O REGIME CONCENTRADO DE EXECUÇÕES DA LEI nº 14.193 de 2021

Tullo Cavallazzi Filho
Acadêmico da ANDD e Membro Filiado ao IBDD

A lei nº 14.193, editada em 6 de agosto de 2021 (“Lei da SAF”), instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”) e, juntamente com a criação de uma nova formatação societária para os clubes de futebol, cuidou de estabelecer formas de pagamentos dos passivos das entidades desportivas[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][1]. Sob esse prisma, propomos este sucinto estudo, que tem como objetivo identificar a aplicabilidade da norma aos clubes de futebol que não são ou ainda não se transformaram em SAF, senão vejamos.

Inicie-se lembrando que a preocupação do legislador em permitir mecanismos de pagamentos dos passivos gerados pelos clubes de futebol encontra justificativa no espírito da recuperação estruturada das entidades desportivas que é, a nosso ver, a espinha dorsal da Lei da SAF, uma vez que possibilita não só a  reestruturação financeira das entidades e o soerguimento dos clubes de futebol, como também confere um melhor ambiente de investimento a estes entes que, além da indiscutível função social, ocupam espaço de destaque no mercado do entretenimento, com importante reflexo na economia e na geração de empregos.[2]

Assim, ao completar um ano de sua edição, a norma que chega a ser denominada por muitos de “marco regulatório do futebol brasileiro”[3] já demonstra plena efetividade. Não só constatamos o aumento do número de clubes que passaram a optar pelo modelo SAF, como também a existência de outros que, ainda não convertidos no novo modelo societário, já optam e beneficiam-se dos mecanismos da Lei da SAF com a finalidade de iniciar seus processos de reestruturação.

Para tanto, a aplicação da novel estrutura legal vem demandado da doutrina do Direito Desportivo e do Poder Judiciário um amplo debate e interpretações jurisprudenciais que certamente trarão plena adequação ao espírito desejado pelo legislador e às necessidades do “mercado da bola”.

Sendo o entretenimento e, neste caso, o futebol, atividade que compõe um mercado que gira centenas de milhões de dólares em todo o mundo, o que se espera de uma norma como a Lei da SAF é a sua plena adequação à realidade econômica de todos os entes por ela regidos. Um bom exemplo da necessidade de adequação da lei à realidade socioeconômica dos entes por ela regidos foi vivido muito recentemente pelos operadores jurídicos nacionais e com grande sucesso no caso da lei 11.101/2005 (“Lei de Recuperação de Empresas”). Foi a construção jurisprudencial e o aperfeiçoamento desta lei que desde sua edição agregou muitas soluções e experiências concretas, tornando-se uma norma prática e reconhecida pelo mercado e pela sociedade.

Assim, diante de tantas possibilidades para a estruturação das dívidas dos clubes de futebol, uma delas vem ganhando amplo destaque e, por este motivo, é o objeto do presente artigo: o regime concentrado de execuções. É por meio dessa alternativa que os clubes de futebol podem organizar imediatamente seus passivos e submeter os credores em regime de concurso, garantindo a todos eles um tratamento seguro e igualitário. É também através dessa modalidade de quitação de obrigações do “clube original” que a segurança jurídica e a organização dos planos de reestruturação financeira das entidades conseguem ganhar contornos mais concretos.

O fundamento jurídico está na segunda hipótese trazida pelo artigo 13 da Lei da SAF, que estabeleceu três modos de quitação de obrigações: (a) pagamento direto aos credores, (b) regime centralizado de execuções ou (c) recuperação judicial ou extrajudicial.

Segundo o próprio parecer jurídico que embasou a relatoria do projeto de lei “a inspiração se deu no âmbito do Plano Especial de Pagamento Trabalhista (PEPT), largamente utilizado por tribunais espalhados no País, em que a parte executada requer, ao Presidente do Tribunal, a análise, segundo critérios de oportunidade e conveniência, da concessão do PEPT a fim de evitar penhoras ou ordens de bloqueio de valores decorrentes do cumprimento de decisões judiciais trabalhistas, prejudicando, por consequência, o soerguimento da sua atividade econômica, bem como o adimplemento de obrigações de credores de natureza diversas.”

