O QUE RESTA SOB A TINTA? UMA ANÁLISE DO ARTIGO 43 DO RGC DA CBF 2023

Pitágoras Dytz[1]

Membro filiado do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Era impossível não notar a diferença. O que outrora fora um mar de banners com a marca da empresa que, por contrato, dá nome àquela arena, agora estava coberto de azul. A inusitada cena não passou despercebida nem àqueles que foram ao Allianz Parque na noite de 12 de abril de 2023, nem aos milhares de espectadores que, por todo tipo de telas, acompanharam a partida entre Palmeiras e Tombense pela Copa do Brasil, edição 2023, competição organizada pela Confederação Brasileira de Futebol – CBF.

E por que, parafraseando Marisa Monte em Gentileza, apagaram tudo, pintaram tudo, as palavras e símbolos nas arquibancadas, e em outras partes do estádio, ficaram cobertas de ‘tinta’? Simples: porque a CBF assim determinou.

Mas, calma, a ordem não surgiu na calada da tarde, nas horas que antecederam o começo da partida vencida pelo mandante. Não, nada disso. Essa determinação advém de uma imposição prevista no artigo 43 do Regulamento Geral de Competições, editado pela Confederação para o ano de 2023 (RGC/2023), que estabelece que, salvo disposição em contrário por parte da CBF, não será permitida a utilização das arquibancadas e/ou cadeiras para exposição de marcas comerciais, édito que, segundo consta, teria sido decidido em conjunto com os clubes. Se assim o foi, os únicos que, teoricamente, poderiam se surpreender com a cena com ares de censura comercial – e, de fato, o foram –, seriam os torcedores, pois os dirigentes, que presumidamente participaram da elaboração do novo Regulamento, não podem afirmar terem sido vítimas de um engodo qualquer, vítimas do ludibrio, em praça pública, de um prestidigitador que, com habilidade e a desatenção do outro, não coloca a bolinha sob quaisquer dos copos entregues à escolha do apostador e, sem outro esforço que não achar o ‘sortudo’ da vez, lhe arranca o dinheiro e a esperança que ainda possa ter.

Exceto se demonstrar que o jogo no qual perdera o dinheiro da passagem, quiçá o do ingresso para um jogo de futebol a que pretendia ir, fora armado unicamente para prejudicá-lo, ao apostador enganado na praça não restará outro caminho que não enfiar a viola no saco e, quem sabe, um tanto ensimesmado, coçando a cabeça, gesto que trai o ar desconfiado de que algo não saiu como deveria, dar as costas àquilo e seguir seu rumo tentando esquecer, sabendo, lá no fundo, que enquanto houver incautos, e pretensos, sabidos, haverá enganadores esperando para lhes passar a perna.

Mas, e os clubes, eles também devem virar as costas e seguir suas vidas como se mandar pintar muros, cobrir arquibancadas, cadeiras e outras partes dos locais em que jogam, nos quais haja publicidade de parceiros comerciais, fosse apenas um sinal de que a sorte lhe virara as costas, um recado de que talvez amanhã seja o seu dia, pois hoje é que não o é, ou há um outro caminho pelo qual enveredar e que, mesmo que não provada a fraude ou o intuito do engano, lhes permita preservar direitos próprios e alheios?

Pois eu acredito que sim, há uma vereda. No caso da interdição à exploração de publicidade em arquibancadas e outras partes do estádio por parte de seus proprietários, ou dos clubes que neles mandam seus jogos, entendo que eles têm direito a serem compensados pelas perdas decorrentes dessa imposição regulamentar.

Já faz parte da ‘semiótica esportiva’ nos valermos da figura de uma pirâmide quando nos referirmos à organização administrativa das entidades dedicadas à prática esportiva, especialmente sob o viés profissional. No caso do futebol, coloca-se a FIFA lá em cima e, em direção à base, as demais entidades, estando atletas e clubes na base. Às federações nacionais, como a CBF, confere-se um espaço intermediário. Para assegurar que a estrutura piramidal não se arruíne, concebeu-se que há uma relação de subordinação entre elas – necessária e inarredável – que compreende e é regulada por um feixe de direitos e obrigações aptos a conformar a chamada Lex Sportiva. Segundo essa concepção, as entidades que se encontrem na parte superior da estrutura gozariam de um pretenso poder hierárquico, o que lhes permitiria estabelecer, como bem lhes convier, regras e condições para aquelas que estejam abaixo, limitando ou vedando, inclusive, quaisquer ações contestatórias – vide artigo 116 do RGC/2022, ou 136 do RGC/2023.

Num simulacro de decisão democrática, invoca-se a garantia de participação ativa das entidades na tomada das decisões que as vinculem, ou que gerem efeitos sobre si, que, assim, estariam livremente empenhando sua vontade. Entretanto, com arrimo nas lições de Tatiana Mesquita Nunes[2], afirmo que livres não são, pois, a própria formatação sistêmica coloca essas entidades ‘superiores’ em posição que favorece abuso de posição em relação às demais. Como se verá, o artigo 43 do RGC/2023 é apenas um exemplo disso.

