Leonardo Lucchese Meinerz
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Com a Copa do Mundo se aproximando, bem como em 2021 foram os Jogos Olímpicos, cada vez mais os olhos se voltam ao esporte, e a ele, atrelados os debates sobre sua influência e fascinante mundo, como no caso que se traz à baila neste momento, em uma pequena e humilde reflexão filosófica.
Em rápida síntese, apresentam-se os atores deste texto. Inicialmente, o princípio da autonomia desportiva, incluído na constituição federal de 1988 pelo artigo 217, I, descrito pelo saudoso professor Álvaro Melo Filho como sendo a pedra basilar do ordenamento jurídico desportivo brasileiro, e que vem como o dever do estado em respeitar a autonomia das entidades desportivas quanto ao seu funcionamento interno[2].
Doutra maneira, apresenta-se o segundo ator, a dita teoria do jurista alemão Otto Bachof[3], que em simples linhas, refere-se a ideia de que poderiam existir normas constitucionais inconstitucionais, ainda que decorrentes do poder constituinte originário, quando da ocorrência de embate com norma considerada pré-estatal[4].
Mas para que possa ser declarado o confronto, é necessário que outro princípio “entre em campo” (ou no debate): a soberania estatal Localizada logo no artigo 1º, I, de nossa Constituição Federal, é considerada por Caroline dos Santos[5] como sendo pré-estatal justamente por ser um dos pilares do próprio estado democrático de direito.
Tal princípio, de origem mais antiga (na mais precisa análise dada pelos tratados que formaram a paz de Westphalia, no ano de 1648), refere-se, em rápida síntese dada por Maliska[6], como sendo, em análise interna (da política nacional), a possibilidade do Estado ser soberano em suas decisões quando no seu território, e no sentido externo (da política internacional) a chamada igualdade formal entre os estados, estando eles no mesmo nível e não se subordinando uns aos outros.
Dadas as pinceladas iniciais, surge o seguinte problema: Em que pese não seja aceita a teoria das normas constitucionais inconstitucionais no estado brasileiro[7], poderia, sob sua vigência, ser declarada a inconstitucionalidade do princípio constitucional da Autonomia Desportiva, em caso de afronta à Soberania Estatal?
Este questionamento surge pelo não tão secreto debate entre o quanto se dobram os estados nas vontades das entidades desportivas, sejam nacionais ou internacionais, motivado pela pergunta “até onde o esporte deve influenciar o andamento de uma nação(?)”, que possivelmente ressurgirá com força em um ano de Copa do Mundo.
A resposta para o ventilado problema principal, passando pelos cenários interno e externo, em rápidas linhas e com o chamado “spoiler” ao leitor, é um sonoro “não”.
Passada a prévia da conclusão, cita-se a partir desta provocação o que sugere o princípio da autonomia desportiva, que segundo Barroso[8], poderia ser dito como a tentativa de libertar o esporte das paixões exacerbadas e da política excessiva. Versão um tanto filosófica, mas essencial, visto que podemos não só citar exemplos brasileiros da política incutida forçosamente no esporte.
Como clássicos exemplos, podemos citar a própria ascensão do regime nazista, quando nos anos precedentes a Segunda Guerra Mundial, buscou difundir suas visões com a realização dos Jogos Olímpicos de 1936 na cidade de Berlim[9].
Assim, não é equivocada a visão da necessidade de separação de estado e gestão desportiva, promovendo neste sentido, como já sugerido nos primórdios do olimpismo moderno pelo icônico Barão de Coubertin, a neutralidade política do esporte.
Tal prerrogativa leva a outra visão da autonomia desportiva, dada pelo direito internacional, ou como tratado no direito desportivo, o direito transnacional, encabeçado neste meandre pela chamada lex sportiva (importante citar que este trabalho utiliza tal termo em seu sentido amplo, no qual é formada pelas normas dos corpos reguladores, aliados aos entendimentos da Court of Arbitration for Sport, o conhecido CAS[10]).
Neste complexo corpo jurídico, surgem novos atores, não mais apenas estados nacionais, e sim organizações privadas, frutos do jusprivativismo intrínseco ao esporte, e estes emitem suas regulamentações. Poderia ser discorrido acerca de suas motivações para tal, com extenso embasamento histórico e somando-se outros exemplos aos já citados Jogos Olímpicos de Berlim 1936, porém, seriam irrelevantes para este trabalho. Fato é que a autonomia desportiva está neles presente.
