Luiz Felipe Salem Mihich
Membro Filiado ao IBDD – Sócio do LFSM Advocacia, advogado graduado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduando em direito desportivo pela Escola Superior de Advocacia da OAB e no MBA em gestão esportiva pela Escuela Universitaria do Real Madrid 2024/2025
A utilização da imagem de atletas em produtos comerciais é uma prática antiga, iniciada com os álbuns de figurinhas que perdura até os dias de hoje. Atletas, reconhecidos como figuras públicas, muitas vezes têm suas imagens transformadas em marcas poderosas. Um exemplo recente é Neymar, conhecido pelo símbolo NJR, que representa sua identidade no mundo do futebol. Da mesma forma, Rafael Nadal, com sua marca do touro da Nike, e Roger Federer, identificado pela marca RF da Nike, são exemplos de atletas cujas imagens se transformaram em símbolos poderosos.
Outro caso emblemático é o de Pelé, cuja imagem e autógrafo eram sinônimos de autenticidade e qualidade. Ronaldinho Gaúcho é identificado por características físicas e comemorações específicas, enquanto Ayrton Senna é lembrado pelo capacete verde-amarelo-azul. Esses exemplos demonstram como a imagem de um atleta pode transcender a aparência física e se tornar uma marca valiosa.
A exploração comercial da imagem dos atletas, no entanto, deve respeitar seus direitos, garantindo uma participação justa nos benefícios gerados. Desde que os atletas começaram a ter suas imagens usadas comercialmente, surgiram desafios relacionados aos direitos de imagem, como negociações fragmentadas e disputas legais sobre o uso não autorizado.
Em um universo no qual os jogos de esporte, especialmente aqueles que simulam competições reais como futebol, basquete e outras modalidades, destacam-se pelo seu realismo e pela sua capacidade de engajar fãs e jogadores, títulos como FIFA (atual EAFC) e Pro Evolution Soccer (atual eFootball), exemplos emblemáticos deste sucesso, vêm enfrentando, nos últimos anos, enormes dificuldades com questões de licenciamento e uso de imagem. Um exemplo notório é o fim da parceria entre a Electronic Arts (EA) e a Federação Internacional de Futebol (FIFA), que ocorreu devido a um aumento significativo no valor exigido pela FIFA para a renovação do contrato, conforme relatado pelo New York Times em 2021.[1]
A dificuldade nas negociações entre franquias e atletas, especialmente no Brasil, é uma questão importante. Nos últimos anos, a presença de clubes e atletas brasileiros nos jogos de futebol tem diminuído. Primeiro, os atletas passaram a aparecer de forma genérica, isto é, suas faces e nomes pararam de ser utilizados e os times passaram a ter seus elencos formados por jogadores que não são reais. Mais tarde, passaram a ser encontrados, ano a ano, uma quantidade cada vez menor de clubes brasileiros licenciados nos games. No momento, o EAFC não conta com a liga brasileira, estando todos os clubes e atletas que atuam no futebol brasileiro fora do game.
Até a edição de 2014 do então FIFA, era habitual encontrarmos grande parte dos atletas que atuavam no futebol brasileiro presentes no game, assim como muitos clubes devidamente licenciados. Em 2015, foi identificada na legislação brasileira sobre direitos de imagem a exigência de autorização expressa dos atletas para o uso de suas imagens em jogos eletrônicos, o que naquele momento, não estava ocorrendo, possibilitando que todos os atletas que não tivessem concedido expressamente essa autorização, pleiteassem indenização na justiça brasileira.
Até então, a FIFPro (Federação Internacional de Associações de Futebolistas Profissionais), o sindicato global de jogadores profissionais de futebol era a responsável por representar os interesses dos jogadores e repassar os valores relativos à cessão dos direitos de imagens dos atletas que atuavam no futebol brasileiro para a Fenapaf (Federacao Nacional dos Atletas de Futebol) – e esta ficava responsável por repassar novamente os valores aos atletas.[2]
Esse modelo de operação é o mesmo utilizado pela EA desde o FIFA 96 (o primeiro a utilizar a imagem e o nome de jogadores reais) até os dias atuais em diversos países que possuem suas ligas, clubes e atletas integralmente licenciados no game. A licença da FIFPro era a salvaguarda principal da produtora em termos de utilização de tais direitos (MORAIS, 2023).
Ocorre que no Brasil, a regulamentação da exploração dos direitos de imagem é estabelecida pelo artigo 87-A da Lei 9.615/1997, a Lei Pelé. De acordo com a legislação, qualquer uso comercial da imagem de atletas deve ser formalizado por meio de um contrato de natureza civil, observa-se: “o direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo”.[3] Isso significa que cada jogador deve conceder expressa autorização para a utilização comercial de sua imagem.
