João Guilherme Guimarães Gonçalves¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
O dia a dia das lides desportivas nos trazem desafios e interpretações que fogem do bê-á-bá das infrações cotidianas ocorridas em competição, como as agressões físicas, as atitudes hostis, e as ofensas trocadas em campo, atingindo o diário dos atletas em sua vida.
De uns tempos para cá, a modernidade das mídias sociais e o avanço das comunicações colocam a todos os personagens da sociedade sob o crivo de julgamentos preconceituosos que demandam uma intervenção, nem que seja mínima, dos Órgãos Judicantes de cada modalidade esportiva.
Sim, pois o pré-conceito feito por pessoas alheias ao desporto acaba por derrubar reputações, atraindo-se, assim, a apuração dos fatos pela Justiça Desportiva de cada modalidade, quer pela conclusão de infrações disciplinares, quer pelo arquivamento de eventual inquérito que venha a apurar tais atitudes antidesportivas, nomeando-se, assim, a sua autoria.
O que se visa nessa coluna é tentar separar o joio do trigo, pontuando o que é de competência das Entidades de Administração e de Prática Desportivas e o que é de atribuição da Justiça Desportiva. Ainda que seja impossível chegar a uma conclusão certeira, busca-se ao menos tentar acertar o alvo.
Consignam os artigos 47 e 48 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, que institui as normas gerais sobre desporto, que:
Art. 47. No âmbito de suas atribuições, os Comitês Olímpico e Paraolímpico Brasileiros e as entidades nacionais de administração do desporto têm competência para decidir, de ofício ou quando lhes forem submetidas pelos seus filiados, as questões relativas ao cumprimento das normas e regras de prática desportiva.
Art. 48. Com o objetivo de manter a ordem desportiva, o respeito aos atos emanados de seus poderes internos, poderão ser aplicadas, pelas entidades de administração do desporto e de prática desportiva, as seguintes sanções:
I – advertência;
II – censura escrita;
III – multa;
IV – suspensão;
V – desfiliação ou desvinculação.
§ 1º A aplicação das sanções previstas neste artigo não prescinde do processo administrativo no qual sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa.
§ 2º As penalidades de que tratam os incisos IV e V deste artigo somente poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva.
De outra banda, pontua o artigo 50, da supramencionada lei, a “organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva” são “limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas”.
A interpretação conjunta dos artigos 48 e 49, da Lei geral sobre o Desporto, aponta ser:
(i) atribuição das Entidades de Administração do Desporto e das Entidades de Prática Desportiva “decidir, de ofício ou quando lhes forem submetidas pelos seus filiados, as questões relativas ao cumprimento das normas e regras de prática desportiva”;
(ii) tendo como objetivo “manter a ordem desportiva, o respeito aos atos emanados de seus poderes internos.”
Temos nestes dois artigos a limitação da competência dos “poderes internos” das entidades de prática e de administração do desporto, que dependem, inclusive, da chancela da Justiça Desportiva para aplicar as sanções de suspensão ou desfiliação/desvinculação, por força do disposto no §2º, do artigo 48, da Lei Geral sobre o Desporto.
Tal chancela, diga-se de passagem, já foi alvo de críticas do Patrono do Direito Desportivo no Brasil, o Dr. Álvaro Melo Filho, que tratou sobre o tema em seu livro intitulado a “Nova Lei Pelé” (2011). Em tom crítico, trata do assunto com o tema a “competência esdrúxula sobre a ordem desportiva”.
Pontua o insigne patrono que a Justiça Desportiva é dotada “de índole administrativa stricto sensu”, não tendo “poderes para atuar em derredor de infrações que se coloquem no raio do direito de associação, por exemplo, eleições de dirigentes ou prestação de contas que estão na esfera interna corporis dos entes desportivos dirigentes privados, cuja impugnação, quando ocorrer, deve submeter-se à Justiça Comum, e nunca à Justiça Desportiva” ante a nítida infringência ao “estatuto social ou à legislação civil”.
Voltando à leitura dos artigos supramencionados, pode-se concluir que Ordem Desportiva é a manutenção dos atos emanados pelos poderes internos das entidades de administração, bem como pelo cumprimento das normas e regras e de prática desportiva, sancionando, quer pela provocação de seus filiados, quer de ofício, àqueles que venham a transgredi-las, com advertência, censura escrita, multa, suspensão ou desqualificação ou desvinculação.
De outra parte, a Justiça Desportiva é limitada (competência) “ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas”, por expressa determinação Constitucional (artigo 217, da CF) e Legal (artigo 49 e seguintes da Lei Geral sobre o Desporto).
