O LICENCIAMENTO DE CLUBES NO FUTEBOL FEMININO COMO FERRAMENTA PARA A EVOLUÇÃO DA PROFISSIONALIZAÇÃO DA CATEGORIA

Luiza Rosa Moreira de Castilho

Luiza Soares[2]

A chegada de um novo ano e, consequentemente, de uma nova temporada para o Futebol Brasileiro, representa uma série de novos desafios para os clubes, em especial àqueles que estão sujeitos ao Licenciamento da Confederação Brasileira de Futebol[3].

Supradito documento tem como principal propósito a proteção das competições nacionais no que tange à integridade, credibilidade, transparência, valores e princípios. Ademais, o regulamento se faz basilar em termos de incentivo ao investimento e desenvolvimento do esporte, inclusive em matéria financeira, mas dentre todos esses objetivos, há também o compromisso com o futebol feminino.

O clube requerente da licença outorgada pela entidade nacional deve, como cumprimento dos encargos, possuir uma equipe principal feminina ou manter acordo de parceria com outro clube que já a possua, além de incentivar o desenvolvimento das categorias de base feminina, provendo as condições necessárias a todas. É nesse sentido que se vislumbra a necessidade não só de formar equipes femininas, como também de disputar competições e dar condições para que elas se mantenham.

Dar condições, neste caso, também se torna um atributo, ainda que a CBF tenha utilizado categoricamente a expressão “da melhor forma que [o clube requerente] puder desenvolver o esporte”. Isto é, pensar num mínimo indispensável para a salvaguarda do futebol feminino dentro da instituição para, então, o clube estar apto a ter sua licença concedida e competir pelo futebol masculino em seu respectivo campeonato.

A questão da concessão da licença carrega, justamente, a possibilidade de se graduar os requisitos de acordo com a realidade específica, o que nos leva a concluir que o contexto da obrigação do futebol feminino incorporado em um regulamento do masculino é, sim, possível e foi suficiente em um primeiro momento.

O presente artigo, no entanto, tem o intuito de pensar no futuro. É certo que o futebol feminino como produto tem se solidificado no Brasil a cada temporada, até mesmo consolidando seu público e maneira de consumo. Não é à toa que o jogo de volta na final do Campeonato Paulista Feminino 2021, apelidado de Final Majestosa, bateu recordes de transmissão, no streaming da Federação Paulista de Futebol (Paulistão Play, YouTube e Eleven), e de público, tendo sido o maior já registrado em uma partida de futebol feminino no Brasil.

O revés, porém, ainda se encontra na gestão desse futebol, já que se assevera a entrada das mulheres na modalidade, mas não há preocupação sólida com relação à sua subsistência.

Há que se considerar que o regulamento de licenças, em quaisquer das categorias, não possui caráter e tampouco intenção punitiva. Pelo contrário, é um preceito que tem a finalidade de melhorar o clube como um todo, desde a sua administração até a estrutura física, e está a um passo do desdobramento da tão exigida profissionalização. A própria FIFA, quando elenca as principais ações a serem tomadas pelas associações membro, é muito clara ao citar a incorporação de um sistema de licenciamento de clubes como uma ferramenta para elevar os padrões dos clubes e contribuir para o avanço do futebol feminino.

Quando o regulamento já existente, que é atinente ao futebol praticado por homens, traz a obrigação de criar ou manter uma equipe feminina, ele se torna absolutamente responsável pelo fomento da categoria dentro do esporte brasileiro. Por este parâmetro, todas as entidades de administração do futebol, em compromisso com as estratégias da FIFA, possuem a incumbência de fortalecer o arcabouço regulatório voltado para estimular a profissionalização. Então, as entidades de prática, como os clubes, não podem se esquivar desse engajamento, razão pela qual têm também o papel de reproduzir e cumprir algumas exigências.

Ocorre que, no momento em que a imposição existente se limita a constituição de uma equipe formada por mulheres, com condições mínimas de conservação, não se garante qualquer evolução. Ora, se a categoria revela a cada ano sua capacidade de expansão e independência, é adequado que seu fomento siga taxado como um requisito acessório da regulamentação de equipes masculinas? Exemplos estrangeiros atestam que é possível a superação dessa condição.

Organizações como a Confederação Asiática de Futebol – AFC[4] e a União das Federações Europeias de Futebol – UEFA[5] criaram seu próprio regulamento de licenças dirigido especialmente para o futebol praticado por mulheres. A Confederação Africana de Futebol – CAF também deu o exemplo ao divulgar o Relatório do Licenciamento dos Clubes[6] para a CAF Women’s Champions League 2021 que, além de tudo, demonstra a razão para a não concessão da liberação para alguns clubes que não cumpriram os critérios assentados.

Em 2020 a CONMEBOL lançou o Regulamento de Licenças de Clubes no Futebol Feminino[7], com base nas recomendações da FIFA e em harmonia com as metas que foram estabelecidas pelo próprio estatuto da entidade. Por meio dessas regras, somente as entidades de prática que estão em conformidade com as determinações da ferramenta, são consideradas aptas para participar das competições promovidas pela CONMEBOL.

Nesta toada, a Associação de Futebol Argentino – AFA também editou seu próprio Regulamento de Licenças para o Futebol Feminino, que será válido para a próxima temporada. No lançamento[8], Umberto Mucelli, assessor financeiro da entidade, foi feliz em mencionar que um simples jogo de futebol pode ser composto de um grupo de pessoas e uma bola, no entanto com o advento das competições, dos resultados e dos compromissos, surge a necessidade de se dar mais estabilidade e garantir a permanência.