Além disso, o direito de imagem é considerado um direito personalíssimo nos termos da legislação brasileira, o Código Civil diz em seu art. 11, caput, que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”[4] e em seu art. 20, caput, que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”[5].
Não obstante, o artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal, diz que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas”.[6] Fica assim empoderada ainda mais a ideia de que não se pode admitir a utilização da imagem de indivíduo por terceiros sem a autorização expressa do titular, o que dificulta ainda mais eventuais tentativas de flexibilização da situação.
Dentro deste contexto, uma onda de ações judiciais individuais e coletivas passaram a ser ajuizadas por atletas que atuavam no futebol brasileiro entre os anos de 2004 e 2014. Esses processos culminaram em condenações milionárias à EA em pagamentos de indenizações.[7] Tais condenações abriram precedentes, tendo inclusive alcançado tribunais superiores – como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que fazem com que, até os dias de hoje, atletas que atuam no futebol brasileiro ajuízem ações judiciais pleiteando indenização pelo uso de suas imagens no game.
Esses movimentos fizeram com que, para o FIFA 15, a EA Sports decidisse que não iria mais utilizar a imagem dos jogadores brasileiros, assim como não iria incluir a Liga do Brasil dentro do jogo. Na época, a empresa alegou que a ausência se deu por conta de “algumas mudanças no processo de licenciamento no Brasil”, de modo que a “EA não conseguiu chegar a um acordo com os detentores dos direitos dos jogadores”, não sendo eles, dessa forma, incluídos no jogo.[8]
No contexto judicial, a EA Sports chegou a sustentar que adquiriu os direitos de utilização da imagem dos jogadores através da Fifpro, com a condição de que os valores correspondentes fossem transferidos aos sindicatos nacionais. Ocorre que, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, predomina o entendimento de que nem Fenapaf, nem FIFPro possuem direito para negociar o uso das imagens dos atletas para fins comerciais, uma vez que não há autorização direta e expressa dos jogadores aos sindicatos de atletas profissionais, gerando o uso indevido de suas imagens.[9]
Recentemente dois atletas que atuam no futebol paulista ajuizaram ação contra a EA sob a tese que suas imagens foram utilizadas sem os respectivos contratos individuais, caracterizando “ilícito extracontratual”. Os atletas ponderam que a procuração que concederam à FIFPro não cobre aspectos individuais relacionados aos direitos de cada atleta, de modo que foram, em seus entendimentos, violados os seus direitos personalíssimos.[10] Cumpre-se destacar que por eles são pleiteadas indenizações por períodos em que apareceram em versões do jogo de anos em que estavam atuando no futebol europeu. Este fator traz à tona uma maior complexidade à situação e uma ampla discussão no que diz respeito a competência da justiça brasileira em casos como estes. Uma decisão favorável a um dos jogadores poderia abrir um precedente que certamente geraria um estrago ainda maior no conflito existente.
Essencial salientar que, em 2021, o STJ, determinou a suspensão, em todo o território nacional, em primeira e segunda instâncias e nos juizados especiais, da tramitação dos processos que discutem o uso indevido de imagens e dados biográficos de profissionais de futebol em jogos eletrônicos comercializados pelas empresas Eletronic Arts Nederlands BV, Electronic Arts Limited, Fifpro Commercial Enterprises BV e Konami Digital Entertainment. O pedido para suspender todos os processos no Brasil foi encaminhado ao STJ após o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) aceitar um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) relacionado ao tema, proposto, em um primeiro momento, pela produtora japonesa SEGA, que mais tarde foi estendido às demais produtoras. Na decisão, o tribunal destacou que existiam mais de mil processos no estado tratando de pedidos de indenização pelo uso de imagens de atletas em games.[11]
Resta evidente uma problemática recorrente envolvendo a utilização da imagem de atletas que atuam no futebol brasileiro em games por conta de uma especificidade na legislação brasileira que expôs as dificuldades da EA em conciliar suas práticas de contratação com as disposições da Lei Pelé.
Fica claro que não serão vistos jogadores que atuam no futebol brasileiro no game novamente enquanto não for proposta uma solução que traga maior segurança jurídica para a produtora. No momento, poderia ser trabalhada a possibilidade do acordo coletivo entre atletas e sindicatos para que os sindicatos passem a ter o direito de negociar os acordos em nome dos atletas, ou a possibilidade de a EA adotar tratativas individuais com cada um dos atletas. É evidente a maior aplicabilidade prática da primeira opção, haja visto que, se adotada como estratégia a segunda opção, seriam enfrentados diversos problemas de logística, uma vez que muito provavelmente seriam exigidos diferentes termos e valores por cada um dos muitos atletas, o que torna o dispositivo trazido pela Lei Pelé praticamente inviável na prática.