As infrações desportivas seguem transcritas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (“CBJD”), cabendo aos “órgãos da Justiça Desportiva territorial de cada entidade de administração do desporto e da respectiva modalidade [fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][…] processar e julgar matérias referentes às competições disputadas e às infrações disciplinares cometidas pelas pessoas naturais ou jurídicas mencionadas no artigo 1º, §1º”.
Ou seja, da leitura do artigo 24, do CBJD, transcrito acima, em conjunto com os artigo 217, da CF, combinado com os artigos 49 e seguintes da Lei Geral sobre o Desporto, temos que a competência dos Órgãos Judicantes é:
(i) limitada à jurisdição territorial da entidade de administração do desporto da respectiva modalidade,
(ii) com competência para processar e julgar matérias referentes às competições disputadas; e
(iii) às infrações disciplinares cometidas pelas pessoas naturais ou jurídicas mencionadas no artigo 1º, §1º
Tal segregação de competência reflete o desporto como direito individual (artigo 2º, da Lei Geral sobre o Desporto), garantindo às pessoas físicas e jurídicas, ante a iminência da aplicação de sanções, organismos “autônomos e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema” (inteligência do artigo 52, da mesma norma citada), para ver as suas questões serem dirimidas.
É de se notar, aliás, que as sanções provenientes da manutenção da Ordem Desportiva que envolvam a suspensão, a desfiliação ou desvinculação das pessoas (naturais ou jurídicas) “somente poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva”, conforme expressamente prevê o §2º, do artigo 48, da Lei Geral sobre o Desporto, o que significa dizer, garantir ao indivíduo o devido processo legal por um Tribunal isento das questões que envolvam não só as afrontas à Ordem Desportiva, quanto as questões que envolvem a disciplina no desporto.
Aqui valem as máximas, por se tratar de garantia fundamental a um direito individual (o desporto), de que ninguém será (i) “processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; “privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, sendo assegurados (iii) “o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (inteligências dos incisos LIII, LIV e LV, do artigo 5º, da Constituição Federal).
É dizer, todas as sanções previstas nos incisos do §1º, do artigo 50, da Lei Geral sobre o Desporto, só podem ser aplicadas depois de instaurado um procedimento que observe o devido processo legal, que garanta o contraditório e a ampla defesa ao denunciado, perante o Órgão Judicante competente, qual seja a Justiça Desportiva, assim como as sanções provenientes de afrontas à Ordem Desportiva, e que acarretem aos indivíduos as sanções trabalhadas nos incisos IV e V, do artigo 48, da Lei Geral sobre o Desporto, por expressa determinação do §2º, do artigo 48.
Logo, ainda que sejam questões que podem ser de competência de Comissões de Éticas das Entidades de Administração e de Prática Desportiva, qualquer sanção por elas impostas que resvale na suspensão, desfiliação ou desvinculação de qualquer pessoa, natural ou jurídica que seja jurisdicionado da Justiça Desportiva e que tenha como fundamento a indisciplina, atrai, por expressa disposição legal, a competência da Justiça Desportiva para dirimir o feito. Aliás, nunca é demasiado lembrar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Vale sempre lembrar os dizeres de Álvaro Melo Filho na linha de que “os entes desportivos têm, na sua estrutura associativa ou societária, um poder “social”, de caráter interno e doméstico, que não guarda relação ou vinculação com o desporto federado e com as competições esportivas”.
Isso significa dizer, que nem todas as questões de Ordem Desportiva devem ser tratadas pela Justiça Desportiva, já que esta está adstrita, como dito acima, às questões de disciplina. Isso significa dizer, que questões envolvendo eventuais insubordinações entre atletas e treinadores (e vice-versa), devem ser tratadas dentro do Conselho de Ética das agremiações, ao passo que as questões disciplinares devem ser aplicadas “após decisão definitiva da Justiça Desportiva”. São fatos, aliás, que, como de costume, podem e devem ser objeto de inquéritos disciplinares trabalhados no seio dos Órgãos Judicantes competentes.
Trata-se de um tema interessante e que a cada dia permeia as Cortes Desportivas com julgamentos de fatos que transcendem as raias das competições, ante as indisciplinas colocadas em práticas por atletas em mídias sociais ou por manifestações que não condizem com a sua escolha de vida: o esporte. O esporte é sinônimo de disciplina e deve assim ser encarado 365 dias ao ano, até mesmo por questões fisiológicas.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹João Guilherme Guimarães Gonçalves é membro do IBDD, Sub-Procurador Geral do STJD do Futebol; Procurador da Justiça Desportiva Antidopagem; Presidente do TJD/SP da Ginástica; Auditor do Pleno do TDP; Auditor Presidente da CD do STJD do Atletismo Procurador do TJD/SP do Volleyball.
[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]