Destarte, a autonomia desportiva é prevista em diversos regulamentos, a citar especialmente o 5º princípio fundamental do olimpismo, presente na Carta Olímpica[11], que também a insere em outros momentos, como em suas regras 26 (principalmente itens 1.1 e 1.3) e 27 (item 6). Suas Federações Internacionais filiadas também a materializam, podendo ser citada a FIFA, que em seu estatuto utiliza a regra 19.1 como a defesa contra intervenções de terceiros[12].
Estes regulamentos, por óbvio, geram punições quando de seu desrespeito pela ingerência estatal, já experimentadas por entidades como a Federação Nigeriana de Futebol, interessante caso que pode ser melhor entendido pela literatura de Hylton[13], ou ao menos ameaçadas, como ocorreu com o Comitê Olímpico Nacional da Itália (CONI) pela promulgação da Lei nº 86/2019, que conforme Pittalis[14], culminou na retirada de poderes e funções do comitê.
Fato é que não se materializaram punições por parte do COI, pois sua pressão foi suficiente para fazer com que o estado italiano publicasse os Decretos Legislativos 36/2021, 37/2021, 38/2021, 39/2021 e 40/2021, alterando a Lei nº 86/2019, e devolvendo ao CONI suas atribuições[15].
Dados os exemplos, o que deve restar claro é que as regras estão ali postas como obrigatórias aos seus filiados, mas não pode ser dito o mesmo quando se fala de não-filiados, pois estamos falando de um sistema transnacional pautado também no livre associativismo[16].
Ou seja, o membro filiado não precisa estar filiado, e suas motivações para o fazer não são relevantes para este trabalho, visto que o debate se restringe neste ponto ao ente estatal. Em que pese o estado não faça parte por si só da Lex Sportiva (visto que é jusprivativista), salvo em questões pontuais como a realização de eventos, a exemplo da Copa do Mundo de 2014, que motivou a promulgação da Lei Geral da Copa[17], o interesse se localiza no esporte.
Essa inserção se dá justificada em diversos aspectos, como no âmbito financeiro, ou como se sugere, em política de Soft Power, que conforme aufere Lekakis[18], pode ser o esporte uma grande fonte deste modelo de influência estatal no cenário internacional, ou apenas pela maior possibilidade do ente estatal de cumprir com seu dever de fomento ao esporte, comando dado pela Constituição Federal em seu artigo 217[19].
Neste batente, e seja qual for o motivo, dentre os supracitados ou não, e já conduzindo o estudo para a sua conclusão, os Estados se submetem à lex sportiva, embora não façam parte diretamente dela, e isto inclui a possibilidade de cumprimento de suas normativas por parte das entidades privadas, localizadas no território nacional, o que conduz neste caso à autonomia desportiva.
A esta, se busca ainda a interpretação filosófica de afastamento das paixões e injunções políticas, ventiladas anteriormente, e em todas as visões. O que possibilita a autonomia é justamente o fato do Estado poder decidir.
Esta decisão se materializa pela utilização de sua soberania estatal, sendo assim, a autonomia das entidades desportivas uma concessão sua, e não uma independência propriamente dita. Ainda, conforme aufere Melo Filho[20], independência é palavra errônea, visto que se trata de autonomia limitada a gestão interna das entidades e no âmbito competitivo.
Isto posto, conclui-se esta breve reflexão filosófica, com novamente a resposta negativa para o problema ventilado, visto que, utilizando-se a visão hipotética da aceitação em território nacional da teoria de Otto Bachof, não poderia ser declarado inconstitucional o artigo 217, I, da Constituição Federal, já que ausente afronta ao valor pré-estatal da Soberania Estatal (artigo 1, I, CF/88), coexistindo eles harmonicamente no campo jurídico, e sendo o primeiro apenas fruto da expressão de vontade do segundo.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
[1] Acadêmico de direito do 9º semestre no Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), membro filiado ao Grupo de Estudos Direito e Desporto São Judas e membro filiado ao IBDD.
[2] MELO FILHO, Álvaro. Da autonomia desportiva no contexto constitucional. Revista do curso de direito da UFC, Fortaleza, v. 25, p. 33-46, 2006. Disponível em: http://periodicos.ufc.br/nomos/article/view/20022. Acesso em: 27 jun. 2022.
[3] Otto Bachof foi um jurista alemão que, além de professor de Direito Público, exerceu a função de Juiz do Tribunal Estadual de Baden-Württemberg. É considerado um dos principais nomes do Direito Administrativo alemão.
[4] BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Tradução: José Manuel Cardoso Costa. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2014.