A possibilidade de reunião de todos os processos de execução, inicialmente testada no âmbito da Justiça do Trabalho é, a nosso ver, duplamente relevante.

A uma, porque demonstra que o Regime de Centralizado de Execuções (que pela Lei da SAF pode ocorrer com passivos trabalhistas e passivos cíveis) é uma experiência amplamente testada no âmbito dos Tribunais, gozando de credibilidade e de sucesso prático.

A duas, porque a Lei da SAF utiliza tal experiência para aperfeiçoar o regime, incutindo de forma mais efetiva na legislação desportiva o princípio da par conditio creditorum,[4] aplicável às legislações de insolvências, confirmando assim que a Lei da SAF se cerca de dois efetivos dispositivos criados para evitar inconsistências no concurso de credores, já testados com amplo sucesso no meio empresarial e nos entes econômicos nacionais.

Para tanto, a Lei da SAF estabelece que o processamento e a organização do Regime Centralizado de Execuções devem observar competência, critérios e procedimentos específicos. Em rápidas pinceladas, a norma indica “o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, quanto às dívidas trabalhistas” e o “Presidente do Tribunal de Justiça, quanto às dívidas de natureza civil” como as autoridades judiciárias competentes para o (a) recebimento e (b) a concessão do requerimento.

Alguns Tribunais já deferiram requerimentos de Regime Centralizado de Execuções. São os casos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para Vasco da Gama e Botafogo, Tribunal de Justiça de São Paulo para Portuguesa de Desportos e Corinthians[5] e, mais recentemente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina no caso do Avaí Futebol Clube, cujo despacho merece destaque, porque embora recebido e deferido pelo Presidente do Tribunal de Justiça, a competência pela análise do plano restou delegada:

(…) o pedido para a instauração do regime centralizador das execuções deve ser deferido, mas sua continuidade à apresentação do já citado plano de credores e dos documentos essenciais fixados na norma legal regente.

Estabeleço como juízo centralizador a Vara de Cumprimento de Sentenças Cíveis e Execuções Extrajudiciais da comarca da Capital, ante a afinidade do pelito de sua competência jurisdicional com a matéria aqui versada. (Petição Cível – Presidência – 5046574-84.2022.8.24.000/SC).

Todavia, se há consenso absoluto quanto à competência dos Tribunais[6] para o recebimento do requerimento e seu deferimento, mesma concordância não há, principalmente entre os doutrinadores, acerca da exigência de que o clube de futebol tenha que se tornar SAF para usufruir de todos os benefícios da Lei da SAF. Daí que uma das perguntas lançadas é: a constituição da SAF é condição obrigatória para que o clube originário possa requerer o Regime Centralizado de Execuções?

A resposta é: não! Não há necessidade e nem exigência de que os clubes de futebol se tornem SAF para que possam usufruir dessa modalidade de reestruturação prevista pela Lei da SAF. No exemplo acima foram citados vários clubes que requereram o Regime Centralizado de Execuções sem serem Sociedades Anônimas do Futebol. E são vários os motivos que levam à conclusão de que qualquer clube de futebol, independentemente de sua constituição associativa ou societária, pode obter o Regime Centralizado de Execuções.

Um deles é que, ao não permitir que um clube de futebol usufrua dos mecanismos de recuperação proporcionados pela Lei, se estaria negando, em desrespeito ao princípio da igualdade, aquele que é um dos principais objetivos da Lei: a reorganização financeira do próprio futebol brasileiro.

Uma norma como a Lei da SAF, para que seja eficaz e atinja seus objetivos necessita que seja garantida igualdade a todos os integrantes do sistema. Ao destinar os efeitos da norma a todos os clubes de futebol não se está a desestimular a criação de novas sociedades, utilizando-se apenas dos “benefícios” da Lei, como já argumentado por muitos[7]. Ao contrário, trata-se de garantir a todos os clubes que eles, enquanto entidades desportivas sujeitas à organização do sistema nacional de desportos, possam iniciar seus processos de transição e reorganização para, aí sim, posteriormente optarem pelo melhor modelo. 

