OLÍMPIA E O LEVIATÃ

Tatiana Mesquita Nunes[1]

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Atualmente, como outrora, escrevia Pierre de Coubertin, [a ação do esporte] será benéfica ou prejudicial segundo o partido que se saiba tirar e a direção para a qual se levará. O atletismo pode colocar em jogo as paixões mais nobres como também as mais vis: ele pode desenvolver o desinteresse e o sentimento de honra como também o amor pela vitória; enfim, pode ser utilizado para consolidar a paz da mesma forma como para preparar a guerra. (Publicado na Revue française d’histoire des idées politiques, n. 22, 2005, p. 389. In DUDOGNON, Charles; FOUCHER, Bernard; et alli. Intégrité des Compétitions Sportives. Lyon: Dalloz, 2014. p. X).

O título é intrigante, quase pretencioso. A questão que se apresenta: o que busca um autor – no caso, uma autora – debater em um texto intitulado Olímpia e o Leviatã? Esse texto, na verdade, caro leitor, lança apenas uma primeira luz às questões debatidas com profundidade na obraOlímpia e o Leviatã: A participação do Estado para garantia da integridade no esporte”, lançada recentemente pela Editora Fórum. Olímpia, apelido dado ao movimento esportivo na obra, tem seus embates com Leviatã – figura hobbesiana conhecida da maioria dos juristas – desnudados e ressignificados, sob uma ótica diferente da tradicional.

Poderia dizer ao leitor que, para mais, só revolvendo as 229 páginas da obra. Porém, a convite do IBDD, deixo aqui algumas primeiras considerações, que se para uns parecerão disparatadas ante o pensamento jusdesportista tradicional – de que a autonomia traz ares de soberania, para outros poderão servir de guia a novos rumos desse mesmo pensamento, não para rejeitá-lo de todo, mas para repensá-lo em alguns de seus aspectos, quem sabe ressignificá-lo e consigná-lo em nova moldura. Se conseguir despertar em todos a curiosidade de conhecer esse novo prisma através do qual pensar a relação Estado-Esporte, o trabalho terá alcançado mais um objetivo.

Iniciemos, então, pela ideia de autonomia, enfrentada sob os mais diversos ângulos na obra. A autonomia das organizações esportivas apresenta-se, em sua formatação jurídica – no caso brasileiro, constitucional mesmo – como uma reação. Reação esta ao reconhecimento político, pelo Estado, do fenômeno esportivo – e às consequências práticas de tal reconhecimento.

Isso porque, embora no início do Século XX os Estados tenham simplesmente sentado na arquibancada para assistir à atuação das organizações esportivas, sem interferir no fenômeno esportivo, os anos 30 e a disputa mundial de forças abriu os olhos dos governantes à importância do esporte como um instrumento de soft power. Se os exemplos mais emblemáticos são os Jogos Olímpicos de 1936, disputados na Alemanha hitleriana, e a Copa do Mundo FIFA de 1934, disputada na Itália e vencida pela equipe local, não se deve deixar de fora tantos outros momentos históricos em que a política se valeu do esporte para demonstração de força ou proeminência[2]. E da política veio a reboque o Direito, percebendo o Estado a necessidade de não apenas se valer, mas desenhar balizas para o fenômeno esportivo.

E a partir do momento em que um novo ator adentra um campo onde regras vinham sendo definidas por seus próprios destinatários (ou nem tanto, mas ao menos pelas organizações máximes de cada modalidade), surge a questão de como lidar com as diversas fontes jurídicas de normas desportivas, apresentadas não sob a forma hierárquica reconhecida no mundo jurídico (nossa conhecida pirâmide kelseniana), mas sob uma forma sistêmica, dinâmica e interdependente.

E nesse jogo, em que participam – para não dizer que são adversários, embora por vezes o sejam – Estado e movimento esportivo, as regras são definidas de forma diversa para cada um. Enquanto ao Estado a legitimidade normativa é facilmente apreensível quer sob o prisma objetivo (autoridade legal ou constitucionalmente assentada), quer sob o prisma subjetivo (reconhecimento pelos destinatários – os cidadãos), ao movimento esportivo, embora seja comum a legitimidade subjetiva (reconhecimento pelos destinatários), a legitimidade normativa objetiva depende de uma espécie de chancela estatal. A norma jusdesportiva emanada por uma organização esportiva não prescinde, para ter validade em dado território, de um reconhecimento pelo Estado. E a isso serve a Lei.