A precariedade estrutural, laboral e, em alguns casos, até humanitária demonstrada por muitas agremiações, até então se mantém sob o pretexto de falta de recursos para a realização de um projeto apropriado. Neste caso, o apoio e monitoramento através de um regramento, que tenha como base o formato e a realidade atual do futebol feminino brasileiro, pode ser de grande valia na construção de um ambiente mais estável e independente.

Se em um primeiro momento era urgente que se incluísse o incentivo ao futebol feminino como uma obrigação, considerando-se o cenário de verdadeira marginalidade enfrentado pela categoria, tivemos suficientes e sólidas demonstrações de que o futebol feminino merece e pode muito mais. Ao passo que a obrigação relativa ao Regulamento de Licença de Clubes da CBF foi o pontapé inicial e essencial para que alcançássemos as importantes evoluções já mencionadas, o jogo ora se desenha de forma que é preciso lançar mão de uma nova abordagem tática.

As atuais movimentações do mercado anunciam o rumo que o futebol está tomando em nosso país, ao mesmo tempo que clamam por uma gestão mais qualificada. É importante destacarmos que um Regulamento de Licença de Clubes que considere os investimentos e incentivos adequados não só à atual realidade do futebol praticado por mulheres, mas que seja capaz de semear verdadeiramente aquilo que se espera para as próximas gerações, em conformidade com as estratégias da FIFA para o desenvolvimento da categoria, ainda não seria a solução definitiva para todos os desafios que se apresentam. Contudo, representaria um movimento meritório ao encontro da inadiável progressão.

Ao visualizar um regramento específico, o destaque para a adequação à realidade é substancial, até porque, evidentemente, não se pode exigir além do máximo possível no contexto atual. Por outro lado, a obtenção de dados que constatam as dificuldades enfrentadas para o cumprimento das premissas normativas pode se tornar um meio direcionado à perquirição de soluções para o enfrentamento dessas falhas de maneira mais eficaz.

Essa adequação passa pela implementação de exigências que propiciem condições de amadurecimento de diversos aspectos da categoria, para além daquelas previstas no Regulamento atual. Cabe ressaltar que os regulamentos das competições, por mais que possuam um papel importante na cobrança de alguns requisitos, não se fazem suficientes para a consolidação de uma estrutura adequada para a otimização das atividades.

É notório que o abismo entre as equipes, tanto no contexto estrutural como técnico, ainda se reflete nos resultados de partidas cabalmente desiguais. Neste sentido, um Regulamento de Licença conseguiria alcançar questões anteriores às competições, inclusive fazendo o papel de incentivar as entidades de prática desportiva na busca por esta estruturação e elevando o nível de competitividade.

As conquistas que culminaram no sucesso da Copa do Mundo de 2019, os frutos colhidos em seguida e os exemplos das confederações internacionais nos apontam que é o momento de levar adiante o esforço pela profissionalização.

Logo, a confecção de um instrumento que permeia toda a esfera do clube, propondo critérios desportivos, sanitários, médicos, financeiros e estruturais que sejam capazes de acompanhar as especificidades da categoria, sem afetar as ações que construirão o futuro, ganha força como uma ferramenta para impulsionar o seu desenvolvimento nos clubes, aumentando sua visibilidade, suscitando a profissionalização e, consequentemente, os direitos de todos os envolvidos.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade das autoras deste texto.


[1] Advogada. Pós-graduada em Compliance e Gestão de Riscos. Diplomada em Gênero e Esporte e Gestão Esportiva. Procuradora na 6ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol. Auditora na 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Judô. Presidente Brasileira do Capítulo Esportes da All Ladies League. Membro filiado ao IBDD.

[2] Advogada. Pós-graduanda em Direito Desportivo pelo Centro Educacional Renato Saraiva. Pós-graduanda em Direitos da Mulher pela Faculdade Legale. Pós-graduanda em Advocacia Corporativa pela ESA/MG. Membro da Comissão de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Membro do Grupo de Estudos de Direito Desportivo do IBDD. Membro filiado ao IBDD.

[3] CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Regulamento de Licença de Clubes 2021. Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202108/20210809211154_597.pdf>.

[4] ASIAN FOOTBALL CONFEDERATION. AFC Club Licensing Regulations 2021. Disponível em: <https://assets.the-afc.com/downloads/club-licensing/AFC-Club-Licensing-Regulations-2021-as-at-2-December-2021.pdf>.

[5] UNION OF EUROPEAN FOOTBALL ASSOCIATIONS. Club Licensing and Financial Fair Play Regulations. Disponível em: <https://documents.uefa.com/v/u/MFxeqLNKelkYyh5JSafuhg>.

[6] CONFÉDÉRATION AFRICAINE DE FOOTBALL. Club Licensing Status Report 2021. Disponível em: <https://images.cafonline.com/image/upload/caf-prd/d9o4edc266lnq7u8fjru.pdf>.

[7] CONFEDERACIÓN SUDAMERICANA DE FÚTBOL. Reglamento de Licencias de Clubes en el Fútbol Femenino 2020. Disponível em: <https://www.conmebol.com/documentos/reglamento-de-licencias-de-clubes-en-el-futbol-femenino/>.

[8] ASOCIACIÓN DE FÚTBOL ARGENTINO. Se presentó en la AFA el nuevo Reglamento de Licencia de Clubes de Fútbol Femenino. Disponível em: <https://www.afa.com.ar/en/posts/se-presento-en-afa-el-nuevo-reglamento-de-licencia-de-clubes-de-futbol-femenino>.

 

Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/2IX5kfrTNVlsUjsP31hiQN