Sob esse prisma, a Teoria Geral dos Contratos, que informa e ganha concretude especial, mas não exclusivamente, no Código Civil de 2002, não deixa dúvidas não apenas de que um contrato firmado deve ser cumprido, e de boa-fé, mas também que ele só pode alcançar [e só gerará seus efeitos primordialmente sobre] aqueles que integram a relação contratual, não afetando terceiros alheios ao negócio jurídico. A isso se dá o nome de princípio da relatividade dos contratos.

Ou seja, exceto em algumas hipóteses, se um terceiro não fizer parte do contrato, ele não terá legitimidade para exigir o cumprimento das obrigações avençadas nem poderá protestar quaisquer direitos com base no acordo firmado. Por outro lado, em regra, esse terceiro não poderá ser prejudicado pelas estipulações desse contrato, salvo se o contrato assim dispuser, como na estipulação em favor de terceiros, por exemplo.

No caso do artigo 43 do RGC/2023, baseado, salvo melhor juízo, naquele pretenso poder hierárquico próprio da estrutura piramidal do sistema esportivo, e mesmo que se proteste um pretenso, porém infundado, conflito entre normas públicas [estatais] privadas, ele não poderia prevalecer sobre as normas estatais que garantem os contratos firmados no Brasil.

Embora a legislação brasileira reconheça a abertura para a aplicabilidade da referida Lex Sportiva – § 1º do artigo 1º da Lei Pelé – ela a limita ao estabelecimento de regras de prática da modalidade, e desde que aceitas pelas entidades. Mas tal abertura não confere prevalência dos éditos fundados na abstração da tal lex sobre as normas emanadas do Estado. Antes pelo contrário. Não é a primeira vez que afirmo, nem será a última, que o § 1º do artigo 1º da Lei Pelé dá concretude à Teoria Dualista em termos de organização jus-desportiva, ou seja, para que uma norma que se insira na dita Lex Sportiva seja válida e eficaz no Brasil – excepcionadas às referentes às regras de jogo – ela deverá estar em consonância com a Constituição Federal e as normas estatais brasileiras.

Portanto, de forma alguma, tais normas se sobrepõem – ou poderiam se sobrepor – àquelas que integram a ordem estatal, a qual reconhece, e assegura, o direito dos contratos.

Nessa quadra de ideias, caso não haja nos contratos firmados pelos clubes com seus patrocinadores nenhuma previsão que torne a CBF parte da avença ou estipule algo em seu favor, a imposição da limitação à publicidade inserta no artigo 43 do RGC/2023 constituirá uma infringência ilegal por parte da entidade aos contratos firmados pelos clubes cujo objeto envolva a publicidade em estádios. Consequentemente, inexistindo disposição nesse sentido, caberia aos prejudicados pela medida exorbitante o direito à indenização pelos prejuízos causados, opondo, de um lado, patrocinadores e, de outro, clubes e CBF, inclusive como denunciada à lide para que, tendo o clube que arcar com os prejuízos decorrentes da imposição regulamentar, possa vir a exigir da confederação o devido ressarcimento. E tal discussão não ficará sob o talante dos órgãos instituídos pela CBF, tal como previsto no artigo 112 do RGC/2023, uma vez que os patrocinadores não se vinculam a tal código, sem falar que a franquia prevista no artigo 217 da Constituição Federal não alcança discussões dessa natureza, restringindo-se a questões meramente disciplinares, tisnando o artigo 112 de inconstitucionalidade.

Veja-se que, mesmo diante da disposição do referido artigo 43, a CBF é terceira na relação contratual nas avenças que sustentem as publicidades vedadas ou, pelo menos, condicionadas e, como tal, não pode impor sua vontade aos contratantes, mormente em contratos firmados antes da entrada em vigor do RGC/2023.

Mas consideremos agora a situação sob outro enfoque. Suponhamos que as disposições regulamentares emanadas da CBF tivessem prominência em relação à legislação estatal, e colocando a CBF em posição de – mal comparando, esteja claro – tal qual o Estado, poder estabelecer a vinculação da publicidade ou como uma limitação administrativa – uma ocupação temporária, p. ex, lembrando sempre que os estádios não pertencem à confederação – ou, ao editar normas, dando ensejo ao chamado fato do príncipe, figura típico de Direito Público, em especial no Administrativo. Qual o efeito que isso traria para os contratos firmados entre as partes?

No primeiro caso, a medida seria questionável administrativa e/ou judicialmente por qualquer dos atingidos, pois à limitação faltaria o elemento finalístico – atendimento a exigências de bem-estar social, uma finalidade pública, o que a regra do artigo 43 não ostenta e, mesmo se considerada legal, limitação dessa natureza imporia à CBF o dever de indenizar aqueles que a suportaram, na extensão das perdas decorrentes da intervenção, leia-se: prejuízos contratuais pela inexecução forçada pela limitação ao exercício da propriedade.