Não se desconhece que a Lei da SAF fundamentalmente pretenda que as obrigações originárias sejam solucionadas e, para isso, destina parte do fluxo de receitas da SAF com a finalidade de quitação desses passivos. E por isso cria para a própria SAF um tratamento tributário diferenciado. Uma espécie de atração para que o modelo seja implementado por todos.[8] Todavia, o benefício tributário – este sim destinado e aplicável exclusivamente à SAF – difere do Regime Centralizado de Execuções, que é um mecanismo de transição e preparação para uma transformação ou não para o modelo societário proposto.

No âmbito dos Tribunais Superiores colhe-se que, recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho (”TST”) editou o Provimento CGJT nº 01, de 19 de agosto de 2022, trazendo uma aparente interpretação de que o Regime Centralizado de Execuções só poderia ser aplicado às SAF’s. A interpretação decorreria da redação do artigo 153 do referido provimento:

“Art. 153. O RCE disciplinado pela Lei nº 14.193/2021 destina-se única e exclusivamente às entidades de prática desportiva definidas nos incisos I e II do § 1º do art. 1º e que tenham dado origem à constituição de Sociedade Anônima de Futebol na forma do art. 2º, II, da referida lei.” (Grifo extra).

A leitura mais apressada do artigo 153 poderia levar os mais afoitos à intepretação de que somente as SAF’s, e não os clubes de futebol associativos, por exemplo, poderiam requerer o Regime Centralizado de Execuções no âmbito daquela Justiça Especializada. Ledo engano, pois no próprio provimento 01/2021 encontramos nas disposições transitórias a admissibilidade que comprova que qualquer entidade (seja ela SAF ou Entidade Desportiva) pode requerer o Regime Centralizações de Execuções.

 Art. 160. (…) Parágrafo primeiro.  Os planos aprovados com os benefícios do RCE previstos na Lei nº 14.193/2021, para entidade desportiva que não se enquadre na regra do art. 153 desta Consolidação, deverão ser apresentados na forma de pedido de instauração de PEPT, no prazo de 90 dias, sob pena de se presumir o desinteresse no procedimento de reunião de execuções para pagamento parcelado do passivo trabalhista.

Ou seja, ainda que tenha interpretado a Lei de forma a limitá-la, o próprio TST prevê que o Regime Centralizado de Execuções pode ser autorizado mesmo aos clubes de futebol que não se transformaram em SAF. A concessão do prazo de 90 dias comprova isso, ou seja, a estes clubes também é garantida a aplicação do Regime Centralizado de Execuções, mesmo que não tenham optado ou se transformado em SAF.

Outra motivação clara da Lei da SAF para admitir a utilização ampla do Regime Centralizado de Execuções decorre do próprio princípio constitucional da Função Social da Empresa e de todos os consectários da atividade econômica desenvolvida pelos clubes de futebol. Em recente despacho proferido pelo MM. Juiz João de Oliveira Rodrigues Filho, na admissão de Regime Centralizado de Execução requerido pela Portuguesa de Desportos, é possível colher semelhante interpretação: “o objetivo do regime centralizado de execuções não é simplesmente a proteção do devedor, mas, principalmente, a salvaguarda da própria atividade e de todos os benefícios econômicos decorrentes desta, como a geração de empregos diretos e indiretos, além do pagamento dos credores na forma estabelecida na lei 14.193/2021.” (0004012-82.2022.8.26.0100)

Assim, não só a admissibilidade do Regime Centralizado de Execuções deve ser ampliada, como também adequada aos princípios inerentes ao direito recuperacional aplicáveis às empresas, aos entes com finalidade econômica e, naturalmente, aos clubes de futebol.

No requerimento para a reunião das execuções é essencial a comprovação da dificuldade encontrada pela entidade desportiva para honrar seus compromissos em curto prazo, fato este que quase sempre é representado pelo descasamento entre as receitas e as despesas necessárias para operar a atividade. Torna-se, assim, um dos elementos comprobatórios essenciais para o pedido de um outro efeito decorrente do Regime Centralizado de Execuções: a suspensão dos atos de constrição.