[5] SANTOS, Caroline Costa. A soberania estatal: evolução histórica, desenvolvimento no Brasil e perspectivas atuais. Revista de Doutrina e Jurisprudência. 51. Brasília. Vol. 107, N°2, p. 398-417, 2016. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/revistas/doutrina-juridica/revista-v-107-n-2. Acesso em: 27 jun. 2022.
[6] MALISKA, Marcos Augusto. Art. 1º, I: a soberania. In: CANOTILHO, J.J Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 238-243. Disponível em: https://joserobertoafonso.com.br/comentarios-a-constituicaocanotilho-et-al/. Acesso em: 28 jun. 2022.
[7] Em regra, já pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, a norma constitucional é, como o nome diz, constitucional, justamente por estar presente no texto magno, pelo princípio da unidade constitucional). IZOLAN, Ana Maria. A (im)possibilidade de existência de inconstitucionalidade das normas constitucionais originárias: a necessidade de uma releitura da posição brasileira atual. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 13, ed. 3, p. 1232-1249, 18 dez. 2018. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/rdp/issue/view/517. Acesso em: 1 jun. 2022.
[8] BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[9] MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro. Jogos Olímpicos de Berlim 1936: o uso do esporte para fins nada esportivos. Comunicação e Entretenimento: Práticas Sociais, Indústrias e Linguagens, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, ed. 36, p. 95/108, 2012. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/3283. Acesso em: 27 maio 2022.
[10] OLIVEIRA, Leonardo Valladares Pacheco de. Lex sportiva as the contractual governing law. The International Sports Law Journal, Haia, ed. 17, p. 116, 26 maio 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s40318-017-0116-5. Acesso em: 27 maio 2022.
[11] COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL. Carta Olímpica. Lausanne, 2020. Disponível em: https://library.olympics.com/Default/doc/SYRACUSE/355508/olympic-charter-in-forceas-from-17-july-2020-international-olympic-committee?_lg=en-GB#:~:text=Your%20ID- ,Olympic%20charter%20%3A%20in%20force%20as%20from,July%202020%20%2F%20Int ernational%20Olympic%20Committee&text=The%20Olympic%20Charter%20is%20the,by %20the%20International%20Olympic%20Committee. Acesso em: 26 jun. 2022.
[12] Fédération Internationale de Football Association. FIFA Statutes: may 2022 edition. Zurique, 2022. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/3815fa68bd9f4ad8/original/FIFA_Statutes_2022-EN.pdf. Acesso em: 4 jun. 2022.
[13] HYLTON, J. Gordon. How FIFA Used the Principle of Autonomy of Sport to Shield Corruption in the Sepp Blatter Era. Maryland Journal of International Law, Baltimore, v. 32, ed. 1, p. 134-159, 11 jun. 2017. Disponível em: 36 https://digitalcommons.law.umaryland.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1659&context=mjil. Acesso em: 31 maio 2022.
[14] PITTALIS, Margherita. L’attuazione della legge delega 8 agosto 2019, n. 86 in tema di ordinamento sportivo, professioni sportive e semplificazione. Il Corriere Giuridico, Milão, ed. 6/2021, p. 737-754, 2 jul. 2021. Disponível em: https://www.digies.unirc.it/documentazione/materiale_didattico/1465_2021_529_38670.pdf. Acesso em: 26 jun. 2022.
[15] Ibid.
[16] NEGÓCIO, Ramon. Da soberania jurídica à nacionalidade: da localização estatal à deslocalização desportiva. Revista jurídica da FA7, Fortaleza, v. 18, n. 1, p. 155-168, 2021. Disponível em: https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/revistajuridica/issue/view/49. Acesso em: 27 jun. 2022.
[17] Assunto bem tratado em: CANAN, Felipe et al. A legitimidade dos dispositivos da Lei Geral da Copa. Farol: Revista de estudos organizacionais e sociedade, Belo Horizonte, v. 4, ed. 10, p. 870-914, 19 out. 2017. Disponível em: https://revistas.face.ufmg.br/index.php/farol/article/view/3285. Acesso em: 29 maio 2022.
[18] LEKAKIS, Nickos. The Limits of Soft Power-Sports Diplomacy Templates in IR Research. E-International Relations, Reino Unido, 23 jun. 2019. Disponível em: https://www.e-ir.info/2019/06/23/the-limits-of-soft-power-sports-diplomacy-templates-in-irresearch/. Acesso em: 27 jun. 2022
[19] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988
[20] Melo Filho, Op. Cit.
Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/3thyrrVtO8SpSDBUpi94aW?si=86db06cf5d55436c