Para um próximo momento, a criação de uma liga que unifique os clubes em uma negociação conjunta, algo já discutido em outros momentos, mas que ainda enfrenta forte resistência da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), seria um facilitador para futuras tratativas.
A ausência dos clubes brasileiros nas últimas edições do game resultou em uma menor representatividade do futebol brasileiro e de seus atletas em uma plataforma global. Vale destacar que essa ausência é prejudicial também aos atletas, que deixam de ganhar os seus royalties e de ter as suas imagens expostas em todo o mundo.
Enquanto essa questão permanece sem resolução, as atenções permanecem voltadas para as decisões das cortes brasileiras, especialmente o julgamento do Incidente de Resolução em Demandas Repetitivas pendente, que unificará as ações assemelhadas e poderá estabelecer novos parâmetros nas relações entre atletas e produtoras de jogos eletrônicos (MORAIS, 2023).
Espera-se que sejam estabelecidas diretrizes claras e equitativas, conciliando os interesses comerciais das produtoras com os direitos dos atletas, observando o princípio da razoabilidade em um mercado multimilionário. Assim, essas resoluções poderão impactar significativamente a indústria de jogos eletrônicos e o cenário esportivo nacional, promovendo uma relação mais equilibrada e transparente entre todas as partes envolvidas.
Referências Bibliográficas:
MORAIS, Victor da Silva. Direito de imagem de atletas em Jogos Eletrônicos Esportivos. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Rio Grande do Norte, 2023. Disponível em:
https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/54120/1/TCC_DireitosDeImagemDeAtletasEmJogosEletrônicosEsportivos.pdf. Acesso em 15/08/2024.
FILGUEIRA, Gabriel. Direito de Imagem dos Atletas Profissionais de Futebol em Games. Jusbrasil. 2022. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/direito-de-imagem-dos-atletas-profissionais-de-futebol-em-games/1686308939. Acesso em: 15/08/2024.
VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa. Temas Atuais de Direito Desportivo. São Paulo: Ltr, 2015.
MARQUES, Erickson Gavazza; DA SILVA, João Mário Estevam; DOS SANTOS JUNIOR, Walter Godoy. Breves Reflexões acerca do uso de imagem de atleta profissional de futebol em jogos eletrônicos. Revista de Direito, Inovação, Propriedade Intelectual e Concorrência. Capa v.7, n.2, 2021. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistadipic/article/download/8420/pdf
Acesso em: 15/08/2024.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do(a) autor(a) deste texto.
[1]Disponível em:
https://g1.globo.com/pop-arte/games/noticia/2021/10/13/fifa-dobra-valor-para-licenca-de-nome-em-game-pede-us-1-bilhao-e-ea-considera-rebatizar-franquia.ghtml. Acesso em: 12/08/2024
[2] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/documentos-indicam-que-federacao-do-brasil-recebeu-por-uso-de-imagens-de-jogadores-nos-games/#page4. Acesso em: 15/08/2024.
[3]Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm. Acesso em: 15/08/2024.
[4] Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm?ref=blog.suitebras.com. Acesso em: 15/08/2024
[5] Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm?ref=blog.suitebras.com. Acesso em: 15/08/2024
[6] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15/08/2024.
[7] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/documentos-indicam-que-federacao-do-brasil-recebeu-por-uso-de-imagens-de-jogadores-nos-games/#page4. Acesso em: 15/08/2024
[8] TECHTUDO. FIFA 15: times e jogadores do Brasileirão ficarão de fora do game. 2014. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2014/07/fifa-15-tera-ausencia-de-jogadores-e-times-do-brasileirao2015.ghtml. Acesso em: 12/08/2024
[9]Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/documentos-indicam-que-federacao-do-brasil-recebeu-por-uso-de-imagens-de-jogadores-nos-games/#page4. Acesso em: 15/08/2024
[10]Disponível em: https://oantagonista.com.br/esportes/rafinha-e-calleri-processam-ea-por-direito-de-imagem-no-fifa/. Acesso em: 12/08/2024.
[11]Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/17122021-Ampliada-a-suspensao-de-processos-sobre-uso-indevido-de-imagem-de-jogadores-em-games-de-futebol.aspx. Acesso em: 12/08/2024