Isto porque a extrema dificuldade financeira dos clubes em reestruturação financeira traz como consequência a impossibilidade total de adimplemento de todas as obrigações nos respectivos vencimentos, como pretendem os credores, tendo como resultado reflexo e imediato a prática de atos de constrição do patrimônio do devedor e a afetação do futuro plano de pagamento de credores (artigo 16 da Lei da SAF). 

Nessa toada, o legislador, entre as medidas aplicáveis, garantiu a suspensão das execuções e constrições sobre o patrimônio dos clubes, estabelecendo a proibição de “qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre suas receitas”[9].

Por isso, comprovado o perigo de dano decorrente dos atos de constrição, autorizada está a suspensão de todas as execuções ajuizadas contra o devedor, mesmo antes do deferimento ou análise do Plano de Pagamento de Credores, sob pena de que todo o Regime e coletividade de credores seja prejudicado pelo ato individual de algum outro detentor de créditos.

Conclusão:

Trazidas aqui essas rápidas considerações acerca dos motivos, objetivos e princípios integrantes dos institutos jurídicos abarcados pela Lei da 14.193 de 19 de setembro de 2021 – denominada “Lei da SAF”, concluímos que:

  1. Os Regimes Centralizados de Execuções, Cíveis e Trabalhistas, previstos pelo artigo 13 da Lei da SAF, podem e devem ser aplicados a todos os clubes de futebol brasileiros, independentemente da formatação societária de sua constituição;
  2. A suspensão de todas as Execuções em trâmite contra o autor do Requerimento do Regime Centralizado de Execuções deve ser aplicada e deferida imediatamente à apresentação do requerimento, bastando para tanto, a comprovação do perigo de dano decorrente da não concessão imediata da suspensão. 

[1] Art. 13.  O clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério:

I – pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções previsto nesta Lei; ou

II – por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

[2] Estudo recente aponta que mesmo em 2021, no primeiro ano pós pandemia, com todas as dificuldades, os 20 primeiros clubes brasileiros faturaram mais de 7 bilhões de reais: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2022/05/20/estudo-aponta-retomada-economica-dos-clubes-brasileiros.htm

[3] Nomenclatura utilizada para denominar o debate organizado pela Comissão Nacional de Direito Desportivo da OAB Nacional “Marco Regulatório do Clube Empresa”, promovido pelo CFOAB, ocorridos em 19.03.2020 e em 09.04.2021 na OAB Nacional, com a presença dos relatores da Lei 14.193/2021. (https://centraleventos.oab.org.br/event/339/o-marco-regulatorio-do-clube-empresa-o-pl-5516-2019-2-edicao).

[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume III. 14ª Edição. São Paulo/SP: Editora Saraiva, 2021. “(…) conferindo as mesmas chances de realização do crédito a todos os credores de uma mesma categoria, o direito afasta a regra da individualidade da execução e prevê, na hipótese. A obrigatoriedade da execução concursal, isto é, do concurso de credores (antigamente denominada “execução coletiva”).”

[5] TJRJ autos 0669035-13.2021.8.19.0000, TJRJ autos 063814-13.2021.8.19.0000, TJRJ autos 0078735-13.2021.8.19.0000 e TJMG autos 1.0000.21.232276-2/00)

[6] Destaca-se aqui no STJ o Conflito de Competência nº 184.923/RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi

[7] Um dos argumentos levantados é que para a utilização do RCE a Lei trouxe também duas formas de receitas destinadas a suprir o Plano de Pagamento: receitas próprias do clube e receitas advindas da SAF. Seria assim, a constituição da SAF, uma condição necessária da concessão do regime.

[8] MELO, Suzana e CAVALLAZZI, Tullo in https://www.conjur.com.br/2022-fev-07/melo-cavallazzi-filho-tratamento-tributario-saf

[9] Art. 23.  Enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas.

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