, passa-se para análise do direito da mulher atleta no Brasil, à luz do escopo estabelecido no art. 1o do FIFA RSTP com relação à obrigatoriedade das regras e regulamentações internacionais serem obrigatórias também a nível nacional, e incorporadas no regulamento das federações nacionais, salvo se, nas normativas nacionais, já existir previsão mais favorável (Art. 1, par. 3, (a) do FIFA RSTP).
No Brasil, não obstante à previsão constitucional da equidade de gênero e igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, importante salientar que sequer há a palavra “mulher” na Lei 9.615/98, a famigerada Lei Geral do Desporto.
Em nenhum momento se idealizou o futebol com a visão de proteção a mulher atleta, ademais, menos de meio século atrás sequer era autorizada a prática do futebol feminino, cujo argumento da proibição, equivocadamente, consistia no objeto principal do presente texto: a preservação da maternidade.
Diante da omissão da legislação jusdesportiva nacional de maneira específica, recorre-se atualmente ao art. 28, § 4o da Lei 9.615/98, cuja redação compreende à aplicação da legislação trabalhista nacional, no que a Lei Geral do Desporto for silente. Portanto, recorre-se a Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”) para garantir um mínimo legal e condições básicas para a mulher, mãe e atleta.
Aplica-se o disposto na seção V da CLT, em especial, os art. 391-A e art. 392, que estabelecem a estabilidade contratual para a mulher em estado gravídico, direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário, e demais especificidades necessárias à condição gravídica. Uma proteção para mãe e, principalmente, para o infante.
Na seara regulamentar, a Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”), diante da obrigatoriedade de incorporar as regulamentações estabelecidas pela federação internacional por força da estrutura piramidal do futebol, determina em seu regulamento que “o termo “atleta”, “técnico de futebol” ou “membro de comissão técnica” aplica-se indistintamente a homens e mulheres, com exceção dos artigos 11, parágrafo único, “c” e 84, parágrafo único, “c”, que se aplicam apenas para as mulheres”.
O Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol 2022 da CBF já incorporou a alteração elencada pela FIFA, e estabeleceu que caberá ao clube o ônus da prova acerca do registro e contrato da mulher atleta. A validade jurídica do contrato especial de trabalho desportivo não poderá estar sujeita ao fato da atleta estar grávida ou engravidar durante a sua vigência, tampouco estar em licença maternidade ou gozando de direitos relativos à maternidade em geral, tal como a amamentação, por força do art. 18quater.1 do FIFA RSTP.
Ainda não há jurisprudência conhecida sobre a aplicação desse dispositivo ou qualquer disputa solucionada pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF (“CNRD”), assim como não se tem o pleno conhecimento sobre a aplicabilidade dessas novas regulamentações nos Comitês de Resolução de Disputas da FIFA.
A única certeza que se tem é que o Futebol Feminino caminha em uma crescente e está desenvolvendo o seu produto pouco à pouco. Proibições e preconceitos atrasaram o desenvolvimento da modalidade, que hoje caminha para conquistar o seu espaço de forma autônoma e independente.
A mulher deve ter salvaguardado o seu direito de ser o que quiser. Ser atleta, ser mãe, ser livre. Ao legislador e às entidades desportivas cabem a proteção desses direitos e a necessidade de aperfeiçoar o sistema para recepcionar a especificidade da profissão e do gênero feminino. Como salientado e ora evidenciado: sempre prevalecerá a norma ou regulamentação mais protetiva.
A maioria das atletas de futebol feminino no Brasil sequer detêm da sua carteira de trabalho devidamente assinada e todos os direitos inerentes garantidos. Os clubes de futebol, em sua maioria, sustentam-se na obrigatoriedade imposta ao licenciamento dos clubes para manter as suas equipes femininas.
O profissionalismo do futebol feminino depende, essencialmente, da ativa atuação das entidades desportivas nacionais e internacionais para garantir a proteção da dignidade da pessoa humana e da mulher, proporcionando grandes mudanças e avanços como a implementação do art. 18quarter do FIFA RSTP e os reflexos gerados para todo o sistema do futebol.
É preciso compreender que o futebol feminino é uma profissão e fonte de subsistência de muitas mulheres e suas famílias, mas não só isso. A mulher atleta que deseja ser mãe, na complexidade que esta sagrada função possa alcançar, deve ser acolhida pelo seu meio de trabalho.
Milton Nascimento já declamava para o mundo a verdade do sexo nada frágil: um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta.
A verdade é que ser mulher, ser atleta de futebol, e optar por, também, ser mãe, atualmente, é um ato de resistência.
A partir de agora, todavia, não resistirão sozinhas.
* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora desse texto.
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[1] Advogada da Federação Paulista de Futebol. Mestre em Direito Internacional Desportivo pelo ISDE Law & Business School – Madrid/ESP. Pós-Graduanda em Direito Digital na Faculdade Baiana de Direito. Membro e colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDDJ).
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