E nem se invoque, neste ponto, o célebre – e, na minha opinião, ampliativamente interpretado – artigo 1º, § 1º, da Lei Pelé, para discutir-se um monismo ou dualismo jusdesportivo. Aqui, a questão é outra. Que as normas jusdesportivas devem ser de alguma forma “acolhidas” pelos ordenamentos jurídicos estatais para sua plena aplicabilidade em dado território é indiscutível. Do contrário, não precisaria existir um § 1º ao artigo 1º para dizer o que aqueles que defendem o dualismo defendem, não é verdade? E não estou aqui a desconhecer o importante fenômeno da lex sportiva como elemento de conformação jurídico-esportiva transnacional. O que afirmo é simples: no bojo de uma organização estatal, a plena aplicabilidade de tais normas não prescinde de um reconhecimento.

Voltemos então à autonomia.

Afirmei, linhas atrás, que ela foi uma reação. Afirmei, mas não expliquei. Explico agora. A necessidade de expressa previsão da autonomia – não coincidentemente, na Carta Olímpica de 1949 pela primeira vez, traduziu-se como uma força de resistência à função política de que os Estados buscavam dotar o esporte, num movimento de manutenção do ideal olímpico de apolitismo do esporte em face dos excessos estatais. O mesmo ocorreu no Brasil. Não por coincidência, a autonomia foi erigida à condição de princípio constitucional em reação ao movimento de instrumentalização do esporte ocorrido antes da reabertura democrática.

Questão resolvida? Não me parece. A inserção do princípio da autonomia no artigo 217 da Constituição – embora de contornos muito bem definidos, voltado à organização e funcionamento das entidades esportivas – ganhou contornos bastante amplos, conforme os intérpretes a foram moldando às necessidades das instituições. De proteção aos excessos do Estado, a autonomia passou a servir como escudo aos excessos das entidades.

Visa, porém, citada autonomia, proteger as organizações ou o Esporte? Serviria a autonomia horizontal – denominação esta dada por Chapelet[3] – ao proposito de defender o esporte de excessos ou escusar comportamentos de organizações esportivas – inclusive quando o sejam em detrimento do esporte?

Para mim, inexiste qualquer dúvida. Que puxem os cabelos aqueles que acreditam que o Esporte é fenômeno inviolável pela ação do “maldoso” Leviatã. Não há que se proteger Olímpia, em seu espectro de Corte intocável, e sim o fenômeno esportivo em si – como direito social constitucionalmente garantido.

O que se está a proteger, pois, não é um determinado ator do cenário esportivo, mas o cidadão que, na qualidade de atleta ou espectador, participa do fenômeno esportivo. Assim, ao se reconhecer o esporte como um direito social, questões como a participação do Estado no cenário esportivo e as regras de autonomia das organizações esportivas são visualizadas sob a óptica do destinatário de tal sistema: o cidadão.

Mudando-se, pois, as lentes com as quais se observa a questão, o intérprete passa a analisar as normas jusdesportivas – emanem elas do Estado ou do movimento esportivo – de outro modo, qual seja, sempre em observância ao usufruto do direito social ao esporte por seu destinatário.

Com isso, passa-se a perceber a dialética Estado-organizações esportivas da forma que mais favoreça o acesso do cidadão a um esporte limpo, justo e solidário, concebendo-se a participação de cada um dos atores na medida em que propiciem o atingimento deste objetivo. E, assim, molda-se também um novo formato do princípio da autonomia.

Qual é esse novo formato? Só lendo “Olímpia e o Leviatã: A participação do Estado para garantia da integridade no esporte” para saber.

* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora desse texto.

 

Bibliografia consultada

NUNES, Tatiana Mesquita. Olímpia e o Leviatã: A participação do Estado para garantia da integridade no esporte.  Belo Horizonte: Fórum, 2022. 229 p.

[1] É Advogada da União (2009-atual), com atuação no Núcleo Especializado em Arbitragem da Advocacia-Geral da União (2019-atual), Ex-Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem – TJD-AD (2018-2022) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP. É membro filiada ao IBDD desde 2018.

[2] Conforme destacamos na obra, “A antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS também adotou a estratégia de instrumentalização do esporte: “De fato, explorar o esporte como uma arma diplomática nas relações internacionais tornou-se muito comum na antiga União Soviética. Levou não apenas à intervenção do governo na seleção de membros ou na criação de um atleta estatal (i.e., adotando ou forçando a adotar a ideologia comunista), mas também, menos gloriosamente, à dopagem sistemática.” Tradução livre do inglês. Terret, 2010; Bose, 2012; citados por MRKONJIC, Michael. Sports organisations, autonomy and good governance. Disponível em: <http://www.playthegame.org/fileadmin/documents/Good_governance_reports/AGGIS-report__1 3Sports_organisations__autonomy_ and_good_governance__p_133-150_.pdf>. Acesso em 29 de junho de 2018.”

[3] CHAPPELET, Jean-Loup. L’autonomie du sport en Europe. Conseil de l’Europe: Strasbourg, 2010. p. 48-49.