No segundo, considerando a alteração unilateral, imperativa, geral e indireta, sobre os contratos então vigentes, como a atuação se faria na condição de Administração (contratante) – contratado, estaria autorizada, ou exigida, a revisão do pacto para que se restabelecesse o equilíbrio entre as obrigações assumidas entre as partes, inclusive sob o aspecto econômico-financeiro, evitando-se enriquecimento ilícito, podendo-se, inclusive, dependendo da prejudicialidade da imposição ‘estatal’ sobre a execução contratual, se chegar à sua rescisão.

Ou seja, em ambos os casos, à falta de previsão contratual expressa, à CBF caberia indenizar os clubes pelos danos causados a partir da limitação imposta com a aplicação do artigo 43 do RGC/2023. Nem mesmo o Estado estaria isento dessa obrigação.

Cabe salientar ainda que o interdito somente surgiu este ano, não podendo, portanto, alcançar, inclusive para limitar seus efeitos, contratos que tenham sido firmados anteriormente – como é o caso dos que se referem aos naming rights, e ainda que sem a sua anuência, tal como prevê em dispositivos dos seus regimentos gerais de competição, como o inciso II do artigo 4º, o parágrafo único do artigo 101 e o caput do artigo 106, todos do regramento referente a 2022, ou o inciso II do artigo 4º e o parágrafo único do artigo 112 do atual. A seara esportiva não está isenta do dever de respeitar as garantias constitucionais, inclusive a que garante a irretroatividade de normas.

Aliás, chamaria a atenção o fato de o RGC/2023 não reproduzir o que dispunha o caput do artigo 106 do RGC/2022, que previa que todos os direitos comerciais e audiovisuais das competições pertencem à CBF, com exceção das situações previstas nos contratos que tenham sido ou venham a ser firmados pelos Clubes, com a prévia anuência da CBF, não fosse se reconhecer a insistente tentativa de fazer prevalecer uma interpretação tacanha do que seja Lex Sportiva em detrimento de garantias e direitos emanados e protegidos da e pela ordem estatal, soberana.

Não se deve esquecer que nem mesmo por ocasião da realização dos Eventos FIFA, a publicidade já existente nos estabelecimentos que estivessem no perímetro definido para fins de eventual qualificação de ações como marketing por intrusão – emboscada e por associação –, a proteção contratual e comercial devida aos contratos em vigor foi desrespeitada ou anulada. Antes pelo contrário. Em respeito às regras do Direito brasileiro, que haurem da soberania estatal sua validade e eficácia, o legislador reafirmou que a delimitação não prejudicaria as atividades dos estabelecimentos regularmente em funcionamento, inclusive seus dísticos publicitários, estipulando apenas que não fossem criadas para tirar proveito indevido do próprio evento, reforçando não apenas o compromisso do País com o respeito aos contratos em vigor , mas a evidente e inarredável preponderância da ordem estatal sobre interesses privados, mediando-os, conforme estabelece o dispositivo constitucional invocado por ele – artigo § 2º do 11 da Lei nº 12.663, de 2012, o artigo 170 da Constituição Federal, exatamente o que fala que a ordem econômica brasileira se pauta na valorização do trabalho e no princípio da propriedade privada, cuja limitações ao exercício somente o Estado pode impor. E, tudo isso, através de lei!

Além disso, cabe destacar que, à primeira vista, a medida limitadora parece despida de efetivo enforcement, uma vez que o clube que não a cumprir não pode ser impedido de participar da competição, eis que isso iria de encontro à proibição prevista no artigo 10 do Estatuto do Torcedor, que estabelece que a sua participação em competições se dê com base em critério técnico, nem poderia ser suspenso ou desfiliado da entidade de administração sem antes haver um julgamento, e decisão favorável, no âmbito da Justiça Esportiva, ex vi do § 2º do artigo 48 da Lei Pelé.

Então, só resta aos clubes abrirem os olhos e estarem atentos às artimanhas de um eventual prestidigitador que, afirmando que a bolinha – seus interesses – estará sob um dos copinhos da Lex Sportiva, ele não o esconda entre os dedos, e ainda ecoando Marisa Monte, só quando tudo estiver pintado de cinza, verde, preto, vermelho, anil, se perceba que, sob as camadas de tinta, sob o colorido da censura comercial sem fundamento legal não ficaram apenas direitos, mas estão estampados os laivos da confederada esperteza!

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.

[1] Escritor. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito/UFRGS. Advogado da União. Membro da Consultoria Jurídica Ministério do Esporte, 2011-16. Consultor Jurídico junto ao ME, 2013-16. Diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal da AGU, 2016-18. Auditor do STJD/Voleibol de 2016-20. Membro da Secretaria de Análise de Atos Normativos da AGU. Professor de Direito Desportivo. Membro filiado ao IBDD.

[2] NUNES, Tatiana Mesquita. Olímpia e o Leviatã: a participação do Estado para garantia da integridade no Esporte. Belo Horizonte: Fórum, 2022.